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Justiça do Trabalho pode julgar indenização por fato do príncipe

A Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho, em julgamento de recurso de revista do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), adotou o entendimento de que a Justiça do Trabalho é competente para julgar indenizações decorrentes do chamado “factum principis” – quando o agente público é responsabilizado por indenizações trabalhistas de terceiros em decorrência de seus atos. Até então, embora fosse incontroverso que cabia à Justiça do Trabalho caracterizar a ocorrência do “factum principis”, os casos eram remetidos à Justiça Federal.

Previsto no artigo 486 da CLT, o “factum principis” – ou fato do príncipe – aplica-se aos casos de paralisação temporária ou definitiva do trabalho motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade. De acordo com o § 3º do mesmo artigo, a Vara do Trabalho, após verificar qual a autoridade responsável, deveria remeter os autos para “o Juiz privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito, nos termos previstos no processo comum”. A Turma entendeu, entretanto, que este parágrafo teria perdido a validade com a Constituição Federal de 1988, que ampliou a competência da Justiça do Trabalho.

No processo que motivou a decisão, um trabalhador rural de engenho do município de Escada (PE) reclamou de seu empregador diversos direitos trabalhistas não atendidos. Admitido em 1956, o agricultor trabalhou até 1963 sem carteira assinada, além de nunca ter recebido horas extras, adicionais e outros direitos.

A ação foi ajuizada em novembro de 1997. Em outubro do mesmo ano, a desapropriação da fazenda foi decretada, e o INCRA foi imitido na posse do imóvel em 19 de dezembro de 1997, quando o trabalhador estava em férias. Com a imissão de posse, as atividades da fazenda foram paralisadas e os trabalhadores demitidos sem receber as verbas rescisórias.

No julgamento da reclamação, a Vara do Trabalho de Escada enquadrou a desapropriação no artigo 486 da CLT. O empregador foi condenado ao pagamento dos direitos suprimidos durante a vigência da relação de trabalho mas não das verbas rescisórias, que seriam de responsabilidade do Incra, já que “a ruptura do laço empregatício deveu-se ao processo expropriatório”. Sendo este uma autarquia federal, o juiz determinou o envio da parte do processo relativa à sua condenação para a Justiça Federal.

O Incra recorreu então ao Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco alegando que não há sucessão trabalhista em casos de desapropriação pelo poder público, principalmente quando se trata de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária. Em sua defesa, a autarquia afirmava que “a desapropriação só é desencadeada se o proprietário não cumpre a função social do imóvel e o mantém inexplorado ou pouco explorado, improdutivo”.

O TRT, no entanto, manteve o entendimento a respeito da caracterização do “factum principis”, porém declarou a Justiça do Trabalho incompetente para resolver a questão, “uma vez que a relação que se estabelece entre o trabalhador e a pessoa jurídica de Direito Público não constitui, propriamente, um conflito trabalhista, mas uma discussão – na órbita do Direito Comum – sobre a configuração da responsabilidade do órgão de natureza estatal ou autárquica”, conforme registrado na decisão regional.

Como a intenção do Incra era descaracterizar o “factum principis”, a discussão, no entendimento do TRT, giraria em torno do argumento de que o fazendeiro não cumpria com a função social de suas terras, mantendo-as improdutivas, dando causa à desapropriação – e a decisão sobre esse aspecto não caberia à Justiça do Trabalho. O Incra ajuizou então recurso de revista junto ao TST para que se declarasse a não ocorrência do “factum principis”, excluindo-o do processo.

O ministro Renato de Lacerda Paiva, que redigiu o Acórdão do recurso de revista, disse que “a administração pública não pode causar dano ou prejuízo a terceiros, mesmo que seja no interesse da comunidade e, se assim procede, deve ser chamada a figurar no processo.” O ministro fez um detalhado histórico sobre a ampliação da competência da Justiça do Trabalho para concluir que compete a esta apreciar, além da questão relativa à caracterização do “factum principis” (ponto incontroverso, previsto na CLT), a parte relativa ao pedido de indenização a cargo do governo responsável pelo ato que deu origem à rescisão contratual.

“A Justiça do Trabalho, aos poucos, teve sua competência ampliada, não apenas porque o rol dos direitos trabalhistas se tornou mais complexos, mas também porque a sociedade assim o exigia”, explicou Renato Paiva em seu voto. Na Constituição de 1988, “no que tange à Justiça do Trabalho, a fixação da competência não traz menção à matéria, mas apenas às pessoas cujos interesses se encontram em conflito.”

Fazendo um levantamento da competência da Justiça do Trabalho desde o início do século passado e citando vários textos doutrinários, o relator observou que, “caracterizado que a administração pública, no caso, se apresenta como litisconsorte, e como litigante distinta, arcará com a sua condenação, se porventura ela existir – condenação esta oriunda de uma relação de emprego a que a administração pública pôs fim.”

No seu entendimento, “a relação que se estabelece, quando da ocorrência do ‘factum principis’, entre o trabalhador e a pessoa jurídica de Direito Público constitui, sem qualquer sombra de dúvidas, um conflito trabalhista”, e, em função disso, a indenização discutida enquadra-se no artigo 114 da Constituição Federal, que estabelece a competência da Justiça do Trabalho. Diante disso, a Turma determinou a remessa do processo de volta à Vara do Trabalho de Escada para que esta tome nova decisão, uma vez reconhecida a ampla competência da Justiça do Trabalho para julgar o caso.