No sábado, dia 10 de junho de 2006, o Diário Oficial da Cidade de São Paulo nº 109 publicou a Lei nº 14.168/06, de autoria do vereador Adilson Amadeu – PTB, que institui e dispõe sobre o parcelamento de multas de trânsito na cidade de São Paulo. A lei aprovada autoriza o parcelamento apenas das multas aplicadas pelo órgão executivo de trânsito municipal a veículos registrados na capital, já constantes do prontuário (e desde que não estejam em fase de recurso), não se aplicando às infrações de trânsito cometidas após a edição da lei. O parcelamento pode ocorrer em até doze vezes, com o valor mínimo de R$ 50,00 para cada parcela e reajuste mensal pela variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE ou, na sua ausência, pelo menor índice oficial adotado pelo Executivo municipal. Vale ressaltar a transitoriedade da norma em questão, tendo em vista que o seu artigo 10 fixa prazo de noventa dias para o pedido de parcelamento, bem como proíbe terminantemente sua prorrogação automática, condição que, aliada à aplicabilidade da norma apenas às infrações de trânsito já cometidas, demonstra que tanto o benefício quanto a própria lei são temporários. Embora o parcelamento de multas de trânsito, ora instituído em São Paulo, seja adotado igualmente por outros órgãos de trânsito, a publicação da lei paulista nos remete à freqüente discussão quanto à legalidade deste procedimento, já que não se encontra previsto no Código de Trânsito Brasileiro. Antes de tratarmos dos aspectos constitucionais de relevância no estudo do tema, importante refletirmos sobre os reflexos causados pela divisão da pena aplicada à conduta infracional, tendo-se como premissa a conclusão alcançada pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, na obra Leviatã, segundo o qual é necessária a presença de um Estado forte para reprimir a inerente maldade humana. Desta forma, cabe ao Estado, mediante o poder que lhe é conferido para impor penalidades àqueles que descumprirem o ordenamento jurídico, estabelecer as penas de modo a não só inibir o comportamento delituoso, mas retribuir ao infrator, na medida fixada pela própria lei, o mal causado pela sua conduta. Justamente por esta condição é que tem entendido a doutrina, desde as lições de Chiovenda, que a pena possui, além do caráter essencialmente punitivo, duas outras finalidades, de igual importância: de um lado, a pena é repressiva, com o objetivo de demonstrar à sociedade que, como diz o vulgo popular, “o crime não compensa”; de outro, temos o caráter retributivo, para que sejam desestimuladas as condutas ilícitas, com o exemplo da punição. Uma das mais significativas mudanças da legislação de trânsito, com o advento da Lei nº 9.503/97, que instituiu o atual Código de Trânsito Brasileiro, foi exatamente o aumento dos valores das multas, não para incrementar a arrecadação estatal (pelo menos não era essa a intenção do legislador, o que fica claro com a vinculação da aplicação da receita arrecadada, nos termos do artigo 320 do CTB), mas para potencializar o caráter retributivo da pena pecuniária; tanto é que, das sete penalidades estabelecidas no artigo 256 do Código, apenas a penalidade de multa é prevista para TODAS as infrações de trânsito e, portanto, representa importante ferramenta para a mudança de comportamento dos usuários do trânsito. O Código de Trânsito Brasileiro, em nenhum momento, estabelece situação de enfraquecimento da penalidade de multa, pelo contrário, prevê seu pagamento até mesmo como condição sine qua non para a continuidade do exercício ao direito de propriedade do veículo, já que, na conformidade do § 2º do artigo 131, o veículo somente poderá ser licenciado com a quitação das multas de trânsito a ele atribuídas e, não estando licenciado, além de nova multa, ficará apreendido pelo órgão executivo de trânsito estadual, pelo cometimento da infração do artigo 230, V. Apesar do artigo 262 estabelecer prazo de até trinta dias para a permanência do veículo no pátio, o fato é que a disposição do parágrafo único do artigo 271 vincula a sua restituição ao pagamento das multas de trânsito existentes e, finalmente, se o proprietário assim não o fizer, após decorridos noventa dias, prevê o artigo 328 a realização de leilão, deduzindo-se, do valor arrecadado, os débitos existentes, antes de depositar o dinheiro na conta do ex-proprietário.
A única previsão legal de diminuição do valor da multa é aquela determinada pelo artigo 284, que autoriza o desconto de 20 % se houver a quitação até o vencimento, o que, longe de representar enfraquecimento do Estado, demonstra o beneplácito com aqueles infratores que se sujeitam à aplicação da penalidade, incentivando-os ao seu cumprimento no prazo determinado pelo órgão de trânsito. Vejam, portanto, que a sistemática adotada pela legislação de trânsito procura fortalecer o Estado na aplicação da pena, obrigando-se, de diversas formas, que o infrator sinta o peso da punição, o que, em contrapartida, não se vislumbra na medida que se procura criar facilidades para o cumprimento da penalidade.
A preocupação com a inadimplência no pagamento das multas de trânsito deve constituir motivo não para criar facilidades, mas para a criação de mecanismos que potencializem a atuação do Estado na fiscalização de veículos não licenciados, na realização de leilões dos veículos apreendidos e na cobrança judicial das multas inscritas em dívida ativa.
Feitas tais considerações, questionamos não só a coerência, mas a validade de lei editada pelo Município, autorizando-se o parcelamento da penalidade de multa, quando a legislação federal não contempla tal possibilidade.
Neste aspecto, resta-nos a análise da constitucionalidade da lei em comento, já que o artigo 22, inciso XI, da Constituição Federal, estabelece que compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte.
Competência privativa não se confunde com competência exclusiva, porquanto esta não pode ser delegada, aquela é delegável, nos termos da lei. E, desta forma, prevê o parágrafo único do artigo 22 que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas naquele artigo (lei esta que, ainda que já tivesse sido editada, o que não ocorreu até o presente momento, não pode delegar aos Municípios a competência para legislar sobre trânsito, mas somente aos Estados).
Com esta motivação, leis estaduais que versavam justamente sobre o parcelamento das multas de trânsito foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal – STF, ao julgar Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas contra os Estados do Rio Grande do Sul (ADI 3.444 / RS, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 03/02/06), Rio Grande do Norte (ADI 2.432 / RN, rel. Min. Eros Grau, DJ de 26/08/05), Espírito Santo (ADI-MC 3.196 / ES, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 22/04/05) e Santa Catarina (ADI 2.474 / SC, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 25/04/03).
Concluindo nossas considerações sobre o tema apresentado, cumpre-nos relatar apenas um fato pitoresco que envolve a lei aprovada em São Paulo: trata-se da sua inclusão entre os projetos de lei escolhidos para concorrerem ao Troféu Joinha, uma iniciativa do Instituto Agora em defesa do eleitor e da democracia (www.institutoagora.org.br), que acompanha e monitora o trabalho dos vereadores de São Paulo, tendo em vista que o nobre vereador autor da proposta, presidente da Comissão de Trânsito, Transporte e Atividade econômica da Câmara, exerce a atividade de despachante, presidindo, atualmente, o Conselho Federal dos Despachantes, classe profissional que, sem dúvida, terá benefícios com o parcelamento ora aprovado.