A matéria que se desenvolverá nesta palestra, embora não devesse, tem gerado polêmicas estéreis, provocadas, quase sempre, pela instituição policial e por agentes outros da administração pública, que sempre reagem à atuação do Ministério Público na fase pré-processual, seja no âmbito penal seja no não penal.
As reações, de natureza concreta, mais se evidenciam no campo da investigação de fatos criminosos, no qual a polícia judiciária, estadual ou federal, pretende o monopólio da investigação e também o do que consideram o procedimento único para o exercício dessa função: o Inquérito policial.
A visão da polícia judiciária, que pretende o monopólio da investigação de fatos criminosos, se manifesta tanto por intermédio de matérias impressas em jornais de associações de agentes policiais, quanto no uso de instrumentos processuais, notadamente ações diretas de inconstitucionalidade e, também, do exercício de permanente pressão junto ao poder legislativo da União e dos Estados, sempre procurando inibir o exercício do poder de investigação de fatos criminosos por qualquer agente estatal que não a polícia.
Essa pretensão de monopolizar a investigação de fatos criminosos, contudo, embora conte com a simpatia dos membros dos legislativos federal e estadual oriundos ou integrantes das corporações policiais, não tem prosperado.
E é imprescindível à garantia da eficácia das funções judiciárias e do Ministério Público que essa intenção monopolizadora da polícia não seja, em tempo algum, acolhida, entre outras razões, porque:
determinados fatos criminosos, se dependerem de um único órgão com competência para investigá-los, podem nunca chegarem a julgamento nos tribunais, em razão de vínculos pessoais e sentimentos corporativos fortes, que se criam entre membros de determinadas castas profissionais. a instituição policial, dada a natureza da atividade de seus membros, tem tendência muito forte à proteção corporativa, mediante a formação de costumes próprios que inibem a investigação de seus agentes, uns pelos outros. atualmente o aparelho policial tem sido contaminado, em vários dos seus seguimentos, com a integração de agentes em organizações criminosas, empresarialmente organizadas. há, também, envolvimento – destacado pela Imprensa – de policiais na prática de crimes em que a utilização de métodos de tortura, com a prática de violência física e moral, é comum. Nos crimes em que são envolvidos agentes políticos a investigação policial geralmente é pouco eficiente, seja por despreparo técnico, seja por dificuldades geralmente opostas pelo poder político. Esses pontos acima elencados evidentemente que não exaurem a questão, porém servem como indicador da necessidade de se ter outras funções estatais com competência para investigar delitos, seja concorrentemente, seja em caráter supletivo à atribuição da polícia.
Dentre essas instituições com competência para investigar delitos está o Ministério Público; primeiro porque o único destinatário de todo e qualquer trabalho de investigação policial e segundo por deter a competência investigatória necessária para, em casos da natureza dos acima elencados, tornar efetiva a sua função principal na órbita penal, que é a de propor com exclusividade a Ação Penal pública.
O Ministério Público, nessa qualidade de titular exclusivo de Ação Penal pública, tem inegavelmente o compromisso com a eficácia da pretensão que deduz em juízo.
Esse compromisso com a efetividade deve levar o agente ministerial a exaurir todos os meios assegurados na fase pré-processual, com a observância das garantias constitucionais do investigado ou investigados, para obter os dados possíveis sobre fato e autoria, com vistas a assegurar a eficácia da postulação processual que venha a deduzir.
E, ciente dessa necessidade, o Constituinte de 88 elevou a nível constitucional o rol de competências mínimas do Ministério Público, dentre as quais se infere o poder de realizar, diretamente, atos de investigação de fatos criminosos.
Esse poder investigatório é inferido da conjugação do disposto nos incisos I e VIII do artigo 129 da CF., pois não seria crível que o poder de requisição – que significa ordem para outro agente estatal cumprir determinado fato – não pudesse envolver o de diretamente realizar ato administrativo que a outrem pode ordenar o cumprimento.
Se o Ministério Público pode mandar fazer, qual a razão que o impediria de diretamente promover ou praticar o ato que poderia requisitar?
Evidentemente que nenhuma, pois quem tem o poder de mandar pode preferir diretamente realizar.
O poder investigatório, em matéria penal, se não o quiserem expresso, indiscutivelmente que estaria implícito no preceito constitucional que assegura a requisição de diligências à autoridade policial, que tem o dever de submissão a esses atos.
E exercendo, como em alguns casos tem exercido, esse poder investigatório que a constituição lhe assegura, como demonstrado acima, o Ministério Público, Estadual ou Federal, tem conseguido dar efetividade à pretensão punitiva que deduz, o que não conseguiria se ficasse vinculado e enclausurado pelos inquéritos policiais que, em muitos casos, sequer seriam instaurados.
Se, em muitos dos casos de grande relevância, a investigação tem sido sempre feita diretamente pelo Ministério Público – como, v. g., os dos grandes banqueiros do jogo do bicho, no Rio de Janeiro, os das fraudes nos processos de acidentes do trabalho, no mesmo Estado, nos quais foram condenados autoridades de alto escalão, tanto do executivo quanto do judiciário, além de grande parte dos demais processados – , a intervenção judiciária, recebendo a denúncia e realizando julgamento de mérito com acolhimento das pretensões materiais deduzidas pelo Ministério Público, ratificou a existência desse poder investigatório em matéria penal.
Esses casos referidos são exemplares. Sem o exercício do poder de investigação pelo Ministério Público, a sociedade sequer teria tomado conhecimento dos fatos criminosos, que foram praticados, no caso das fraudes, mediante o aparentemente regular exercício da jurisdição e no dos exploradores do jogo do bicho, com a participação direta e a proteção e garantia de autoridades e agentes policiais.
Há razoabilidade na pretensão de colocar-se a exclusividade investigatória de crimes em mãos da polícia? Evidentemente que não.
Se isso ocorresse o Ministério Público e o Judiciário é que teriam, esses sim, suas funções solapadas, pois em verdade somente iriam processar e julgar apenas as questões que a polícia considerasse que deveria investigar.
Os que defendem, felizmente poucos, o monopólio da investigação em mãos da polícia, pretendem dar a essa corporação poderes incontrastáveis, pois, em verdade, nenhum controle sofreria nessa atividade e assim ditaria as regras no campo da repressão penal, o que me parece questão absurda e que por isso sequer deveria ser considerada.
Mas esse pensamento tem sido refutado, com maestria, pelos tribunais do país. Assim o Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado que o fato de o Promotor de Justiça ter realizado investigação e proposto a Ação Penal com base nos elementos coligidos não o incompatibiliza para o processo, fazendo nítida separação entre investigação (atividade administrativa) e processo (atividade jurisdicional).
Essa posição, já consolidada no STJ., que separa investigação de processo e nega a suspeição ou mesmo o impedimento do Promotor de Justiça que haja investigado diretamente, tem relevância ímpar para o Ministério Público, pois lhe retira as amarras, que o preconceito estabelecera, de incompatibilizar investigação e processo.
O que os dados coligidos em investigação propiciam é o embasamento material mínimo para a dedução da pretensão punitiva, pois apenas têm natureza de requisitos informativos. A dignidade de prova esses dados somente adquirem ao passarem pelo crivo do contraditório judicial, após o que ou são consideradas lícitos e serão formal e materialmente prova, ou ilícitos e nesse caso de nada valerão.
Embora esse poder investigatório, em matéria penal, tenha matriz na Constituição, seu exercício não é incontrastável. O poder do Ministério Público de, isoladamente, investigar fatos criminosos, encontra limites no próprio texto constitucional. Assim é que, para obter dados protegidos pela garantia da privacidade, há necessidade de intermediação judiciária.
Essa intervenção – que é uma forma de controle externo do Ministério Público – visa a assegurar concretamente as garantias constitucionais da inviolabilidade e da privacidade, inscritas no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.
Nesses casos, sem a intervenção judiciária, eventual elemento de prova tem sido considerado, com acerto, pelos tribunais como ilicitamente obtido e, portanto, sem qualquer eficácia probatória.
O Supremo Tribunal, julgando recentemente recurso extraordinário, entendeu que o sigilo bancário não pode ser quebrado sem prévia autorização judiciária, pois o inciso VIII do art. 129 da CF. não teria abrangência suficiente para prescindir de autorização judiciária no caso de matéria constitucional garantidora da privacidade, da qual o sigilo bancário seria espécie.
O STJ também já reconhecera essa limitação, ao julgar o Habeas Corpus 3.985-RJ. pois o sigilo bancário fora quebrado sem intervenção judiciária.
De todo o exposto concluo o seguinte:
O Ministério Público detém poder investigatório em matéria penal. Esse poder pode ser exercido em caráter concorrente ou para suprir inércia da autoridade policial. Há limitação desse poder, quando houver necessidade de violação da privacidade do investigado, caso em que deve ser precedida a diligência de autorização judicial, pena de os dados obtidos não terem eficácia probatória, em razão da ilicitude da forma de sua obtenção. Barra Mansa, 29 de setembro de 1999.
Ertulei Laureano Matos
Procurador de Justiça do Rio de Janeiro