“Não é possível que alguém possa mostrar-se liberal com o que não lhe pertence” (Miguel Cervantes – Novelas Exemplares)
Houve uma época em que a utilização do capacete de segurança era obrigatória somente nas rodovias, ocasião em que seu uso nas vias urbanas tornava-se mera faculdade [1].
A abertura política, a amplitude dos meios de comunicação, a globalização, conseqüentemente aumentou o poder de consumo da classe baixa e, ao mesmo tempo, buscou-se um tipo de veículo que pudesse ser ágil e econômico, como o é a motocicleta.Proporcionalmente ao crescimento da quantidade desses veículos vieram os acidentes de trânsito e com eles suas vítimas.Mutatis mutandis, o Poder Público, em julho de 1991, adotou medidas [2] que passaram a exigir dos condutores e passageiros de motocicletas, motonetas e similares, o uso do capacete em toda via pública, bem como a especificação de requisitos para a fabricação desse utensílio de uso compulsório.
Fruto da continuação dessa transformação social, inspirada na tendência constitucionalista da evolução dos direitos fundamentais de terceira geração [3], em que se buscava melhor qualidade de vida, em 1998, para atingir essa expectativa, em especial, nas relações viárias com mais segurança, finalmente, adveio o Código de Trânsito Brasileiro [4].
Com ele, a Resolução nº 20/98 [5], revogada pela Resolução nº 203/06 [6] do Conselho Nacional de Trânsito, que passou a normatizar o uso do capacete de segurança para condutores e passageiros de motocicletas, motonetas e similares.Nesse breve histórico, percebam que o capacete nunca foi disciplinado como equipamento obrigatório nem muito menos no atual Código de Trânsito, que dispõe:
“Art. 105. São equipamentos obrigatórios, entre outros a serem estabelecidos pelo Contran:
§ 1º. O Contran disciplinará o uso dos equipamentos obrigatórios dos veículos e determinará suas especificações técnicas.O Contran [7], por sua vez, por meio da Resolução nº 14/98 estabeleceu e especificou os equipamentos obrigatórios para a frota de veículos em circulação, nos quais, não inseriu o capacete de segurança.
De fato, nem poderia mesmo, porquanto o § 3º daquele codex declara que “os fabricantes, os importadores, os montadores, os encarroçadores de veículos e os revendedores devem comercializar os seus veículos com os equipamentos obrigatórios definidos neste artigo, e com os demais estabelecidos pelo Contran.”
Ora, é cediço que não se fabricam motociclos (e similares) equipados com capacete de segurança, ainda menos, salvo “os brindes promocionais para aumento de vendas”, não se comercializam semelhantes veículos com esse equipamento que – repita-se – não é obrigatório.
Então, se o capacete de segurança não é equipamento obrigatório, qual a sua natureza jurídica?
A resposta nos parece estar no artigo 92, do Código Civil [8], in verbis:”Art. 92. Principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concretamente; acessório, aquele cuja existência supõe a do principal”. (grifo nosso)
Com efeito, se o capacete fosse equipamento obrigatório, deveria estar acoplado ao veículo, em um compartimento de instalação também compulsória, como parte de um todo (bem principal), a exemplo do farol, indicadores de direção, espelhos retrovisores e outros equipamentos obrigatórios.
Infere-se, assim, que o capacete de segurança é um acessório de uso obrigatório, cuja existência supõe a da motocicleta que é o bem principal.
Contudo, em que pese tais considerações sobre a natureza jurídica do capacete, o Conselho Nacional de Trânsito, com a devida vênia, equivocadamente [9], editou a Resolução nº 257, de 30 de novembro de 2007, ipsis literis:
“Art. 1º. Os artigos 4º e 5º da Resolução nº 203/2006, passam a vigorar com a seguinte redação:
Art. 4º. Dirigir ou conduzir (in sic) passageiro sem o uso do capacete implicará nas sanções previstas nos incisos I e II do art. 244, do Código de Trânsito Brasileiro.
Parágrafo único. Dirigir ou conduzir passageiro com o capacete fora das especificações contidas no artigo 2º desta Resolução, incidirá o condutor nas penalidades do inciso X [10] do art. 230 do Código de Trânsito Brasileiro”. (grifo nosso)Assim sendo, antes de continuarmos a investigação da Resolução nº 257, conquanto não seja objeto desse singelo trabalho, é preciso frisar que a Resolução nº 203, na parte em que exige o uso do capacete por condutores e passageiros de triciclos e quadriciclos é inconstitucional por afrontar o princípio da legalidade, eis que os artigos 54 e 55, do Código de Trânsito, não prevêem essa obrigatoriedade para os ocupantes de tais veículos.De qualquer forma, o Contran, por meio da Resolução nº 257, ao atenuar penalidades (de gravíssima para grave), criou uma enorme confusão [11], pois transferiu a responsabilidade do condutor (art. 244) para a o proprietário.
Ocorre que o art. 257, § 2º do CTB [12] determina que “ao proprietário caberá sempre a responsabilidade pela infração referente à prévia regularização e preenchimento das formalidades e condições exigidas para o trânsito do veículo na via terrestre, conservação e inalterabilidade de suas características, componentes e agregados, habilitação legal e compatível de seus condutores, quando esta for exigida, e outras disposições que deva observar”.
Ao passo que o § 3º do mencionado Código dispõe que “ao condutor caberá a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos praticados na direção do veículo”.
Dessa forma, a aplicação da Resolução nº 257 tem levado a hipóteses esdrúxulas como, por exemplo, a do agente da autoridade de trânsito, autuar um condutor que não faz uso do capacete e liberá-lo para prosseguir, já que o art. 244, incisos I e II, não prevê medida administrativa de retenção do veículo e, a contrario sensu, em outra circunstância, reter o veículo ou recolher o Certificado de Licenciamento Anual [13] quando o condutor ou passageiro estiver utilizando capacete desprovido de selo do INMETRO.
Conseqüentemente, o proprietário, mesmo sem culpa, arcaria com os pontos na Carteira de Habilitação, além do constrangimento de uma medida administrativa, cujo adimplemento não depende dele, mas do condutor que dirigia sua motocicleta no ato da fiscalização usando um capacete irregular.
Realmente, essa não é a competência do Conselho Nacional de Trânsito. Onerar ou abrandar condutas, restringir ou ampliar direitos e criar obrigações é reserva legal cabível ao Poder Legislativo.
Aclarando-nos a questão, Alexandre de Moraes [14] adverte que “só por espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral”.
De fato, a espécie normativa competente para tal fim é a Lei nº 9.503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro que, nos limites do artigo 12, inciso I, disciplinou ser da competência do Contran “estabelecer as normas regulamentares referidas neste Código e as diretrizes da Política Nacional de Trânsito”.Neste sentido, outra não é a conclusão senão a de que as resoluções e demais atos normativos do Conselho Nacional de Trânsito nada mais são do que “preceitos regulamentares para o bom cumprimento do Código de Trânsito Brasileiro” [15], sob pena de desvio de poder.
Aliás, a este respeito, Celso Antonio Bandeira de Mello [16] lembra que no “desvio de poder o agente, ao manipular um plexo de poderes, evade-se do escopo que lhe é próprio, ou seja, extravia-se da finalidade cabível em face da regra em que se calça. Em suma: o ato maculado deste vício direciona-se a um resultado diverso daquele ao qual teria de aportar ante o objetivo da norma habilitante. […] Trata-se, pois, de um vício objetivo, pois o que importa não é se o agente pretendeu ou não discrepar da finalidade legal, mas se efetivamente dela discrepou”.Ressalte-se, entretanto, que a despeito da ilegalidade das Resoluções 203 e 257 do Contran, nos limites ora propostos, elas não perderam sua eficácia, devendo ser objeto de sujeição pelos agentes de trânsito e usuários das vias públicas, pelo motivo de que a Administração Pública goza da presunção de legitimidade de seus atos administrativos.
Sem embargos, trata-se de uma presunção iuris tantum, cuja nulidade do ato e invalidade de seus efeitos pode ser declarada perante o Poder Judiciário.
Cabe, enfim, à Colenda Câmara Temática de Esforço Legal [17] sugerir ao Conselho Nacional de Trânsito a anulação das Resoluções em debate, pois o dever de autotutela [18] da Administração Pública mira-se no interesse coletivo que se traduz na busca de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consistente na construção de uma sociedade justa [19].