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Ofensa de juiz em audiência é crime contra honra, não mero abuso de autoridade

É possível que juiz, na condução da causa, pratique não apenas abuso de autoridade, mas também crimes contra a honra, como injúria e difamação. A decisão, da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi dada em recurso contra Acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) que rejeitou queixa de advogado que se sentiu ofendido por magistrado.

O advogado atuava como assistente judiciário do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ) do Centro de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF) em audiência de instrução criminal de Ação Penal contra acusado pelo uso de falsa carteira de motorista, consistente em falsa cópia autenticada do documento. Ao lhe ser permitido fazer pergunta à primeira testemunha, o advogado, por meio do juiz, questionou qual a orientação da Polícia Militar do Distrito Federal quanto à condução de veículos por motorista portando apenas cópia da Carteira Nacional de Habilitação (CNH).

O juiz, então, indeferiu a pergunta, argumentando ser ela impertinente, tendo em vista que o importante era a falsificação da CNH e não se a PM considerava válida sua cópia autenticada. Ao que o advogado respondeu que, se ficasse esclarecido que a PM e o Detran não aceitam cópia da CNH, ainda que autenticada, então a conduta deixaria de tipificar crime pela impossibilidade de lesão. Daí a pertinência da questão.

A insistência do advogado em formular a questão, ou que ao menos fosse consignada no termo para posterior recurso, bastou para que o juiz, como afirma a queixa-crime inicialmente rejeitada, “explodisse em ira inusitada, afirmando em alto e bom som que ‘não estava ali para ouvir perguntas idiotas e que indeferiria todas as perguntas que, como aquela, se mostrassem igualmente idiotas’.”

“Diante do inusitado destempero do querelado”, segue a queixa-crime, “o querelante rogou-lhe que se compusesse, tratando-o com o mesmo respeito com que era tratado, ao que redargüiu que quem era o advogado para falar-lhe em compor-se. O querelante respondeu-lhe, então, que contava 17 anos de prática do Direito, o que lhe garantia certa experiência no aquilatar a adequação das perguntas, ao que o querelado, furibundo, redargüiu que o advogado não parecia ter essa experiência, pois se comportava como um iniciante; chegou até a questionar se o querelante era formado. Para completar, ainda saiu com essa: se minha vara está zerada, isso se deve exatamente ao fato de não admitir perguntas idiotas e mais, se o advogado trabalhasse tanto quanto eu trabalho, não estaria aqui a formular perguntas idiotas, tomando inutilmente o meu tempo.”

O advogado ainda tentou contemporizar, afirmando que, se a pergunta tivesse sido feita, ou apenas indeferida e consignada, não se perderia tempo com o “bate-boca”. “Mais uma vez descontrolado e ameaçador”, afirma a queixa-crime, “o querelado afirmou que não o queria mais advogando em sua vara, ao que o querelante respondeu que ele não poderia impedir seu exercício profissional ali ou em qualquer outro juízo, ao que o querelado respondeu que era ele quem mandava ali e quem nomeava o NPJ da AEUDF para funcionar em sua vara e que ele iria dizer ao (…) diretor daquele núcleo para não mais permitir que o querelante ali atuasse.”

Ao fim do incidente, o juiz fez consignar no termo a pergunta pretendida, “mas redigiu a questão como quis, daí ter-se tornado ininteligível, ‘in verbis’: ‘Que lhe foi perguntado pelo nobre defensor qual seria a interpretação que o comando da polícia militar daria sobre a apreensão de uma cópia autenticidade de uma carteira de habilitação, quando, em razão da subjetividade da pergunta, que implica inclusive em espécie de julgamento pela testemunha, como também por ser impertinente a perquirição da verdade real objeto destes autos, foi indeferida’. (sic)”

Ainda, na audiência da testemunha seguinte, outro policial militar, o advogado repetiu a mesma pergunta “que ensejou todo o acesso de fúria do querelado, mas este parece que só então, de modo retardado, compreendendo o alcance da indagação, formulou a pergunta ao policial, obtendo dele a afirmativa de que a cópia da carteira de habilitação devidamente autenticada pelo Detran competente é aceita na fiscalização de trânsito.”

Segue ainda a queixa-crime: “Note-se, todavia, que, ao término da malsinada audiência, tão infamemente presidida, o querelado ainda arrematou publicando, com manifesto ar de deboche, que se fossem feitas todas as perguntas daquele modo – referindo-se às perguntas dirigidas à terceira testemunha, acerca de eventual crime de falsificação de documento público –, tudo teria sido mais fácil. Tenta por esse modo, como perceberam todos os presentes, inculcar que o incidente se devera à incapacidade de o querelante deduzir suas questões, ignomínia que ele próprio cuidou de negar, tanto que a indigitada pergunta foi repetida para a segunda testemunha, obtendo-se resposta de grande valia para a defesa. Importante salientar que o querelante, na audiência, se fazia acompanhar de quatro estagiários da AEUDF, os quais pretendiam assistir a uma audiência presidida por um juiz criminal, mas terminaram por assisti-la presidida por um juiz criminoso.”

Especialidade

Para o TJDFT, aplicar-se-ia no caso o princípio da especialidade, tendo em vista que a conduta praticada pelo juiz se enquadraria tanto em norma geral (crimes contra a honra) quanto em norma especial (abuso de autoridade). Como, para este crime, a Ação Penal cabe ao Ministério Público, o advogado seria parte ilegítima para promovê-la, o que levou à rejeição da queixa-crime.

O ministro José Arnaldo da Fonseca, no entanto, considerou que o magistrado pode, sim, praticar ambos os crimes ao ofender, no desempenho da função, outras pessoas. “Dentro dessa óptica e segundo a melhor doutrina, o crime de abuso de autoridade, melhor definido como abuso de poder, tem como objetividade a lisura da atuação do funcionário público, dentro dos padrões exigidos por lei. Isto quer dizer que o sentido da tipificação incide sobre o desvio do servidor, em detrimento da Administração que lhe delegou, por lei, um poder específico, ou seja, à medida que o Poder Estatal é manipulado de forma anormal, com abuso, está-se em jogo o crime em questão.”

“De outro lado”, esclarece o ministro relator em seu voto, “no tocante aos crimes contra a honra, a objetividade jurídica em nada incide na preocupação do desvio do agente público, mas no fato de sua responsabilidade, como pessoa, em respeito à honra (objetiva e subjetiva) de outrem. Portanto nada tem a ver com o atuar do poder estatal.”

Por esses motivos, acompanhado à unanimidade pela Turma, o ministro deu provimento ao recurso para, afastada a ilegitimidade do recorrente, determinar o recebimento da queixa-crime pela difamação e seu julgamento pelo juízo competente como entender de direito. Ficou reconhecida, também, a prescrição quanto ao crime de injúria.