Em 30 de julho de 2025, os Estados Unidos anunciaram a inclusão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), na lista de sanções previstas pela Lei Global Magnitsky. O episódio marca um ponto de inflexão inédito nas relações entre jurisdições soberanas, pois envolve a aplicação extraterritorial de sanções unilaterais a uma autoridade judicial de uma nação democrática e soberana, com base em alegações unilaterais de violações de direitos humanos e corrupção.
A medida suscita debates jurídicos profundos, especialmente no que diz respeito à colisão entre sistemas normativos. Afinal, pode um banco brasileiro — listado na bolsa de Nova York — ser obrigado a encerrar a conta de um ministro brasileiro, por força de uma decisão sumária norte-americana, ainda que tal ato seja incompatível com a ordem constitucional brasileira? É esse o dilema que analisaremos.
A Extraterritorialidade da Jurisdição Americana
A Lei Global Magnitsky (Global Magnitsky Human Rights Accountability Act), promulgada em 2016, permite ao governo dos Estados Unidos sancionar indivíduos estrangeiros considerados responsáveis por graves violações de direitos humanos ou corrupção. As sanções incluem o bloqueio de bens e a proibição de entrada nos EUA.
Mais relevante, porém, é sua aplicação extraterritorial: basta que o indivíduo sancionado utilize o sistema financeiro baseado em dólar, mantenha ativos em plataformas digitais que passem por servidores nos EUA, ou tenha relações com empresas sob a jurisdição americana para ser atingido. Essa lógica é sustentada pela doutrina do “long arm jurisdiction”, que tem sido aplicada em casos de empresas europeias, chinesas e latino-americanas.
O Problema Jurídico Brasileiro
No Brasil, o ordenamento jurídico veda medidas coercitivas sem o devido processo legal. A Constituição Federal de 1988 assegura o princípio da legalidade (art. 5º, II), o devido processo (art. 5º, LIV) e a ampla defesa (art. 5º, LV). O Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor igualmente impedem o encerramento unilateral de conta corrente sem justificativa legítima e prévia notificação, especialmente se envolver agente público no exercício da função.
A execução automática de uma sanção estrangeira, sem homologação judicial ou previsão legal específica, afrontaria o princípio da soberania (art. 1º, I da CF) e colocaria o banco que a executasse sob risco de responsabilização civil e administrativa no Brasil.
O Dilema das Instituições Financeiras Brasileiras
O caso se agrava quando se trata de instituições financeiras com operação transnacional, como o Itaú Unibanco, Nu Bank ou Bradesco. Por estarem listados na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE), os bancos estão sujeitos às regras da SEC e da OFAC (Office of Foreign Assets Control). Caso desobedeçam às sanções, podem sofrer penalidades severas nos Estados Unidos, incluindo multas bilionárias ou restrições operacionais.
Ao mesmo tempo, o cumprimento irrestrito dessas ordens — quando em desacordo com a legislação brasileira — pode levar a medidas judiciais internas, como liminares para reabertura de contas, imposição de multas diárias ou ações civis públicas por violação de direitos fundamentais.
Cria-se, assim, uma situação binária: o banco terá de desobedecer a uma das jurisdições — e arcar com as consequências da desobediência. A racionalidade econômica poderá, infelizmente, determinar o rumo da conduta, fazendo com que a soberania brasileira se curve à ameaça do custo internacional.
Além disso, o Banco Central do Brasil, por meio de sua regulação prudencial e normativa (como a Resolução CMN nº 4.595/2017, que trata da governança corporativa nas instituições financeiras), exige que as operações bancárias respeitem o ordenamento jurídico nacional e observem o princípio da legalidade nas suas decisões internas, especialmente no tocante a encerramentos unilaterais de contratos com clientes. O Manual de Penalidades do BCB, por sua vez, prevê sanções administrativas a instituições que atuem em desacordo com os preceitos legais brasileiros, inclusive em casos de violação de direitos dos usuários de serviços financeiros (conforme Resolução nº 4.949/2021). Assim, um banco que execute sanções determinadas por um governo estrangeiro sem respaldo no sistema normativo brasileiro — ou sem ordem judicial homologada — poderá ser responsabilizado por infração à regulação nacional, sujeitando-se a sanções como advertências, multas, suspensões operacionais e até restrições prudenciais.
Precedentes e Possíveis Soluções
Na Europa, instrumentos como a “lei de bloqueio” da União Europeia foram criados para impedir que empresas locais cumpram sanções extraterritoriais de terceiros países sem autorização prévia. O Brasil não possui dispositivo semelhante, embora a jurisprudência do STF sobre soberania e jurisdição nacional poderia oferecer espaço para resistência legal.
Medidas judiciais como mandados de segurança, ações declaratórias ou Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) poderiam ser manejadas para garantir que atos de jurisdição estrangeira não se sobreponham à ordem constitucional brasileira.
A via diplomática, por sua vez, também se mostra necessária. O silêncio do governo brasileiro diante de uma violação tão grave de sua soberania institucional pode gerar um precedente que fragiliza toda a arquitetura normativa do Estado nacional.
Conclusão
O caso Alexandre de Moraes inaugura um novo capítulo na tensão entre sistemas jurídicos nacionais e o poder normativo informal dos EUA. Ao aplicar sanções contra um ministro de Estado de uma democracia funcional, o governo norte-americano não apenas estende seus tentáculos legais para além de suas fronteiras, mas desafia frontalmente o princípio da autodeterminação dos povos e a separação de poderes.
É hora de o Brasil, por seus Poderes constituídos, reagir com firmeza. Não para proteger um indivíduo, mas para proteger a própria integridade de seu sistema jurídico. Afinal, o custo da soberania — neste caso — não é apenas econômico. É constitucional.
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