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Analisa a possibilidade do reconhecimento do princípio da insignificância quando o agente possuir outros registros pela prática do mesmo crime.

1. INTRODUÇÃO; 2. DESENVOLVIMENTO; 3. JURISPRUDÊNCIA; 4. CONCLUSÃO.

1. INTRODUÇÃO

O Direito Penal moderno possui a missão de tutelar os bens jurídicos mais importantes à subsistência do corpo social. Assim, a intervenção penal deve estar orientada pelo caráter fragmentário e subsidiário, justificando-se somente quando houver grave ofensa àqueles bens fundamentais para a vida em coletividade e quando os outros ramos do direito se mostraram ineficazes à repressão do ilícito praticado.

Em decorrência disso, com base no brocardo de minimis non curat praetor, formulou-se em doutrina o chamado “princípio da insignificância” ou da “bagatela”, segundo o qual, os crimes que não são aptos a lesar de forma expressiva o bem jurídico tutelado pela norma penal, devem ser havidos como atípicos. É que a conduta do agente é tão ínfima e incapaz de lesar o interesse penalmente protegido, que acaba sendo desnecessária a mais energéticas das intervenções estatais.

Desta feita, operou-se na moderna teoria do delito, a distinção entre tipicidade formal e tipicidade material. Agora o direito penal não se contenta somente com a tipicidade formal (subsunção do fato à norma), mas sim, com a tipicidade material, do caso concreto, consistente esta na expressiva lesão ao bem ou interesse tutelado pela norma penal (1). Qualifica-se, o princípio em exame, como verdadeiro fator de descaracterização material da tipicidade penal (STF – HC 84412/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19.11.2004). Contudo, o maior problema enfrentado hoje, não é o reconhecimento de tal postulado despenalizante, mas sim, quais os critérios e limites que se devem levar em conta para a sua correta e justa aplicação.

2. DESENVOLVIMENTO

Se por um lado é pacífica a admissibilidade do aludido corolário, o mesmo não se pode dizer de seu reconhecimento quando verificadas algumas condições que dizem respeito exclusivamente à pessoa do agente, tais como reincidência, maus antecedentes e a existência de processos ou inquéritos visando à apuração da mesma prática delituosa. Condições de ordem subjetiva portanto.

O debate ganha ainda maior relevo quando se cuida do crime de descaminho (art. 334 do CP), dado o grande número de pessoas – muitas compelidas pelos elevados índices de desemprego – que se utilizam dessa prática como meio de vida (comércio informal). Assim, na maioria das vezes o agente ostentará outros processos ou inquéritos contra si, demonstrando não se tratar da primeira incursão na dita atividade delituosa.

No crime de descaminho, a jurisprudência pátria vêm reconhecendo o princípio da insignificância quando valor do tributo devido for igual ou inferior ao mínimo exigido para a propositura de uma execução fiscal. Atualmente, com a edição da Lei 11.033/2004, que alterou a Lei 10.522/2002, o referido valor está no patamar dos R$ 10.000,00. Contudo, invocando tratar-se de critérios de razoabilidade e ponderação frente à realidade social, o E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região manifestou entendimento pela manutenção do patamar de R$ 2.500,00, instituído pela Lei 10.522/2002.( HC n.º 2004.04.01.034885-7; ACR n.º 2003.70.01.003925-1).

Pois bem. Reconhecidamente na doutrina e na jurisprudência, o princípio da insignificância tem o condão de afastar a própria tipicidade da infração penal. Ora, se o que se procura evitar é a própria incidência do tipo, condicionar a rejeição da denúncia ou a absolvição do agente com fundamento no princípio da insignificância à verificação de circunstâncias de cunho estritamente pessoal é, como explica o professor LUIZ FLÁVIO GOMES, confundir a teoria do delito com a teoria da pena. Nesse sentido, esclarece o ilustre penalista que “toda referência que é feita (na esfera do princípio da insignificância) ao desvalor da culpabilidade (réu com bons antecedentes, motivação do crime, personalidade do agente etc.) está confundindo o injusto penal com sua reprovação, leia-se, está confundindo a teoria do delito com a teoria da pena (ou, na linguagem de Graf Zu Dohna, o objeto de valoração com a valoração do objeto)” (2).

Com efeito, de acordo com o art. 59 do Código Penal, para a aplicação da pena, o juiz, atenderá à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima. É na aplicação da pena, no caso de uma eventual condenação portanto, que se deve analisar essas circunstâncias. Se o fato é materialmente atípico, tal fase restará prejudicada.

Não se está, assim, defendendo a impunidade. É que como já se disse alhures, a intervenção penal deve estar orientada pelo caráter subsidiário, devendo o agente experimentar outras sanções, que não de natureza penal, tais como sanção civil, administrativa, etc., o que afasta a idéia de incentivo à pratica criminosa. Assim, no crime de descaminho por exemplo, a perda dos bens na esfera administrativa já se demonstra medida suficiente de punição para aquele que interna mercadoria estrangeira no país sem o regular recolhimento de impostos (princípio da intervenção mínima).

Ora, condenar uma pessoa somente por possuir outros registros pela mesma atividade criminosa, ignorando-se, dessarte, a ínfima lesão causada ao bem jurídico penalmente tutelado, indubitavelmente estará se punindo alguém pelo seu modo de ser, pelo que é, ou seja, por que é reincidente ou possui maus antecedentes. Estará, assim, retrocedendo-se ao reprovável direito penal de autor, ao que se sabe, incompatível com o atual Estado Democrático de Direito.

E a isso não se pode prestar a tarefa do direito do Direito Penal, cuja base maior repousa na própria dignidade da pessoa humana. Com efeito, conforme prelecionam EUGENIO RAÚL ZAFFARONI e JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI, “Seja qual for a perspectiva a partir da qual se queira fundamentar o direito penal de autor (culpabilidade de autor ou periculosidade), o certo é que um direito que reconheça, mas que também respeite a autonomia moral da pessoa, jamais pode penalizar o “ser” de uma pessoa, mas somente o seu agir, já que o direito é uma ordem reguladora de conduta humana. Não se pode penalizar um homem como escolheu ser, sem que isso violente a sua esfera de autodeterminação” (3).

3. JURISPRUDÊNCIA

Sobre o assunto, a jurisprudência dos tribunais pátrios se mostra oscilante, conforme podemos observar dos seguintes julgados:

STJ – ” Não obstante o baixo valor dos impostos devidos constituir condição necessária à aplicação do princípio, não se mostra, todavia, suficiente para tanto; não se deve olvidar que as condutas praticadas, na medida em que a ação ora em exame não se mostra isolada, mas constitui meio habitual para recomposição de estoques comerciais, mostram-se bastante reprováveis sob o ponto de vista de sua repercussão social, tornando inaceitável a complacência do Estado para com tal comportamento” (STJ – HC 44986/RS – Sexta Turma, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 07.11.2005, p. 395).

STJ – “I – A lesividade da conduta, no delito de descaminho, deve ser tomada em relação ao valor do tributo incidente sobre as mercadorias apreendidas. II – Aplica-se o princípio da insignificância se o valor do tributo devido for igual ou inferior ao mínimo exigido para a propositura de uma execução fiscal. III- Circunstâncias de caráter eminentemente subjetivo, tais como reincidência, maus antecedentes e, também, o fato de haver processos em curso visando a apuração da mesma prática delituosa, não interferem na aplicação do princípio da insignificância, pois este está estritamente relacionado com o bem jurídico tutelado e com o tipo de injusto. Writ concedido.” (STJ – HC 34641/RS – Quinta Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 02.08.2004, p. 464).

STF – “Descaminho considerado como “crime de bagatela”: aplicação do “princípio da insignificância”. Para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada, assim a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica causada (HC 84.412, 2ª T., Celso de Mello, DJ 19.11.04). A caracterização da infração penal como insignificante não abarca considerações de ordem subjetiva: ou o ato apontado como delituoso é insignificante, ou não é. E sendo, torna-se atípico, impondo-se o trancamento da Ação Penal por falta de justa causa” (AI-QO 559904 / RS – Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 26-08-2005, p. 26).

Como se vê, nem mesmo no âmbito do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a questão se encontra pacificada, havendo ainda inúmeros outros acórdãos a demonstrar a oscilação da jurisprudência dessa Corte Superior: HC 33655/RS, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 09.08.2004, p. 280; HC 38965/RS, Quinta Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 22.08.2005, p. 308; REsp 633657, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 06.12.2004; HC 34827/RS, Quinta Turma, Rel. Minª Laurita Vaz, Rel. p/ Acórdão Min. Min. Felix Fischer, DJ 17.12.2004, p. 585;

Por fim, registre-se o entendimento que vem se assentando no TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, de modo a afastar a aplicação do princípio da insignificância nos casos em que não se trata da primeira incursão na atividade delituosa, ao argumento de que a reiteração do crime de descaminho demonstra possuir o agente conduta social inadequada. (HC 2004.04.01.034885-7, 4ª Seção, Rel. Des. Néfi Cordeiro, julgado em 18.04.2005).

4. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, sustentamos que a inexistência de outros registros criminais pela prática do mesmo crime não pode funcionar como conditio sine qua non ao reconhecimento do crime de bagatela. Assim, um fato materialmente atípico não pode tornar-se típico tão-somente em face da vida pregressa do agente. A insignificância penal, como ressaltou o Eminente Min. Celso de Melo no julgamento do supracitado HC 84.412, 2ª T., DJ 19.11.04, deve ser valorada de forma objetiva, ou seja, levando-se em consideração certos vetores que permeiam somente o contexto fático, tais como “(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada”. Assim, no crime de roubo por exemplo, não obstante o pequeno valor da coisa subtraída, não terá aplicação o referido preceito, ante a grave ameaça ou violência dirigida à vítima, denotando a periculosidade social e a reprovabilidade no comportamento do agente.

BETTIOL, Giuseppe. Direito penal, tradução brasileira e notas do professor Paulo José da Costa Júnior e do magistrado Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 1966, v, I.

GOMES, Luiz Flávio. Critérios determinantes do princípio da insignificância. Disponível em: . Acesso em 12.03.2006.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito penal brasileiro. Parte geral. 5. Ed. ver. e atual. São Paulo: RT. 2004.