1. Introdução2. O que é tributo3. O que é lançamento4. A fórmula da lei brasileira 5. Irrelevância da terminologia6. Conclusões
1. Introdução
Tributaristas de reconhecida autoridade consideram tributo sem lançamento todo aquele cujo pagamento é feito sem que a autoridade administrativa tenha determinado o valor a ser pago nem tenha feito a verificação dessa determinação realizada pelo contribuinte. Sempre que a lei estabelece para o contribuinte o dever de pagar o tributo cujo valor é por ele próprio apurado, sem qualquer intervenção da autoridade administrativa, tem-se, segundo aqueles tributaristas, um tributo sem lançamento. No Direito Tributário brasileiro o legislador utilizou-se de uma fórmula segundo a qual o lançamento é privativo da autoridade administrativa e nos casos em que a lei estabelece para o sujeito passivo o dever de pagar antecipar o pagamento do valor que ele próprio apura o lançamento dá-se por homologação, ainda que apenas tácita, neste caso configurada com o decurso do prazo de decadência do direito de a Fazenda Pública efetuar o lançamento. Para os tributaristas que sustentam a existência de tributo sem lançamento, porém, nosso legislador utilizou-se de artifícios perfeitamente dispensáveis. A questão que se coloca, então, é a de saber se no plano da Teoria Geral do Direito, sem levarmos em conta nenhum ordenamento jurídico positivo, é possível um tributo sem lançamento. Pensamos que a resposta a essa questão deve ser negativa e neste estudo pretendemos demonstrar a impossibilidade de tributo sem lançamento. Como a maioria das divergências em torno de teses jurídicas situa-se nos conceitos que os enunciados dessas teses albergam, e não nas teses propriamente, é importante que se estabeleça desde logo o que se entende por tributo, e o que se entende por lançamento, quando se afirma a impossibilidade de tributo sem lançamento. É importante insistirmos em que as leis devem ser feitas com observância dos princípios de lógica jurídica, e para tanto devem respeitar os conceitos estabelecidos no plano da doutrina. A não ser assim o sistema jurídico deixa de merecer o nome de sistema, e como advertem com inteira propriedade Diogo Leite de Campos e Mônica Neves Leite de Campos, “as normas tributárias nada mais serão do que um “agregado” informe, unidas só pela vontade imperiosa do legislador.” (Diogo Leite de Campos e Mônica Horta Neves Leite de Campos, Direito Tributário, 2ª edição, Del Rey, Belo Horizonte (Brasil ), 2001, pág. 15).
2. O que é tributo
2.1. Os aspectos relevantes do conceito Quando se define um conceito tem-se de abordar todos os seus aspectos, pois do contrário não se terá realmente uma definição. Aqui, porém, não é necessária uma definição de tributo. Basta que sejam esclarecidos aspectos do conceito. Os aspectos relacionados com a t tese a ser demonstrada. Importa-nos apenas a indicação dos aspectos do tributo que são relevantes nesse conceito, para afastar possíveis dúvidas no que diz respeito à tese em cujo enunciado está utilizado, vale dizer, a tese que afirma a impossibilidade de tributo sem lançamento. Esses aspectos dizem respeito à natureza da obrigação tributária como obrigação decorrente da lei, como obrigação em cuja gênese não está a vontade das partes na relação jurídica, e ao objeto dessa obrigação, como prestação pecuniária cujo montante geralmente depende de determinação.
2.2. Obrigação decorrente da lei
Embora todas as obrigações jurídicas decorram, em última análise, da lei, existem aquelas que decorrem da lei apenas indiretamente, porque dependem da vontade para a sua formação, e outras que decorrem diretamente da lei, não sendo a vontade um elemento diretamente participante de sua gênese. As primeiras são as obrigações ditas contratuais, ou ex voluntate. As últimas são as obrigações ditas legais, ou ex lege. Entre as obrigações legais, ou ex lege, existem as que dizem respeito aos direitos ditos disponíveis, e aquelas que dizem respeito aos direitos ditos indisponíveis. Essa distinção é relevante no caso e a ela voltaremos adiante, quando cuidarmos do lançamento tributário. Por enquanto fiquemos apenas com a distinção entre obrigações legais e obrigações contratuais. Quando alguém adquire um automóvel, assume a obrigação de pagar o respectivo preço. Trata-se neste caso de uma obrigação contratual, ou ex voluntate, porque embora decorra indiretamente da lei segundo a qual todos têm o dever de cumprir os contratos que celebram, decorre diretamente do contrato em cuja formação a vontade das partes é elemento essencial. Quando alguém aufere renda, assume a obrigação de pagar o imposto correspondente. Trata-se neste caso de uma obrigação legal, ou ex lege, porque decorre diretamente da lei tributária que, por se haver concretizado sua hipótese de incidência, incidiu e gerou a obrigação tributária, independentemente da vontade daquele que auferiu a renda. Seja legal, ou contratual, a obrigação, sempre haverá a necessidade de determinação da respectiva prestação pecuniária, vale dizer, o preço, ou o tributo a ser pago.
2.3. Prestação pecuniária
Realmente, em qualquer dos casos trata-se de uma prestação pecuniária e existe a necessidade de ser feito o seu acertamento, vale dizer, a determinação do respectivo valor. No caso da aquisição do automóvel é certo que esse acertamento ocorre, em princípio, no ato da celebração do contrato. Entretanto, pode dar-se que o contrato não se tenha consumado, e tenha sido feita a entrega do automóvel em confiança ao adquirente, ficando o preço a ser posteriormente ajustado. Mesmo assim a obrigação de pagar o preço será uma obrigação voluntária, ou contratual. Nas obrigações contratuais, ou voluntárias, como a vontade é elemento formativo essencial, o acertamento da prestação pecuniária dá-se, em princípio, pela vontade das partes. Seja o acertamento anterior à efetiva formação do contrato, no caso da compra e venda do automóvel, seja o acertamento posterior em situações como a que acima referimos, ou o acertamento que se faz necessário em situações as mais diversas vivenciadas em outros contratos, será ele feito, em princípio, por ato de vontade das partes contratantes. E quando esse acertamento se revela inviável, terminam as partes recorrendo a um terceiro, seja um árbitro ou um juiz, que o fará de forma neutra, imparcial. Nas obrigações legais, ou ex lege, o acertamento pode ser feito mediante acordo entre as partes, e pode também ocorrer que esse acordo não seja admissível. Aqui se impõe a distinção que acima anunciamos entre obrigação legal que envolve direito disponível e obrigação legal que envolve direito indisponível.
2.4. Obrigação legal e direito indisponível.
A obrigação pode ser de natureza legal, ou ex lege, porque não nasceu da vontade do obrigado, mas diretamente da lei, mas ainda assim envolver um direito disponível. É o caso, por exemplo, da obrigação de indenizar dano decorrente de ato ilícito. É uma obrigação que decore diretamente da lei, mas envolve direito patrimonial que é disponível. Neste caso o acertamento do valor da indenização pode ser feito contratualmente, vale dizer, pode ser feito por acordo entre as partes. A obrigação de natureza legal, ou ex lege, porém, pode envolver direito indisponível. É o caso do tributo, por exemplo, do qual a autoridade administrativa não pode dispor e por isto não pode fazer acordo com o contribuinte em torno de qual seja o valor respectivo (Situações especiais eventualmente admitidas pela lei não invalidam, mas antes confirmam, essa afirmação). Em sendo assim, ou a parte devedora admite pagar exatamente o que a lei determina, e quanto a isto concorda a parte credora, não por transigência mas porque em seu modo de ver a prestação oferecida é exatamente aquela que é devida, nos termos da lei, ou então o acertamento será feito por terceiro, árbitro ou juiz, tal como acontece nos casos em que as partes embora podendo transigir não o fazem.
2.5. O tributo como direito indisponível
Como direito indisponível se entende aqui aquele do qual não pode dispor a pessoa encarregada de exercê-lo, vale dizer, a pessoa encarregada de exigir o cumprimento da obrigação. É o caso do tributo, como um direito do Estado, porque a autoridade incumbida de exigir o pagamento correspondente não pode dispor do direito do Estado para com ele negociar, embora o Estado, falando pela voz do legislador, possa dele dispor. Embora possa a autoridade administrativa concordar com o valor pago pelo contribuinte, ela só pode fazê-lo se entender que a apuração foi feita nos termos da lei e que, em conseqüência, aquele é o valor realmente devido. Se entender que o valor pago é inferior ao devido tem o dever de cobrar a diferença, e se entender que o valor pago é superior ao devido tem o dever de restituir ao contribuinte a diferença. A peculiaridade da relação tributária, que nos autoriza a afirmar a impossibilidade de tributo sem lançamento, consiste na atribuição que a lei confere ao credor para fazer, como parte na relação jurídica obrigacional, o acertamento desta, vale dizer, a determinação do valor devido. Esse acertamento é o lançamento tributário. Lançamento que assim é, em qualquer caso, atividade privativa da autoridade administrativa, e que em qualquer caso se faz necessário, como adiante se verá.
3. O que é lançamento
3.1. Atividade vinculada e obrigatória
Exatamente porque o tributo é um direito indisponível, a atividade de lançamento é vinculada e obrigatória. A autoridade administrativa dela incumbida não tem a faculdade de exercitá-la, ou não, a seu critério. É obrigada a exercitá-la sempre que no mundo fenomênico se configurar a situação na qual o lançamento é cabível. Mesmo nos casos em que a lei determina ao contribuinte que apure o valor do tributo e faça o pagamento respectivo sem que a autoridade se tenha sobre ele manifestado, restará sempre à autoridade o dever de verificar aquela apuração para, considerando-a correta, afirmar que assim a considera.
3.2. Procedimento ou ato de determinação.
O lançamento, como atividade privativa da autoridade administrativa, pode ser um procedimento e pode ser um ato. Depende das circunstâncias de cada caso. Se o contribuinte nada apurou, seja porque não tem o dever legal de fazê-lo, seja porque descumpriu o seu dever legal, e a autoridade toma conhecimento da ocorrência do fato gerador do tributo, vale dizer, toma conhecimento de que no mundo fenomênico concretizou-se a situação prevista em lei como necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária, tem ela o dever funcional de determinar e de cobrar o tributo. Essa determinação em princípio pode ser feita mediante um único ato: a lavratura de um auto de infração. E se o contribuinte não se opõe, não impugna o auto de infração, o lançamento estará consumado com aquele ato. Será um ato, simplesmente. Quanto ocorre impugnação, porém, o lançamento passa a ser um procedimento, uma séria ordenada de atos tendentes a final afirmação de que determinado valor é o devido. Pode ocorrer também que a própria lavratura do auto de infração seja precedida de outros atos administrativos, que a ele se somam compondo um procedimento. Seja como for, no plano jurídico será indispensável, em qualquer caso, a manifestação da autoridade administrativa sobre o valor do tributo devido, e essa manifestação configura o lançamento tributário. Por isto é que Leite de Campos, ao sustentar a natureza meramente declaratória do lançamento tributário, assevera com inteira propriedade: “Este procedimento de liquidação é um momento insuprimível da relação jurídica tributária, decorrente do facto de que, para se determinar o montante da obrigação a cargo de cada um dos sujeitos passivos, teve de se levar a cabo um conjunto de operações. Sendo a liquidação uma operação necessária e co-natural com a obrigação tributária, dado seu caráter de obrigação legal. Obrigação cujo montante não é negociado previamente pelas partes antes do seu surgimento.” Realmente, como a obrigação tributária é, repita-se, uma obrigação ex-lege, a aplicação da lei que a institui, ao fato previsto na respectiva hipótese de incidência, implicando necessidade de liquidação, ainda quando feita pelo contribuinte está sempre sujeita a verificação pela autoridade administrativa, a menos que se entenda que as divergências eventualmente surgidas nessa liquidação devem ser submetidas a um terceiro, juiz ou árbitro, o que não nos consta ocorrer nos ordenamentos jurídicos em geral. Por esta razão se pode dizer que o contribuinte jamais poderá fazer uma liquidação definitiva. Como ensina Ferreiro Lapatza, “Las liquidaciones realizadas por el contribuyentes son siempre provisionales. La Administración, dentro del procedimiento liquidatorio, puede siempre, cuando constate su inexactivude, realizar las oportunas rectificaciones.” (Jose Juan Ferreiro Lapatza, Curso de Derecho Financiero Español, 12ª edición, Marcial Pons, Madrid, 1990, pág. 648)
3.3. A omissão da autoridade administrativa
Quando ocorre o fato gerador de um tributo e não é feito o seu pagamento, a autoridade tem o dever de constatar o fato, apurar o valor devido e promover-lhe a cobrança. Se não age e termina o prazo de que para tanto dispunha, apagam-se no mundo jurídico os efeitos daquele fato gerador. Não se há de falar mais em tributo.
Quando o tributo é apurado e pago pelo contribuinte existe tributo e existe lançamento, ainda que por simples ficção jurídica. Configura-se o lançamento, neste caso, pelo ato da autoridade administrativa que afirma estar correta a apuração feita pelo contribuinte, e se tal ato não é praticado, o lançamento existirá como ficção jurídica, com o decurso do prazo de que dispunha a autoridade para lançar. Isto é uma exigência da segurança jurídica, que estaria degradada se a autoridade dispusesse de tempo indeterminado para verificar a apuração feita pelo contribuinte.
4. A fórmula da lei brasileira
Diante dessa realidade que em lógica jurídica não pode ser negada, a lei brasileira adotou a fórmula do lançamento por homologação, inclusive por homologação tácita, fruto salutar do genial Professor Rubens Gomes de Sousa, pioneiro notável nos estudos do Direito Tributário em nosso país.
Incompreendida e injustamente criticada por vários doutrinadores, ela merece todo o nosso respeito, porque equaciona magistralmente a idéia de lançamento como atividade privativa da autoridade administrativa, com a atribuição ao contribuinte do dever de apurar o valor do tributo, e de fazer o pagamento deste, independentemente de manifestação da autoridade administrativa, à qual fica sempre assegurada a possibilidade de rever aquela apuração e cobrar, se for o caso, as diferenças que forem constatadas.
Sobre o assunto manifestou-se Soares Martinez, afirmando:
“Tem sido muito discutida a natureza desta autoliquidação, à qual vários autores negam a natureza de acto tributário, enquanto outros pretendem que se trata de uma liquidação realizada pelo contribuinte no uso de uma delegação do Fisco. (Fenech, Armindo Monteiro ). Pugliese admitiu o “autoaccertamento” como uma espécie de “accertamento”; enquanto Tesoro lhe negou tal qualidade, porque o dito “autoaccertamento, embora idêntico substancialmente ao “accertamento”, pelo fim e pelos resultados, não o seria quanto à eficácia jurídica, pois o “accertamento” teria natureza obrigatória, vinculativa, que Tesoro nega ao “autoaccertamento”. Essa mesma posição foi defendida por Giannini, por Berliri, por Pistone, e, entre nós, pelo Prof. Alberto Xavier. Torna-se difícil não atribuir à autoliquidação a natureza, pelo menos, de liquidação provisória, modificável, revogável, por acto da Administração. Aliás, a tese favorável à idéia de poderes delegados pelo Fisco nos contribuintes para efeitos de liquidação parece encontrar apoio no art. 2º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, de 1963, o qual previa que os direitos do Estado à liquidação e cobrança de impostos fossem exercidos por “entidades de direito público ou privado”. No Direito brasileiro, o dito autolançamento é considerado como lançamento sujeito a homologação da Fazenda Pública, que terá lugar tacitamente, pelo silêncio da Administração, após o decurso de cinco anos (Código Tributário Nacional, art. 150 ). E parece que semelhante entendimento poderá defender-se no Direito Fiscal português (vd. Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, art. 71º, nº 9 ). (Soares Martínez, Direito Fiscal, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 1995, págs. 312/313). Como se vê da lição de Martínez, mesmo que a lei não se refira a um lançamento por homologação, este existirá, sempre, consubstanciado na manifestação da Administração Tributária a respeito da determinação, feita pelo sujeito passivo, do valor do tributo. Manifestação que poderá ser expressa, ou tácita, entendida esta última como decorrência do silêncio da Administração até final do prazo em que se extingue o seu direito de rever a apuração feita pelo sujeito passivo.
5. Irrelevância da terminologia
Realmente, a terminologia utilizada pela lei é inteiramente irrelevante para apoiar ou para negar a tese que sustentamos, da impossibilidade de tributo sem lançamento. A fórmula adotada pela lei brasileira aplica-se bem ao Direito português, como acertadamente observou Martinez, e se aplica ao Direito de qualquer país, bastando que nele exista: a) o tributo como prestação pecuniária compulsória a depender de um acertamento; b) a atribuição legal de competência à Fazenda Pública credora para fazer, unilateralmente, esse acertamento; e c) um prazo para que a Fazenda Pública o realize, sob pena de extinção de seu direito de fazê-lo. Existiria, sim, tributo sem lançamento, se o tributo fosse uma contribuição voluntária; ou então, sendo compulsória, tivesse a Fazenda Pública de pedir ao juiz o acertamento da prestação sempre que discordasse do contribuinte quanto a ela.
6. Conclusões
Diante de tudo o que foi aqui exposto podemos afirmar as seguintes conclusões:
1ª) – Nas relações jurídicas obrigacionais cuja prestação dependa de acertamento, este pode ser feito por consenso entre as partes quando se trate de obrigações decorrentes de atos de vontade ou, em se tratando de obrigações decorrentes da lei quando o acertamento diga respeito a direitos disponíveis.
2ª) – Nas relações jurídicas obrigacionais decorrentes da lei, cuja prestação constitua direito indisponível, a prestação há de ser sempre aquela prevista pela lei, segundo o entendimento harmônico das partes. Havendo divergência sobre a aplicação da lei definidora da prestação, e sobre o valor desta, portanto, o acertamento em princípio deve ser feito por terceiro imparcial, árbitro ou juiz.
3ª) – Quando a lei atribui à parte credora competência para fazer o acertamento da prestação, independentemente da vontade da parte devedora, como acontece nas relações tributárias, tem-se o que neste estudo denominamos lançamento.
4ª) – Finalmente, se por tributo entendemos uma prestação pecuniária compulsória que depende de acertamento, e se a lei atribui ao fisco competência para fazê-lo independentemente da vontade do contribuinte, tem-se de concluir pela impossibilidade jurídica de tributo sem lançamento.