Até antes do advento da vigente Carta Magna, o contraditório no processo penal era constitucionalmente circunscrito à instrução criminal (CF de 10/11/37: art. 122, n° 11; CF de 18/09/46: art. 141, § 25; CF de 24/11/67 e EC n° 1, de 17/10/69: art. 153, § 16), isto é, apenas no estágio que tem início após ao recebimento da denúncia ou da queixa, consoante disposto no Capítulo I do Título I do Livro II do Código de Processo Penal (arts. 394 e segs).Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 05/10/88, no entanto, a situação se modificou, porquanto o contraditório passou a ter maior amplitude de incidência, não mais se restringindo à instrução criminal. Com efeito, assim estatuiu o inc. LV do art. 5°, caput: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Tem-se, então, que excluída ficou a limitação de que apenas a instrução criminal será contraditória.
Em vista disso, passou-se a formular a seguinte indagação: de acordo com a nova sistemática constitucional, o contraditório alcança os atos do Inquérito policial ?
Ao que se sabe, grande parte dos autores que abordaram o tema entende pela negativa, isso à afirmação de que aquele procedimento seria constituído de peças meramente informativas, com a tão só finalidade de servir de base para eventual e futura proposição de Ação Penal.
Data venia, tal afirmativa não é de todo procedente, porque destoa da realidade.
A propósito, inteira razão tem MARTA SAAD, que, corroborando o que já mencionei alhures, com todo o acerto explana, verbis: “os elementos constantes do Inquérito policial não se destinam apenas a informar. Destinam-se, também, a convencer, quanto à viabilidade ou não da Ação Penal, ou quanto às condições necessárias para a decretação de qualquer medida ou provimento cautelar no curso do Inquérito policial: “não se cuidam de elementos destinados, apenas, a noticiar, ou informar, mas de elementos fadados a convencer. Informação difere do conhecimento sobre algo, ou alguém” (in O direito de defesa no Inquérito policial, ERT, 2004, pág. 160). E complementa a autorizada autora: “O Inquérito policial traz elementos que não apenas informam, mas de fato instruem, convencem, tais como as declarações de vítimas, os depoimentos das testemunhas, as declarações dos acusados, a acareação, o reconhecimento, o conteúdo de determinados documentos juntados aos autos, as perícias em geral (exames, vistorias e avaliações), a identificação dactiloscópica, o estudo da vida pregressa, a reconstituição do crime. Assim, “não é senão em conseqüência do Inquérito que se conserva alguém preso em flagrante: que a prisão preventiva será decretada, em qualquer fase dele, mediante representação da autoridade policial, quando houver prova da existência de crime e indícios suficientes da autoria, e como garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal; que à autoridade cumpre averiguar a vida pregressa do indiciado, resultado dessa providência, como é sabido, sensíveis repercussões na graduação da pena” (idem, pág. 161).A seu turno, CÉLIO JACINTO DOS SANTOS ressalta, com toda a propriedade, que “o Inquérito não é uma mera peça informativa, como quer parcela minoritária da doutrina e da jurisprudência, mas, um instrumento de defesa da cidadania” (in, “Inquérito Policial: Instrumento de Defesa da Cidadania”, Revista CEJAP,Ano 6, nº 8, Fevereiro/2005, pág. 55)
Na verdade, certas peculiaridades desautorizam o ponto de vista dos que acham que o Inquérito tem caráter meramente informativo. Tal argumento não tem nenhum sentido quando se trata, verbi gratia, de prisão em flagrante (art. 301 do CPP), e também de decretação de custódia preventiva (art. 311) , como igualmente de prisão temporária (Lei nº 7.960, de 21/12/89), estas últimas decorrentes de representações feitas por autoridades policiais, ainda na fase do Inquérito.
É que, para examinar a legalidade da lavratura de auto de prisão em flagrante (CF, art. 5º, caput, inc. LXII e LXV, – e igualmente para apreciar pedido de decretação de prisão preventiva ou temporária, – o juiz terá que se valer de prova pré-constituída (pois não se lhe ensejará particularmente promover qualquer ato de instrução), sendo certo que na colheita dessa prova – com base na qual logo decidirá o magistrado – haverá a autoridade policial de ter garantido o princípio do contraditório, com efetiva intervenção de advogado (em assistência ao cidadão), a quem obrigatoriamente haja propiciado oportunidade para contraditar testemunhas e fazer reperguntas, isso porque a prisão afeta o status libertatis, que não pode ocorrer sem o devido processo legal. Por conseguinte, se os elementos oferecidos ao juiz com vistas ao constitucional exame da legalidade de uma prisão em flagrante, ou à decretação de uma prisão preventiva, ou ainda a de uma prisão temporária, não tiverem sido objeto do contraditório, é óbvio que o magistrado não poderá, validamente, proferir a decisão colimada, porquanto o referido princípio, como dito, tem cabimento mesmo em atos do Inquérito policial, que é espécie de procedimento administrativo, daí a observação de MARCELO FORTES BARBOSA de que “não parece correto entender que a expressão “processo administrativo” esteja colocada na Constituição em sentido estrito, porque, com a alusão a “acusados em geral”, tem-se por conseqüência a abrangência de todas as situações coativas, ainda que legais, a que se submetem os cidadãos diante de autoridades administrativas” (in Garantias Constitucionais de Direito Penal e de Processo Penal, Malheiros, 1993, pág. 83).
Se bem que aludidas circunstâncias se desenvolvam ainda na fase do Inquérito policial, – mas precisamente pelo motivo aqui expendido, – o contraditório ali é imprescindível, sendo que assim acentua ROGÉRIO LAURIA TUCCI: “E tal é a força desse postulado básico do processo penal, que o direito do cidadão à defensoria técnica exsurge antes mesmo da formalização da acusação, bastando, para a sua concreção, que a pessoa necessitada tenha, de qualquer maneira, sua liberdade cerceada à simples iniciação da persecutio criminis” (in Constituição de 1988 e Processo, Saraiva, 1989, pág. 23).
Como visto, a peça constante de Inquérito policial, com fundamento só na qual deverá pronunciar-se o juiz a respeito da custódia de alguém, data venia não tem efeito meramente informativo, eis que o fato produz conseqüência processual (a prisão), e sobre a prova pré-constituída deverá decidir o julgador, que velará pelo fiel atendimento ao princípio do contraditório, firme na seguinte observação do mestre JOSÉ FREDERICO MARQUES: “se a prova foi colhida sem a participação da parte contra quem deva operar, mínimo ou quase nenhum tem de ser o seu valor. O juiz, se possível, deve mandar repeti-la para que assim se obedeça aos postulados e garantias do contraditório” (in Instituições de Direito Processual Civil, Forense, 1959, Vol. III, n° 772, pág. 393).
A privação da liberdade de qualquer pessoa – repita-se, – há que ser determinada com o resguardo de todas as cautelas, proporcionando-se-lhe amplo direito de defesa, mesmo na fase do Inquérito policial, com a garantia do princípio do contraditório, a respeito do que enfatiza ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, verbis: “Assim, em face dos referidos enunciados, infere-se que a restrição ao direito de liberdade do acusado precisa resultar, não simplesmente de uma ordem judicial, mas basicamente de um provimento resultante de um procedimento qualificado por garantias mínimas, tais como a imparcialidade do juiz, a publicidade, a igualdade processual, o contraditório, o duplo grau de jurisdição etc” (in Presunção de inocência e prisão cautelar, Saraiva, 1991, pág. 78).
Infelizmente, a inobservância ao princípio do contraditório, insculpido no art. 5°, caput, inc. LV, do Estatuto Fundamental, tem ocorrido com relativa freqüência, tanto que, sobre o assunto, assim destacou NAGIB SLAIBI FILHO: “Tal dispositivo tem sido, simplesmente, ignorado na prática pretoriana, o que representa grave violação dos direitos fundamentais e permite a manutenção de um processo diretivo e autoritário, o que só serve para denegrir a imagem da magistratura” (“Dever constitucional do magistrado: a garantia do contraditório e da ampla defesa”, in Seleções Jurídicas, COAD-ADV, Dezembro/90, pág. 21).Certo é que em nem todos os casos de lavratura de auto de prisão em flagrante o coato se faz acompanhar de advogado por si constituído. Porém, tal circunstância não justifica o desprezo ao mandamento constitucional, já que, como autorizado ao juiz (art. 263 do CPP), na hipótese caberá à autoridade policial recorrer ao serviço de Assistência Judiciária ou à Defensoria Pública (v. também § 1º do art. 22 da Lei n° 8.906, de 4/7/94), visando à indicação de Defensor , para que se cumpram os ditames relativos à assecuração do direito individual do cidadão, sob pena de a omissão ocasionar o relaxamento da prisão dita em flagrante, decretável pelo juiz, ou, se for o caso, o não conhecimento de pedido de prisão preventiva ou temporária.
Por fim, veja-se que, sobre o tema, assim proclamou o antigo Tribunal Federal de Recursos: “Correto e pacífico é hoje o entendimento de que o auto de prisão em flagrante está sujeito aos critérios de nulidade formal, ainda que tal falha seja imprejudicial à acusação, pode, contudo, o vício tornar nula a fundamentação da custódia processual” (Ac. de 29/03/83, da 3ª Turma do TFR, no Rec. Crim. nº 938-SC, Rel. Min. Flaquer Scartezini, decisão unânime, in DJU de 19/09/85).
Arrematando, diga-se que, quando juiz criminal, por diversas vezes relaxei prisões em autos de comunicações, nos quais deixou de ser observado na esfera policial o princípio constitucional do contraditório, precisamente nos depoimentos de testemunhas em cujas declarações se fundavam os pedidos de manutenção das custódias.
Em conclusão: os atos do Inquérito policial não são, todos, meramente informativos, eis que, a alguns deles e face a peculiaridades, – como aqui quantum satis evidenciado, – deve ser obrigatoriamente observado o princípio constitucional do contraditório.