O expresso primado do due process of law, de origem inglesa, está contido no inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, o qual proclama “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Genericamente, segundo NERY (2004, p. 63), caracteriza-se pelo trinômio vida-liberdade-propriedade, o que vale dizer, tudo o que disser respeito à tutela desses bens da vida está sob a tutela do due process of law.
O princípio conota dois aspectos bipartidos, um correspondente ao direito material (substantive due process) e outro atribuído à tutela dos direitos processuais por meio do processo (procedural due process).
1 O Devido Processo Legal Substancial
À cláusula do due process of law atribui-se hoje uma dimensão que ultrapassa os ditames do devido processo legal estritamente processual. Modernamente, concebe-se o devido processo legal substancial como uma garantia que constitui um vínculo autolimitativo do poder estatal, fornecendo meios de censurar a própria legislação e ditar a ilegitimidade de leis que afrontem as grandes bases do regime democrático (DINAMARCO, vol. I, 2004, p. 245). Acerca da matéria preceitua DINAMARCO (2004, vol. I, p. 247):
O perfil do processo que resulta dessa garantia é o do processo justo e équo que, na voz da mais moderna doutrina, é o processo regido por garantias mínimas de meios e de resultado, com emprego de instrumental técnico-processual adequado e conducente a uma tutela adequada e efetiva (Luigi Paolo Comoglio). O contexto de garantias tipificadas e atípicas contidas da formula due process of law oferece aos litigantes um direito ao processo justo, com oportunidades reais e equilibradas.
Em outras palavras, o que prescreve o supracitado doutrinador é a imprescindibilidade que o processo seja realizado com garantias mínimas. As primeiras dizem respeito aos meios, que constituem o melhor caminho para chegar a um bom resultado no julgamento. Para tanto, devem os meios ser adequadamente empregados, sob pena de não se ter um processo justo e équo. As segundas referem-se às garantias de resultado, mediante a oferta de julgamento justo nos ditames ditados pela Constituição e pela lei.
Para o citado doutrinador, empregar os meios adequados aos litigantes do processo administrativo é reafirmar as garantias mediante a cláusula genérica do devido processo legal (ampla defesa, contraditório, imparcialidade do juiz, inadmissibilidade de provas ilícitas etc), sobre as quais deverá o processo fundamentar-se. Em particular, ainda que não disponha expressamente em sua obra, as garantias de meios as quais trata DINAMARCO nada mais são as garantias decorrentes do primado do devido processo legal processual, uma vez que se referem à forma como o processo deve instrumentalizar-se. Saliente-se, pois, que essas garantias serão estudas no campo destinado ao devido processo legal processual.
Ademais, quanto às garantias de resultado, DINAMARCO (2004, vol. I, p. 247) corrobora que não basta que sejam empregados meios adequados durante o processo se a decisão não condiz com uma tutela justa e efetiva. Nem se admite que o julgador se aventure a decidir a causa segundo seus próprios critérios de justiça, sem ter empregado a Constituição e as leis (todo os sistema jurídico).
A despeito do devido processo legal em sentido material, dispõe com propriedade DIDIER JÚNIOR (2005, vol. I, p. 30): “As decisões jurídicas hão de ser, ainda, substancialmente devidas. Não basta sua regularidade formal; é necessário que uma decisão seja substancialmente razoável e correta”. Acrescenta que é desta garantia que surgem os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. O aplicador do direito haverá de avaliar o caso concreto nos termos da “razão” e da “proporção” para resolver qual das normas constitucionais (ou até mesmo infraconstitucionais) deve prevalecer no julgamento. Nessa mesma linha de entendimento, tem-se CAVALCANTE (2003, p. 42):Nesse contexto, consideramos o devido processo legal substantivo como um dos principais instrumentos jurídicos do Estado Contemporâneo, permitindo buscar valores fundamentais no próprio Direito, não se limitando ao texto da lei, afinal, a mera sujeição à lei é insuficiente para garantir materialmente o Direito. […]A proporcionalidade e a razoabilidade são princípios que viabilizam a observância do devido processo legal substantivo, permitindo o funcionamento do Estado Democrático de Direito e preservando os Direitos e Garantias Fundamentais.
Como se verifica, o devido processo legal substancial autoriza o julgador a avaliar qual norma será mais bem aplicada quando do julgamento, tendo em vista a observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Relativamente à razoabilidade, é usada com vários sentidos. Fala-se em razoabilidade de alegação, razoabilidade de interpretação, razoabilidade da função legislativa. Dentre inúmeras acepções, faz-se preferência às acepções propostas por ÁVILA (2005, p. 103) e por BARROSO (2003, p. 226). O primeiro autor destaca três razoabilidades: a razoabilidade como equidade, a razoabilidade como congruência e a razoabilidade como equivalência. Tendo em vistas essas feições, apenas aqui não será analisada a última, face sua menor importância frente às demais. O segundo autor refere-se por bem à razoabilidade direta e à razoabilidade indireta.
No tocante à razoabilidade como equidade, atua como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, servindo de critério de harmonização da norma geral com o caso concreto (ÁVILA, 2005, p. 103). Em determinadas hipóteses, em virtude das especificidades que as norteiam, a norma geral não pode vir a ser aplicada, por se tratar de um caso anormal. A despeito, o doutrinador traz o seguinte exemplo verídico em sua obra (ÁVILA, 2005, p. 105):
Uma pequena fábrica de sofás, enquadrada como empresa de pequeno porte para efeito de pagamento conjunto dos tributos federais, foi excluída desse programa por infringir a condição legal de não efetuar a importação de produtos estrangeiros. O benefício é concedido às empresas nacionais como forma de estímulo à produção nacional, o que impede a importação de produtos estrangeiros por parte destas, sob pena de ter cancelado tal direito. De fato, a empresa importa quatro pés de sofá, para um único sofá, de uma só vez. Todavia, a importação não pode ser vista como uma infração ao passo de cancelar a garantia da empresa. A interpretação da lei que concede o benefício deve estar dentro do razoável. Em consonância com aquilo que seria aceitável pela norma. No caso em tela, o fato da empresa ter importado quatro pés de sofá, por si só, não deixa de estimular a produção nacional, e, conseqüentemente, não compromete o fim pelo qual o programa foi instituído. A respeito da matéria, corrobora ÁVILA (2005, p. 105):
Nem toda norma incidente é aplicável. É preciso diferenciar a aplicabilidade de uma regra da satisfação das condições previstas em sua hipótese. Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável a um caso se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária.
Constata-se, pois, à luz da razoabilidade como equidade, que ainda que sejam incidentes as leis, é preciso saber se ao caso concreto devam-se aplicá-las. Nem sempre as leis, aplicáveis à generalidade dos casos, poder ser considera aplicável a um determinado evento, haja vista suas especificidades, como ocorreu com o exemplo trazido à baila.
A segunda acepção destacada por ÁVILA (2005, p. 106), qual seja, a razoabilidade como congruência, exige a recorrência a um suporte empírico existente no sentido de vincular a causa pela qual foi instituída a norma à realidade. Seria nada mais, nada menos que a incidência da interpretação das normas em face de sua conformidade com os parâmetros externos a elas. Daí se falar em razoabilidade como congruência. A título exemplificativo, o autor sintetiza com o seguinte caso (ÁVILA, 2005, p. 106) : uma lei instituiu adicional de férias para os inativos. Levada a julgamento, considera-se indevida o adicional, por traduzir uma vantagem destituída de causa e do necessário coeficiente de razoabilidade, pois somente deve ter adicional de férias quem tem realmente férias. Em conseqüência disso, a instituição, ainda que por intermédio de lei formalmente correta, deve ser anulada, vez que não revela congruência com o que se dispôs disciplinar ao ser instituída.
Acrescenta ainda ÁVILA (2005, p. 107) que essa razoabilidade também assume importância nas hipóteses de anacronismo legislativo, isto é, naqueles casos onde a norma não mais possui razão para ser aplicada, ante ao novo contexto sócio-econômico. Dessa forma, a lei deve ser congruente tanto com a causa pela qual foi instituída como com o contexto sócio-econômico à época de sua aplicação.
Outrossim, no tocante à classificação da razoabilidade proposta por BARROSO (direta e indireta), cumpre destacar, inicialmente, a chamada razoabilidade interna. Segundo ele, a razoabilidade interna é a relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins. “Aí está incluída a razoabilidade técnica da medida” (BARROSO, 2005, p. 226). Fornece o seguinte exemplo ilustrativo:
Ao revés, se, diante do crescimento estatístico da AIDS (motivo), o Poder Público proíbe o consumo de bebidas alcoólicas durante o carnaval (meio), para impedir a contaminação de cidadãos nacionais (fim), a medida será irrazoável. Isso porque estará rompida a conexão entre os motivos, os meios e fins, já que inexiste qualquer relação direta entre o consumo de álcool e a contaminação.
A razoabilidade direta destacada por BARROSO é a que ÁVILA achou por melhor denominar de razoabilidade como congruência. Conforme se verifica, ambos os autores tratam da mesma coisa, com denotações distintas. Enfim, o certo é que a lei deve obter um elo de razoabilidade com os motivos, meios e fins pelos quais foi instituída. Do contrário, a lei será irrazoável, e, por conseguinte razoável será sua inaplicabilidade.
Deve-se, portanto, haver uma adequação da razoabilidade direta (ou se preferir, razoabilidade como congruência) na atividade de todos os órgãos estatais incumbidos da “roupagem judicante”, seja na esfera administrativa ou na esfera jurisdicional, no sentido de aplicar lei razoável e deixar de aplicar lei irrazoável. Não basta conferir razoabilidade ou irrazoabilidade a determina lei, é imperioso aplicá-los. Uma decisão razoável não comporta lei irrazoável.
Por fim, versa-se sobre a razoabilidade indireta. Em síntese, prescreve BARROSO (2005, p. 226) acerca da referida razoabilidade:De outra parte, havendo razoabilidade interna da norma, é preciso verificar sua razoabilidade externa, isto é: sua adequação aos meios e fins admitidos e preconizados pelo Texto Constitucional. Se a lei contravier valores expressos ou implícitos no Texto Constitucional, não será legítima nem razoável à luz da Constituição, ainda que o seja internamente. (Grifei).
Nesse sentido, a razoabilidade indireta remonta a idéia de que a Constituição Federal é base de todo ordenamento jurídico, e assim sendo, todas as demais leis devem razoabilidade perante ela. É simplesmente, a lei agir em conformidade com os princípios constitucionais.
Constata-se, singelamente, que o princípio da razoabilidade, ainda que não expressamente na Carta Magna, integra o direito constitucional brasileiro, por força da garantia do devido processo legal substancial, devendo o intérprete, diante do processo (administrativo e judicial) aplicá-lo.
De mais a mais, em relação ao princípio da proporcionalidade, também é usado em vários sentidos, sendo equiparado a proibição de excesso, a isonomia, ponderação de interesses, adequação, entre outros. Em regra, todas essas acepções revelam a idéia de que as decisões serão proporcionais quando adaptadas às circunstâncias de fato e de direito a cada caso concreto.
Na verdade, os mais variados sentidos empregados ao postulado da proporcionalidade revelam mais técnicas de aplicabilidade, cuja finalidade é servir de instrumentos ao aplicador com, vistas a respeitar a máxima do meio mais suave . Nesse sentido, são os ensinamentos de ÀVILA (2005, p. 112): O postulado da proporcionalidade não se confunde com a idéia de proporção em suas mais variadas manifestações. Ele se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?).
Assim, confere razão a DI PIETRO (2003, p. 81) ao revelar o princípio da proporcionalidade constitui um dos aspectos contidos no princípio da razoabilidade. “Isto porque o princípio da razoabilidade, entre outras coisas, exige proporcionalidade entre os meios de que se utiliza a Administração e os fins que ela tem que alcançar”.
Revela-se, pois, que o princípio da proporcionalidade está igualmente ligado ao primado do devido processo legal substancial como o princípio da razoabilidade. O julgador ao aplicar a norma ao caso concreto deverá observar aquela mais proporcional diante das circunstâncias factuais.
2 O devido processo legal processual
Sob a ótica da cláusula procedural due process, aplicável ao processo administrativo tributário, sintetiza NERY (2004, p. 62) que nada mais consiste na possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível.
O devido processo legal, expressão originária da inglesa due process of law, é erigido em nível constitucional no ordenamento pátrio, no rol dos direitos e garantias fundamentais. A Constituição de 1988 prescreve explicitamente em seu art. 5º, LIV que “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
No Sistema Constitucional Brasileiro, originariamente, o devido processo legal vinculou-se explicitamente ao processo penal. Depois se estendeu ao processo civil e atualmente a doutrina moderna posiciona-se favorável à existência do devido processo legal na esfera administrativa.
Com a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988, o processo administrativo foi encartado dentre os direitos fundamentais ao preceituar em seu artigo 5º, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (Grifei).
Com efeito, os incisos LIV e LV do art. 5º CF/88 impuseram a observância de um devido processo na via administrativa fiscal, com as garantias do contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Assim sendo, o devido processo legal não restringe apenas ao que diz respeito ao trinômio vida-liberdade- propriedade. Revela-se, sobretudo, a assegurar as garantias individuais decorrentes do primado do devido processo legal, nos termos do art. 5º, LV, CF/88; direito ao contraditório, direito à ampla defesa, direito de petição, direito à cognição formal e material ampla, direito a recurso hierárquico.