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Para que servem os intelectuais?

Melhores palavras para definir os intelectuais foram mesmo as de Sartre in verbis: “Um intelectual, para mim, é alguém que é fiel a um conjunto político e social, mas não deixa ele de contestá-lo”.

O intelectual tal qual o poeta Verlaine pontificou deve ser “maldito” e nomear coisas indizíveis, inomeáveis. Tratar de enfermidades, paganismos, loucuras, satanismos e de todas as fatalidades que envolvem a realidade humana de forma irremediável …

Duas obras são consideradas um marco no gênero maldito: “As flores do mal”, de Baudelaire e “Uma Estadia no inferno”, de Rimbaud.

O intelectual é uma testemunha atenta de seu tempo e percebe o que está em convulsão. Não traça normas a ninguém e nem detém nenhuma coisa.

Aponta para a desordem sem tentar controla-la. Busca a natureza intrínseca das coisas e as múltiplas verdades contidas numa mesma realidade.

A especialidade do intelectual é trazer a verdade para um lugar inesperado, mais que apenas uma testemunha, ele vê em si mesmo os vestígios do futuro e as pegadas do passado.

Dedica-se aos imprecisos contornos e aprimora cada vez mais seus dotes hermenêuticos, lendo o aparente e o sub-reptício.

O prazer do intelectual é execrar e ser execrado, é um ser absolutamente livre apesar de pertencer a todas as misérias do mundo.

Em recente artigo da Revista Época (no. 246) de fevereiro de 2003, Umberto Eco discorreu sobre a função dos intelectuais e, ressaltou três modelos destes, a saber, o de Ulisses que na Ilíada, assume a função do intelectual orgânico que mais tarde entraria em crise, não antes de inventar o “cavalo de Tróia”.

O segundo modelo é o de Platão que nomeia os intelectuais como os que possuem idéias próprias como também acredita ser os filósofos capazes de ensinar como governar bem.

O último modelo de intelectual é o de Aristóteles que foi tutor de Alexandre , o Grande, e lhe ensinou o que é política, ética, e muitas coisas capazes a habilita-los para o exercício do poder.

E acrescentou que o verdadeiro intelectual deve expressar idéias inovadoras por escrito, é como um pedreiro que dedica seu tempo livre a ajudar na reforma da sede do partido.

O papel de crítico dos intelectuais não fora olvidado e é lembrado pelo exemplo de Sócrates onde se tem a representação da consciência crítica do grupo, enfim, existe exatamente para incomodar…

O maldito Rimbaud condenava sua própria época, amaldiçoou o trabalho e se arremessou para a aventura pensando apenas em glória e na riqueza da ciência.

Ser intelectual não era uma vocação apenas, mas uma maldição, ter aos olhos a ardência da lucidez e, ao mesmo tempo, o colírio da ilusão…

O adjetivo maldito dado por Verlaine ao identificar a poesia de Rimbaud encerra a relação que existe entre o intelectual e a sociedade que é caracterizada pelo desencontro.

Esse”novo” modelo de intelectual estará próximo dos marginais, derrotados, vencidos e humilhados, é um cronista épico, é o depoente das emoções fortes e irracionais. Não deixa de sentir certa simpatia pela parte aniquilada pela realidade.

A relação do intelectual com os vencidos, é uma espécie de suicídio ritual, uma autoflagelação …

O suicídio é um caminho , um atalho para minimizar a distância entre o impossível e a sociedade real. É como o consolo reparador que se enxerga o suicídio de Madame Bovary, ou a insistência da idéia prevista em “Afeto que se encerra” de Paulo Francis que se dedicou em sua tarefa jornalística a detectar o “núcleo moral em dissolução” e a “progressiva brutalização das sociedades”, de certa forma segue o modelo de Karl Kraus um sutil comentarista de Viena do princípio do século XIX.

O intelectual maldito é o “funcionário da paixão inútil ” da humanidade segundo as proféticas palavras de Nelson Rodrigues, que entre muitos bordões escrachados também proclamou: “Toda unanimidade é burra !”.

Mas temos ainda o intelectual precursor que lança bases conceituais novas de repercussão social.

O perfil do precursor, todavia, resulta num cativante problema que focaliza a relação do conhecimento com as bases sociais que sustentam qualquer forma de compreensão da realidade.

Lucien Febre , historiador francês, estudou as sociedades segundo seus valores e crenças de uma época, e, portanto, através do declínio e aparecimento de conhecimentos e formas de mentalidade que supõem uma ruptura em relação aos marcos ideológicos anteriores.

Ao intelectual é possível formular crenças e conceitos à margem do senso comum e da religiosidade.

O precursor é o homem efetivo da realidade, é filósofo e, no entender de Nietzsche, é bem mais, consiste em ver as coisas pela primeira vez, despida de todo condicionamento social e cultural.

E neste sentido, o intelectual é “uma margem abreviada do mundo”, e retira de si a maior parte dos ensinamentos.

O saber intelectual se traduz em ser uma terrível inocência que lhe possibilita não obedecer à história.

Descobrir a distinção entre o saber e a repetição vulgar, sobrevoa permanentemente na tarefa do intelectual. Desta forma, há escritores e escreventes, alega o renomado ensaísta francês Roland Barthes.

Com efeito, enquanto o escrevente reduz a linguagem a um simples instrumento doutrinário, de comunicação imediatista, e no sentido original do termo, ou seja, no clérigo, é aquele que registra os fatos que vão acontecendo numa instituição qualquer.

Enquanto que o escritor é quem cultiva a letra. A palavra, e através do mistério da linguagem vai desvendando armadilhas da realidade e das formas de dominação.

O escritor mais se aproxima do precursor, enquanto que o escrevente mais atrelar-se-ia ao conceito tradicional de intelectual.

No exato instante do intelectual se converter em precursor, este descobre seus limites, as fronteiras institucionais da palavra, e só lhe resta o festim cético de acenar com suas impotências.

A idéia do intelectual foi imaginada por Karl Manheim que também denominou de inteligência livre ou socialmente desvinculada. Os intelectuais dependem de ideologias que expressam e caracterizam o conflito social. O intelectual encarna um complexo equilíbrio e a sua relativa dependência e também a sua relativa autonomia.

O precursor é particularmente livre das heranças culturais, e o ofício do intelectual consiste em saber quando um marco cultural aprofunda ou enfraquece sua influência na sociedade.

O intelectual se dará ao luxo de poder banalizar o extraordinário ou festejar o cotidiano.Seja para a conservar ou modificar os valores existentes , os intelectuais são um sinal assinalado exatamente no espaço das lutas sociais.

As lutas estas que se transcrevem nas sociedade contando com os intelectuais no sentido mais abrangente do termo, como seus cronistas, críticos, estimuladores e seus escudeiros…

E Marx conclui com citações retiradas da Divina Comédia que para entrar no mundo da ciência, ou seja, para que se abram os pórticos da ciência, é preciso atravessar os portões do inferno.

Outra nobre forma de intelectual é o revolucionário que no auge de sua força,s era o primeiro interessado a dissolver a unidade de valores que imperam.

Insere-nos na luta teórica, pois que liberta o conhecimento das fraseologias vazias e estreita contato coma ciência.

O intelectual retrata o que fazer, porém, dirige sua reflexão por outros caminhos, interpreta todas as tendências culturais, sociais, todos os fenômenos políticos e cotidianos, com a dimensão de uma sociedade permeada por lutas de classes.

Já o intelectual populista, é uma versão bufa do intelectual artesanal, para este, o capitalismo é considerado como uma falsificação inglória das relações sociais e, só pode ser combatido pela crítica. Os populistas politizavam a realidade com que expia a culpa de suas elites.

O intelectual cosmopolita possui como fonte inspiradora o aperfeiçoamento do patrimônio geral da cultura da humanidade.

As ideologias desenvolvimentistas e, de alguma maneira, as filosofias positivistas elaboradas na Europa do século XIX cumprem tal papel que se compromete com o permanente progresso em nome de uma sagrada”ordem racional”.

É evidente que no terreno das relações entre a cultura universal e as particulares, o filósofo Antônio Gramsci traça o conceito de intelectual cosmopolita com extrema precisão.

É forçoso admitir que Lênin corresponde em linhas genéricas ao chamado intelectual cosmopolita de Gramsci e, tal conceito ainda mais amplo também inclui os que são ligados às grandes instituições como por exemplo a Igreja.

O intelectual orgânico através da obra do filósofo italiano Gramsci, renovador da teoria política marxista, co-fundador do partido comunista e com sua obra quase inteiramente situada na filosofia da cultura, entendeu que a política é um caso especial de mobilização cultural.

Aliás, a história privada de Gramsci bem ilustra os seus pensamentos pois que era um “preso especial” de Mussolini, e, e por conta disso e de toda censura que pairava sobre ele, inovou a linguagem política, quando chama o marxismo de “filosofia da práxis”.

O intelectual tradicional é aquele que desenvolve as funções culturais de ligação entre as administrações políticas regionais ou nacionais com o conjunto da população ainda não incorporada às relações de produção capitalista.

È visto assim por Gramsci no exercício de certas profissões como advogados, médicos, tabeliães, padres e políticos..

Já os chamados intelectuais orgânicos correspondem à função de dominação cultural que procura atingir grupos sociais emergentes, forjados com o crescimento das forças produtivas e das relações sociais capitalistas.

Nesse grupo, insere-se os políticos jornalistas técnicos empresários e militares ligados às novas funções econômicas e a sua expansão em todos os recantos da sociedade.

Enquanto o intelectual tradicional age com o auxílio de formas de consciência já petrificadas na memória social, e o orgânico como indivíduo atuante no partido político que representa ativamente interesses sociais.

A atividade intelectual é sem dúvida uma atividade política, assim na mesma medida em que muitos intelectuais fogem das instituições onde se concentra o poder, outros se dedicam a pensar a atividade intelectual como uma vocação que só tem sentido ao redor de um núcleo irradiador de força, ou seja, ao redor do “príncipe”, ou do Estado ou de sociedade literária.

Mas mesmo se o intelectual do círculo do poder não é convocado para proferir sua opinião , igualmente o faz, e então o Príncipe terá razões para suspeitar de que esses serviços não solicitados e despojados de mundanidade, carregam também uma secreta tensão do poder cujo imã a ninguém deixa indiferente.

O intelectual apresenta-se como pertencente a outro âmbito, de “baixa condição”, o que poderia ser interpretado como uma temeridade no caso de que pretendesse “criar regras” de governo.

O intelectual maquiveliano não encarna explicitamente nenhuma ruptura, mas explora as diferenças entre as alturas e as humildes paragens, e verdadeiramente cria regras. E por isso o intelectual não é príncipe, não age no domínio da execução.

Suportar a dialética príncipe-povo é uma missão do intelectual, e não pertencer propriamente a ela. Estar a serviço do príncipe para Malraux, suponha perceber que poder poderia converter-se num suplício, pois seu máximo brilho(poder salvar a comunidade) poder-se-ia considerar também sua máxima alienação.

Para Malraux, o poder é um gesto ético, antes de qualquer coisa, enquanto que Maquiavel destrinchou uma visão mais dessacralizada do poder, e o texto com regras é assim uma cartilha onde o poder explica o recurso à força, sem nenhum dos empecilhos da pieguice de Malraux.

De qualquer forma, o poder encarna um mito laico exemplar, daí o pensamento não procure leis mas exemplos

Bem definiu o general De Gaulle que disse: ” os intelectuais se apaixonam pelas intenções; e nós, pelos resultados..”

Em suma, o intelectual é a mais frágil ação que se desenvolve na sociedade, precisamente porque não pode evitar transmitir suas contradições. E porque desvenda a culpa de um afastamento das crenças comuns, o desejo de abolir as fontes de coerção, enquanto diz deter os instrumentos conceituais para pensar um mundo novo.

Reside a força do intelectual em seu relativo distanciamento das lutas sociais diretas.Ou se expõe ao isolamento na torre de marfim ou deve remoer-se em contínuas autocríticas. Sem dúvida dizia Fernando Pessoa que nunca soube resolver um intrigante dilema: ser intelectual sempre tem algo de imoral.

Na verdade, o intelectual vive a contradição de origem com o não trabalho, alguns com remorso, outros com orgulho, destemidos e sempre prontos a abandonar tudo para rever as relações do mundo.E proferir sempre: “Só sei que nada sei…”.

Sua finalidade se prende aos mais altos dons da humanidade, que são a ciência e a inteligência, como diz o Mefistófeles de Goethe. Sendo assim, desta forma acompanhado não há como escapar da pecha de ser “maldito”.