O princípio da tolerância ou de laicidade é um dos princípios basilares e caracterizantes da democracia. Tal princípio mais que tratar das liberdades, volta-se particularmente para a liberdade de expressão.
Em pensar que agora mesmo estou exatamente exercendo a liberdade de expressão… mesmo quando eu dou uma topada com meu indefectível dedão nesta mesa de mármore…
Aliás, a liberdade é um estilo, um modus vivendi, um tecido de existência humana. Na democracia, cada um, sendo por definição livre, tem o direito de fazer, dizer e pensar o que quiser com a única condição de não infringir as leis.
Eis então que surge assim uma multiplicidade de “liberdades”( a liberdade de ir e vir, de reunião, de associação, de comércio, de opinião) que devem ser regulamentadas como são todos os direitos.
É peculiar a liberdade de expressão sendo mesmo, no dizer de Christian Delacampagne, a liberdade das liberdades e que por sua própria natureza não tem regulamento.
Mas o que fazer, para que a possibilidade de se expressar livremente seja dada igualmente a todos os cidadãos?
De modo que alguns expressem tão freqüentemente ou mais ruidosamente do que outros? Como deter a livre expressão de opiniões hostis não acabe por fulmina-la mortalmente?Este é o grande impasse que vive hoje a democracia.
O fim da guerra fria nos remeteu nos remeteu a inevitável globalização, onde sem dúvida, há a hegemonia pacífica do sistema capitalista que moldou brutalmente o Ocidente e até todos aqueles que, até então, acreditaram poder dele escapar.
Diante tal “nouveau” imperialismo surgiram também novas formas de resistência em toda parte, tanto nos países emergentes como os do interior do Ocidente.
Tais resistências utilizaram um discurso” de substituição”, recheado de dominação étnica(nacionalismo) ou religiosa(fundamentalismo).
Aliás, como tais movimentos nacionalistas e fundamentalistas são perigosos à democracia, o grande objetivo de tais correntes é o total aniquilamento do sistema democrático, e são correntes dotadas de peculiar virulência nos países árabes –muçulmanos.E ainda temos o ressurgimento qual phênix dos partidos de extrema direita.
O fenômeno religioso é um conjunto de crenças e de comportamentos coletivos que visam manipular simbolicamente as do bem e do mal.
O religioso tende a ambicionar ser o “laço” social por excelência(é como se cumprisse assim o seu vaticínio etimológico do latim religio) desta forma o religioso e o social são até certo ponto, co-extensivos.
As formas principais de coexistência do religioso com o político geram as teocracias( como a monarquia lamaísta e o Vaticano) além das ditaduras e autocracias. Nas demais sociedades, o poder político na medida em que se distingue do poder religioso, deve resguardar sua autonomia, deve negociar inteligentemente com o religioso e, conseguir dele concessões e lutar enfim para preserva-las.
O que é universal deve ser prioritário na ordem das razões. Em suma, o religioso fala de política o tempo todo, mesmo que utilize de uma linguagem que a priori, não parece com a linguagem política. Devemos evitar o inferno e os pecados.
De qualquer modo, a tentativa socialista soviética de tentar erradicar o religioso foi rotundamente fracassada. Lembremos que desde do tempo de Robespierre sonhava –se com a impossível sociedade de ateus, até porque esta seria mesmo ingovernável.
Apesar do rousseauísmo sincero de Robespierre, somos forçados a constatar que todas as sociedades conhecidas têm ou tiveram uma religião.A religião é quase um dado antropológico além de ser fundamentalmente sociológico.
Então é curial que haja o divórcio entre o político e o religioso. Toda religião instituída supõe um clero, um corpo hierarquizado de “servidores do culto” cuja responsabilidade é garantir a perenidade dos dogmas e dos rituais próprios de cada religião.
Tal corpo é investido de um saber e, correlativamente , de um poder. Por toda a parte, o clero impõe a sua influência, nos mais diversos âmbitos(cultural, político, histórico, social, comportamental e, sobretudo psicológico).
Toda religião aspira ditar normas capazes de reger nosso cotidiano( daí ser mesmo um controle social como o direito também é) que regula desde da alimentação, roupa, trabalho, relações sexuais até as interações de um modo em geral.Em todo o lugar onde o poder religioso ascende, o poder político resta prejudicado.
No entanto, a sociedade não é uma pirâmide hierarquizada contendo “uma ordem natural” mas, sim, um sistema de forças divergentes, e cada um, o seu interesse próprio.Em síntese, o político, se quiser sobreviver, deve livrar-se da tutela do religioso.
No mundo ocidental, há alguns séculos, a estratégia do poder político consistiu, por um lado, em subtrair-se à influência de uma Igreja particular, concedendo o mesmo status a todas elas.
E de forma idêntica, proibir as Igrejas o direito de ingerir-se nos assuntos civis, públicos ou políticos. A tolerância(nome clássico) ou laicidade(nos países francófonos) ou de secularização (nos países anglófonos).
A tolerância é mais que a possibilidade de conviverem. O Estado diz às diversas Igrejas: “prosperem em paz, não me ocupo de vocês”, e em seguida: “deixem-me viver, não se ocupem do que é assunto meu”.
A tolerância e a laicidade são duas faces da mesma moeda e surgiu como processo no fim da Idade Média, com a finalidade de delimitar a esfera privada caracterizada pela consciência individual separada da esfera pública( da sociedade civil ou Estado).
A tolerância defendida inicialmente pelos intelectuais, na querela medieval do papa contra o imperador, tendo Dante e Marsílio de Pádua se definido a favor do imperador.
Depois outros grupos ideológicos o apoiaram, como o da Reforma Protestante, eruditos e humanistas do renascimento( de Maquiavel a Galileu passando por Erasmo, More, Montaigne) e, reforçados pelos racionalistas engajados como Locke, Bayle, Spinoza e ainda os materialistas do século das Luzes e, por fim, os revolucionários de 1789 teceram o sedimento ideológico indispensável ao florescimento do Estado moderno.
Cada um a seu estilo, procurou a autonomia da esfera privada e, simultaneamente dar a extensão mais vasta possível à esfera pública(incluindo progressivamente nela a maioria a subtraí-las à influência da religião).
Locke interrogou-se sempre sobre as relações do poder temporal com o poder espiritual. O seu texto chamado “Carta de tolerância” redigida em 1685 , mas só publicada em 1689 na Holanda e sem o nome do autor.
Ao invés de procurar, como Bayle, justificar o direito à liberdade de consciência, Locke partiu da concreta análise da autoridade política.
É importante distinguir claramente os papéis distintos e respectivos da Igreja e do Estado.
O Estado, segundo Locke, é uma sociedade de homens, instituída com o único fim do estabelecimento, da conservação e do progresso de seus interesses civis.
A autoridade estatal não se estende, de modo algum, “até salvação das almas”. O Estado deve limitar-se a cuidar das coisas terrenas e deixar as coisas do além.
Já, inversamente, a Igreja se consagra em ser uma sociedade de homens que se reúnem voluntariamente para servir a Deus em público, e prestar-lhe o culto que julgam ser-lhe agradável e próprio a fazer-lhes conquistar a salvação.
A Igreja deve ser separada e totalmente distinta do Estado, gerando deveres recíprocos: dever de tolerância por parte do Estado, obrigação de reserva por parte da Igreja.
Sublinha Locke que “os limites são fixos e imutáveis de ambas as partes” pois seria “confundir o céu com a terra, querer unir essas duas sociedades, que são absolutamente, distintas e inteiramente diferentes uma da outra, seja em relação às suas origens, seja em relação aos seus objetivos ou aos seus interesses.
Locke foi assim um ferrenho defensor da tolerância aliás, o referido texto da Carta reconhece que nenhum cidadão poderia ser perseguido apenas pelo fato de aderir aos dogmas especulativos da religião católica.
Mas a Carta não deixa de estimular um Estado não-católico, e que as manifestações públicas e institucionais do catolicismo deveriam ser proibidas.
Naquele contexto, a religião católica significava perigo por dispensar seus adeptos da obrigação de respeitar as promessas feitas aos heréticos; por professar que os príncipes excomungados, não tinham mais direito à obediência de seus súditos, podendo serem depostos ou mortos.
Enfim, porque os católicos extremamente obedientes ao papa( vigário de Deus sobre a terra) não poderiam ser cidadãos “seguros” em um Estado que não tivesse abraçado oficialmente a causa católica.
Com razão, Locke opina que ao ateísmo é tal ameaçador quanto o catolicismo e não se deve permitir sua expressão pública.
Segundo o filósofo inglês, o ateísmo radical é por completo incompatível com o respeito as virtudes e, por isto mesmo, também ofensivo à ordem pública.
Quaisquer que sejam os limites da tolerância lockiana, esta caminha lado a lado com a teoria da laicidade, evidenciando a ligação lógica entre esses dois conceitos.
Há uma certa defasagem na laicidade apregoada pela democracia contemporânea, está lá na poderosa cédula verde: “In God we trust”(ou seja, em Deus , nós confiamos). O ressurgimento do fundamentalismo constitui um fato grave pois que defende a restauração da ordem teocrática, ou seja, um sistema político e socialmente esvaziado e determinantemente dominado pelo religioso.
É como voltássemos na máquina do tempo e de repente, pousássemos em plena Idade Média novamente… Voltaríamos as ordálias e as provas da fé…
Por outro lado, vige a concepção estreitamente positiva, por trás dos vários fundamentalismos que provam a ascensão de um verdadeiro fanatismo em escala universal.
E, aqui, entre nós, em solo pátrio, podemos evidenciar tal obsessão religiosa gramando espaço, como a conduta de certas seitas reformistas e protestantes( que também se expande mundialmente).
A doutrina que manda o retorno aos “fundamentos” da fé, visa reconstituir em sua integridade primitiva um fundamentalismo, a própria essência que não é exterior à religião.
Também a voga fundamentalista não é inédita, ciclicamente se repete tais sanhas radicais no mundo. Apesar do fundamentalismo ser inaceitável, por violar todas as regras do jogo democrático e, por isto, deve a democracia combatê-lo.
A legítima e verdadeira separação entre o político e o religioso não pode ser um pilar derrubado pelo fundamentalismo.É preciso que o Estado seja a única instância capaz de determinar aquilo que, no interior do espaço público, é ou não é legítimo, deve ser dotado da mais ampla tolerância.
Parece que a origem de tanto ódio e censura religiosa e cultural tem começo na formação no chamado Estado Absoluto ou moderno que se apóia um povo, uma etnia.
Mas, a partir deste momento, é o Estado Moderno a causa do aparecimento da criminalidade coletiva e temível. No Ocidente medieval, as primeiras vítimas das ditas higienes étnicas foram os judeus.
Acusados de envenenar as fontes de água ou de matar crianças católicas a fim de beber-lhe o sangue. Os judeus se tornaram rapidamente marcados por todo mal em torno deles.No século XI, uma comunidade situada na Renânia foi objeto de um pogrom.
Tal ódio anti-semita conheceu seu ápice com o III Reich, onde foi realizado maior extermínio massa concebido e planejado pelo homem.O genocídio só teve sua prática incriminada depois da II Grande Guerra Mundial.
Mas os judeus não calaram e protestaram contra a injustiça com que eram tratados principalmente após a sua”emancipação” cívica e política.
E foi só por ocasião do caso Dreyfus que se viu, pela primeira vez, um grupo de intelectuais decidir-se a reagir contra a difusão pública de teses anti-semitas.
Outra comunidade que também sofreu bastante pelo ódio étnico, foi a dos negros. Que recentemente recebeu no Brasil, uma “cota- tapeação” aos bancos universitários como forma de compensar muitos anos de discriminação e intolerância.Sinceramente, não acredito em tal indenização demagógica.
Mesmo no Século das Luzes, poucas vozes no Ocidente,se levantaram para censurar a prática da escravatura. E ainda menos numerosas foram as que denunciaram o racismo antinegro que sobreviveria à abolição de escravatura e, mesmo nos EUA , ao civil rights.
Em 1683, uma lei promulgada por Luís XIV que condenava com a multa de 500 libras (grande e expressiva quantia de dinheiro) toda pessoa que tratasse alguém do cagot com intenção injuriosa. É sem dúvida, a primeira lei anti-racista do mundo.
Só depois da revelação pública da Shoar(holocausto em hebraico), em 1945, que o mundo assumiu verdadeira consciência da necessidade de se coibir a expressão de determinados discursos racistas ou anti-semitas até por serem capazes de provocar atrocidades.
Passou-se então para a maioria as democracias ocidentais dotadas de um arsenal legislativo que lhes permite punir não apenas a injúria ou a difamação e a incitação ao ódio racial.
Aliás, este mesmo ódio racial ou religioso não tardou a recomeçar em diversas partes do mundo a partir dos anos 70. Nos países onde a democracia não está firme, um certo nacionalismo étnico particularmente violento, a pretexto de reivindicações políticas ou territoriais, dedicou-se a reanimar os velhos demônios racistas e anti-semitas.
Com seu mórbido desejo de purificação, tal nacionalismo acabou precipitado, como na ex-Iuguslávia, os sérvios apoiados pela Igreja Ortodoxa contra os bósnios e, depois contra os albaneses de Kosovo e, ainda em Ruanda, os Hutu contra os tutsi(que nem são etnias diferentes).
O mesmo insano nacionalismo foi hábil a alimentar a agressividade dos russos contra os chechenos, a dos talibãs afegãos contra os hazara, ou dos regimes turco e iraquiano contra as minorias curdas.
Nas democracias ocidentais há também grupos de extrema direita apoiando-se no fundamentalismo cristão, alimenta seu ódios contra as comunidades judaicas ou muçulmanas.
Aliás, nunca o ódio racial ou religioso dispôs de tanta mídia e de tanto instrumento político como no atual mundo contemporâneo. A eficácia das leis que existem para deter o ódio racial ou religioso esbarram na lentidão da Justiça, e ainda numa segunda corrente ideológica segundo a qual qualquer limite jurídico imposto à liberdade de expressão significaria a uma insuportável censura.
O negacionismo traduziu-se no fim da década de 70 como sendo uma ideologia com o fito de negar a realidade do Shoah(holocausto). Elaborava logo depois da II Grande Guerra Mundial por Paul Rassinier que era adepto declarado do fascismo.
Três décadas depois, os mesmos delírios retornam agora por Robert Faurisson e difundido pelo seu editor, ex-trostkista Pierre Guillaume com relativo sucesso junto a opinião pública francesa e, depois, no resto do mundo e mais particularmente nos países árabe-muçulmanos.
As teses negacionistas não se fulcram em nenhum argumento sério, sendo mesmo uma retomada ao macróbio anti-semitismo seja de extrema direita ou de esquerda. Constitui assim uma nova incitação ao ódio religioso e racial. Daí, porque surgiu na França a Lei Gayssot(em 1990) com efeitos excelentes, combatendo os negacionistas e infligindo-lhes pesadas multas aos seus divulgadores.
Alguns intelectuais taxaram a lei de censura odiosa e perigosa . Sendo mesmo ridículo que o Judiciário tenha a missão de definir o que vem a ser verdade histórica.
Enfim, ao condenar os negacionistas à clandestinidade é conceder-lhes inutilmente a aura de popularidade que se atribui em geral, os “mártires”.
O grande perigo é cair no mesmo erro da intolerância dos regimes totalitários ou fundamentalistas( tais como o de Khomeini) pois a democracia verdadeira não admite nenhuma forma de censura.
Não vivemos num mundo de abstrações puras e, sim , lotado de seres imperfeitos que podem ser cruéis e não se deve hesitar em coibi-los.
As teses negacionistas são em verdade um apelo ao crime daí manda a prudência que sejam reprimidas adequadamente. A Lei Gayssot define genericamente crimes contra a humanidade que figuram como objeto do Tribunal Militar de Nuremberg de 1945 e não efetivamente recai sobre os genocídios já praticados.
E tal lacuna deve o legislador superar tendo em vista que a campanha negacionista contínua muito ativa pelo mundo inclusive nos meios universitários. Certamente, novamente, os santos , gurus, poetas e românticos protestarão veementes novamente contra esse atentado à liberdade.
Mas o interesse da verdade e o da justiça não deveriam pesar mais que qualquer outro bem jurídico. Para o bem da diversidade, para o bem da autentica liberdade de expressão e por fim pela sobrevivência da democracia que continua a ser o melhor dos regimes apesar dos pesares…
Parodiando um filosofo hebreu: “A magia da palavra as vezes está exatamente no silêncio.”