Imagine que você, condutor devidamente habilitado, esteja dirigindo seu veículo até uma cidade que ainda não conhece e, na entrada desse município, depara-se com uma placa com apenas os dizeres “Rodízio municipal. Verifique o dia do mês e a cor do seu veículo”. Imagine, ainda, que, por não conhecer as regras estabelecidas na legislação daquela cidade, que proíbe, a cada um dos trinta dias do mês, uma cor de veículo diferente, você receba, dias após, uma notificação por ter cometido a infração de trânsito por “transitar em locais e horários não permitidos pela regulamentação estabelecida pela autoridade competente”. Embora esse exemplo seja hipotético, é exatamente o que ocorre com os condutores que vêm a São Paulo e desconhecem o “rodízio municipal”, exceto pelo fato de que a restrição imposta leva em conta o dia da semana e o último dígito da placa.
Imagine agora que, utilizando como parâmetro o sistema implantado na capital, todas as cidades da região metropolitana decidam implantar idêntica restrição, mas com horários, perímetros e critérios diferentes: como exigir do condutor o conhecimento e cumprimento de cada uma das regras, em cada uma das cidades pelas quais transite? Será mesmo que a placa que proíbe o trânsito de veículos automotores, prevista no Código de Trânsito e por todos conhecida, é realmente necessária, ou basta a vontade legislativa de cada município? Nos últimos dias, a imprensa paulista tem noticiado a polêmica decisão do CETRAN/SP, órgão julgador de recursos em segunda instância, que passou a deferir, desde o ano passado, os recursos interpostos contra as multas por descumprimento ao “rodízio municipal” implantado em São Paulo em 1997, com a justificativa de que a restrição imposta depende da implantação de placas de proibição. E a principal pergunta que se tem feito é a seguinte: “Por que somente agora, depois de dez anos, é que o CETRAN passou a interpretar como ilegal o rodízio, cancelando as multas aplicadas?”. Inicialmente, é importante explicar o que é (e como funciona) o CETRAN: previstos no artigo 7º, inciso II, do Código de Trânsito Brasileiro, os Conselhos Estaduais de Trânsito e o Conselho de Trânsito do Distrito Federal são órgãos normativos, consultivos e coordenadores, integrantes do Sistema Nacional de Trânsito, cujas atribuições estão delineadas no artigo 14 do CTB, das quais destacamos as previstas nos incisos I e VIII, que lhes determinam “cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito”, bem como “acompanhar e coordenar as atividades dos demais órgãos de trânsito”, o que demonstra que sua competência não está restrita ao julgamento de recursos, o que se encontra determinado apenas no inciso V, alínea “a)” – “julgar os recursos interpostos contra decisões das JARI”, sendo reforçado pelos artigos 289, inciso II e 290, que indicam a competência do CETRAN de cada Estado, para julgar os recursos de trânsito (em segunda e última instância), quando se tratar de penalidade imposta por órgão ou entidade de trânsito estadual ou municipal. Desta forma, todo aquele que recebe uma multa de trânsito municipal em sua residência tem, basicamente, duas oportunidades para recorrer contra a penalidade: em primeiro lugar, diretamente no órgão responsável pela sua imposição, que remeterá o recurso a uma de suas Juntas Administrativas de Recursos de Infrações (JARI) – na cidade de São Paulo, por exemplo, existem 19 juntas, cada uma composta por 3 titulares e 3 suplentes – e, caso o recurso seja indeferido (ou seja, a multa mantida), poderá o interessado apresentar novamente o seu pedido (comprovando o pagamento da multa, conforme art. 288, § 2º, do CTB), desta vez ao Conselho Estadual de Trânsito. No Estado de São Paulo, o CETRAN está subordinado à Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública e regulamentado pelo Decreto nº 48.035/03. Formado atualmente por doze Conselheiros, representantes de diversos órgãos / entidades, é responsável pela análise e julgamento de aproximadamente 6.000 (seis mil) recursos de trânsito por mês. As reuniões ocorrem às quartas-feiras, no 5º andar do prédio do DETRAN, quando cada Conselheiro deve apresentar os seus pareceres, antecipadamente elaborados, para cada um dos recursos nos quais foi designado relator, para apreciação e votação dos demais integrantes do Conselho, sendo necessário o voto da maioria para que o recurso seja deferido ou indeferido. Desta forma, a primeira questão a se verificar é que, dada a liberdade de convicção de cada julgador, a posição adotada pelo CETRAN pode ser modificada ao longo do tempo, já que o mandato dos Conselheiros é temporário, ocasionando a mudança de sua composição a cada dois anos. O CETRAN, obviamente, não é contra a restrição imposta na capital paulista, denominada “Operação horário de pico” e conhecida como “rodízio de veículos”, mas, no exercício de suas atribuições, é obrigado a se manifestar frente a questionamentos recursais, bem como fazer com que os demais órgãos de trânsito cumpram a legislação e as normas de trânsito, o que faz parte de seu papel como órgão coordenador estadual do Sistema Nacional de Trânsito. É fato que o “rodízio de veículos”, implantado em nome do interesse público e com o objetivo de diminuir a frota circulante no centro de São Paulo, após todo esse tempo de existência, já passou a fazer parte do cotidiano dos paulistanos, os quais, ainda que desconheçam o exato perímetro de proibição, estão permanentemente informados pela imprensa em geral, o que, segundo alguns, seria suficiente para eliminar a necessidade de placas de proibição. Vejamos, todavia, o que prevê a legislação brasileira, tendo em vista que a Constituição do Brasil, lei máxima de nosso país, prescreve, como direito e garantia fundamental que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de LEI” (artigo 5º, inciso II): primeiramente, há que se destacar que, pelo artigo 22, inciso XI, da CF/88, “Compete privativamente à União legislar sobre … trânsito e transportes”, disposição que, por si só, invalidaria a elaboração de lei municipal que implantasse uma restrição de veículos, em sistema de rodízio, por dia de semana e de acordo com o final de placa. Entretanto, não obstante eventual vício de inconstitucionalidade da Lei nº 12.490/97, que implantou o “rodízio de veículos” em São Paulo, bem como do Decreto nº 37.085/97, que a regulamentou, a questão é que a lei federal que versa sobre trânsito, que é, justamente, o Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), estabeleceu, como competência dos órgãos e entidades executivos de trânsito dos municípios, no âmbito de sua circunscrição: “planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas”. É com base nesta atribuição, que o órgão municipal de trânsito pode (sem a necessidade de qualquer intervenção do Poder Legislativo local) impor condições, proibições, obrigações ou restrições no uso das vias, ou seja, é possível proibir o trânsito de veículos automotores em determinados dias, horários e de acordo com certos critérios, sem que, para tanto, exista lei municipal a respeito, assim como ocorre com a proibição de estacionamento, conversão ou retorno em determinada via. O “rodízio de veículos”, a bem da verdade, não existe (e nunca existiu) no Código de Trânsito Brasileiro. Aliás, a Lei municipal foi aprovada ainda às vésperas de entrar em vigor o atual CTB, motivo pelo qual estabeleceu, em seu artigo 6º, que “A inobservância da restrição objeto do Programa acarretará a autuação da infração prevista no artigo 83, inciso X, do Código Nacional de Trânsito, ou do dispositivo equivalente que vier a substituí-lo quando da vigência do novo Código, observando-se as regras de reincidência pertinentes”, prevendo o art. 83, X, do revogado CNT que “É dever de todo condutor de veículo … obedecer a horários e normas de utilização da via terrestre, fixados pela autoridade de trânsito”. Com a entrada em vigor do atual Código de Trânsito, passou o órgão municipal de trânsito de São Paulo a aplicar ao descumprimento do “rodízio de veículos” a multa por infração prevista no artigo 187, inciso I, do CTB: “Transitar em locais e horários não permitidos pela REGULAMENTAÇÃO estabelecida pela autoridade competente, para todos os tipos de veículos”. Isto significa que NÃO EXISTE infração específica para o descumprimento do “rodízio de veículos”, mas os que hoje transitam no chamado “centro expandido” têm sido multados por transitar em locais e horários não permitidos pela legislação municipal (de constitucionalidade questionável), que instituiu o “programa de restrição ao trânsito de veículos automotores”. Embora a palavra “regulamentação” seja utilizada freqüentemente como sinônimo de redação de normas (inclusive em alguns artigos do CTB), é fato que o Anexo I do Código apresenta um conceito específico para “regulamentação da via”, como sendo a “implantação de sinalização de regulamentação pelo órgão ou entidade competente com circunscrição sobre a via, definindo, entre outros, sentido de direção, tipo de estacionamento, horários e dias”. Levando-se em consideração este significado, forçoso reconhecer que a infração do artigo 187, inciso I, somente se caracteriza quando o trânsito do veículo ocorrer em locais e horários não permitidos pela SINALIZAÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO, isto é, por UMA das seguintes placas de regulamentação: R-9 (proibido trânsito de caminhões), R-10 (proibido trânsito de veículos automotores), R-11 (proibido trânsito de veículos de tração animal), R-12 (proibido trânsito de bicicletas), R-13 (proibido trânsito de tratores e máquinas de obras), R-37 (proibido trânsito de motocicletas, motonetas e ciclomotores), R-38 (proibido trânsito de ônibus) OU R-40 (Trânsito proibido a carros de mão).
No caso do “rodízio de veículos” em São Paulo, portanto, bastaria ao órgão de trânsito implantar a placa R-10, com as informações adicionais necessárias, para legitimar a restrição que se pretende. Neste sentido, é importante transcrever trechos da Resolução do CONTRAN nº 180/05, que aprovou o Volume I do Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito, com as regras de instalação e interpretação para toda a Sinalização vertical de regulamentação (disponível em http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/MANUAL_VOL_I.pdf, págs. 109/110):
Sinal: Proibido trânsito de veículos automotores R-10. Significado: Assinala ao condutor de qualquer veículo automotor a proibição de transitar, a partir do ponto sinalizado, na área ou via/pista ou faixa. Princípios de utilização: O sinal R-10 deve ser utilizado em área, via/pista ou faixa para proibir o trânsito de veículos automotores (grifo no original). Quando utilizado para regulamentar a proibição em determinada(s) faixa(s) deve vir acompanhado de informação complementar (grifo no original). Pode ser utilizado associado a informação complementar “EXCETO…”, ou “PERMITIDO…”, liberando o trânsito a determinada espécie ou categoria de veículo ou ainda outras informações complementares tais como horário, dia da semana e/ou seta de controle de faixa. O sinal R-10 tem validade a partir do ponto onde é colocado. Posicionamento na via: A placa deve ser colocada no início do trecho da restrição, à direita ou à esquerda ou em ambos os lados, conforme o caso (grifo no original). … Relacionamento com outras sinalizações: O sinal R-10 pode ser antecedido de sinalização especial de advertência informando sobre a restrição à frente e/ou placa de orientação indicando rotas alternativas. Enquadramento: O desrespeito ao sinal R-10 caracteriza infração prevista no art. 187, inciso I, do CTB.
Como se vê, a norma do CONTRAN exige a existência da placa R-10 para assinalar ao condutor a proibição de transitar em determinados locais e horários, configurando-se a infração do artigo 187, inciso I, do CTB. A falta da placa impede a aplicação da multa de trânsito e deve acarretar, sem sombra de dúvida, o cancelamento, pelos órgãos competentes, da penalidade eventualmente imposta, tendo em vista que o artigo 90 do CTB estabelece que “Não serão aplicadas as sanções previstas neste Código por inobservância à sinalização quando esta for insuficiente ou incorreta”. Pelos motivos acima expostos, minha interpretação jurídica sempre foi contrária à aplicação da multa prevista no artigo 187, inciso I, do CTB aos que descumprem o “rodízio de veículos” em São Paulo, tendo em vista a inexistência das placas exigidas por lei. Apesar disso, como Conselheiro do CETRAN/SP desde novembro de 2003, até há pouco tempo não utilizava tal justificativa para propor o deferimento dos recursos por mim relatados, tendo em vista que, em geral, a falta das placas não ERA utilizada como alegação recursal, mas os recorrentes procuravam justificar por outros argumentos o motivo da desobediência a uma restrição que, de fato, conheciam. No entanto, o desconhecimento sobre os locais de proibição, as regras específicas e a própria existência do “rodízio de veículos” passou a ser cada vez mais comum nos recursos interpostos de uns tempos pra cá, em especial por dois motivos:
1º – a criação do RENAINF – Registro Nacional de Infrações de Trânsito, instituído pela Resolução do CONTRAN nº 155/04 e que passou a possibilitar a aplicação de multas de trânsito a veículos de outros Estados, cuja efetiva finalização ocorreu apenas em 26/12/07, com a integração do Estado de Tocantins;
2º – a utilização de equipamentos automáticos não metrológicos para a constatação do descumprimento ao “rodízio de veículos”, o que somente foi possível com a edição da Resolução do CONTRAN nº 165/04 (que determina as regras gerais para os equipamentos não metrológicos) e da Portaria do DENATRAN nº 27/05 (de 04/07/05), que passou a autorizar a utilização de equipamentos eletrônicos para a comprovação da infração de trânsito do artigo 187, inciso I. (segundo informações da própria CET e divulgadas pela imprensa, desde que foram instalados os equipamentos eletrônicos, o número de multas de “rodízio” triplicou, representando, em 2007, 33 % das multas de trânsito, totalizando 1,38 milhão).
Entre a convicção jurídica que possuo e a análise racional, sobre os benefícios ao trânsito advindos da restrição idealizada, preferia não tomar a iniciativa de alegar a questão formal de “falta de placas” para deferir os poucos recursos que chegavam às minhas mãos, de infratores que conheciam o “rodízio”, mas tentavam justificar, por motivos pessoais, o seu descumprimento; contudo, como se calar diante do real desconhecimento dos condutores de outros Estados que também passaram a ser multados, em vista do funcionamento do RENAINF e com o apoio da tecnologia? É fato que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (princípio de Direito que se encontra previsto no art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil e se aplica a todo nosso ordenamento jurídico), mas isto desobriga o Poder público de cumprir as formalidades exigidas para a aplicação de punições aos administrados? Entendo que não, já que, dentre os princípios da Administração pública, consignados no artigo 37 da Constituição Federal, destaca-se o da legalidade, segundo o qual se exige o estrito cumprimento do que está na lei, para que os atos administrativos tenham total validade.
Ao deferir os recursos dos que desconhecem realmente o rodízio, porém, a questão que passou a merecer atenção foi a seguinte: a justificativa a ser utilizada para o cancelamento da penalidade deve ser a comprovada ignorância sobre a legislação municipal ou a inexistência de sinalização? Preferindo-se a segunda alternativa, diante das explicações técnico-jurídicas apresentadas, o impasse gerado é que a falha do órgão municipal de trânsito macula TODAS as multas aplicadas e não só aquelas impostas aos veículos dos “forasteiros”, já que, além de constituir erro de formalidade, não se pode estabelecer, neste caso, diferenciação entre condutores, dado o direito de igualdade, garantido pela Constituição Brasileira.
Quando o assunto passou a ser corrente nas reuniões do CETRAN, pelas constantes manifestações dos recorrentes, houve a necessidade de posicionamento sobre o tema, o que, diga-se de passagem, não foi um processo nada fácil, pois o que se busca, acima de tudo, é a harmonia dos órgãos de trânsito, que devem trabalhar, sempre, em prol de um trânsito mais seguro. A primeira medida adotada pelo Conselho, em 2006, foi a realização de reunião com os responsáveis pelo trânsito em São Paulo, expondo o posicionamento, então firmado, de que as placas deveriam ser instaladas nas vias de acesso ao perímetro de proibição, sob pena de inviabilizar o “rodízio de veículos”, mas nenhuma ação efetiva foi adotada, motivando o CETRAN ao cancelamento sistemático de todos os recursos posteriormente apresentados, por erro de formalidade e independente das alegações recursais apresentadas.Registre-se que o posicionamento adotado pelo CETRAN não é isolado, posto que o Poder Judiciário também considerou a necessidade de instalação de placas de proibição nos locais de restrição, ao conceder liminar (publicada no Diário Oficial do Estado de 25/06/07) em ação civil pública que ainda se encontra em tramitação na 10ª Vara da Fazenda Pública, sob o processo nº 583.53.2007.108594-1. Da decisão liminar, destacamos as palavras do MM. Juiz de Direito:
“…Nesse contexto, é de se ter em conta que malgrado o tempo já decorrido desde a implantação desse “programa de restrição ao tráfego”, em 1997, esse dever legal não pode ser olvidado ou descumprido, seja porque a Lei assim o prevê, exigindo seu efetivo cumprimento, seja porque é fato que muitas pessoas de outras cidades circulam por esta Capital e quando o fazem sujeitam-se evidentemente a esse tipo de restrição e às sanções legalmente previstas (multa e pontuação negativa em prontuário de condutor), a tornar ainda mais necessária essa sinalização de informação e advertência, sobretudo porque são várias as vias públicas atingidas em extenso perímetro urbano, o que pode causar (e certamente causa) confusão aos motoristas, mesmo àqueles que com maior freqüência transitam por esta Capital, que nem sempre podem, com clareza e segurança, identificar o que constitui territorialmente como “centro expandido…”
É de se lamentar, finalmente, que a ilegalidade sobre as multas aplicadas tenham sido argüidas apenas em segunda instância, já que os recursos deferidos pelo CETRAN/SP passaram primeiramente por uma das 19 JARI existentes no município, que, simplesmente, ignoraram as questões ora apontadas e, até mesmo, as alegações de desconhecimento da restrição por parte dos recorrentes, deixando, inclusive, de cumprir sua atribuição prevista no inciso III do artigo 17 do CTB, que é “encaminhar aos órgãos e entidades executivos de trânsito e executivos rodoviários informações sobre problemas observados nas autuações e apontados em recursos, e que se repitam sistematicamente”.