A divisão formal da Lei nº 9.503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, compreende um total de 341 artigos, divididos em 20 Capítulos, ao final dos quais se encontram 2 Anexos, sendo o Anexo I de Conceitos e Definições e o Anexo II relativo à Sinalização de trânsito (alterado, mais recentemente, pela Resolução do CONTRAN nº 160/04).
A validade do Anexo I, porquanto integrante da própria Lei, é referendada pelo seu artigo 4º, segundo o qual “Os conceitos e definições estabelecidos para os efeitos deste Código são os constantes do Anexo I”. Nele encontramos, portanto, um total de 113 conceitos e definições, variando desde o “acostamento” até o “viaduto”, passando por significados lacônicos, como o de vias rurais (que se limita a exemplificar – estradas e rodovias), por simples abreviaturas (RENACH ou RENAVAM) ou por expressões aparentemente conflitantes, como é o caso do cruzamento e da interseção, em que ambas utilizam a outra palavra para acabar expondo o mesmo conceito.
Vários conceitos e definições ali previstos são imprescindíveis até mesmo para compreender as situações de aplicabilidade de determinados artigos do CTB, como, por exemplo, os que tratam das infrações de trânsito de estacionamento, parada, ultrapassagem, retorno e conversão, entre outros, em que o conhecimento exato dos significados técnicos é condição necessária para estabelecer se foram ou não cometidas, respectivamente, as infrações dos artigos 181, 182, 199, 206 e 207 do CTB.
Mesmo artigos que, aparentemente, não necessitariam de esclarecimentos conceituais, acabam por depender dos termos constantes do Anexo I, como acontece na infração do artigo 250, I, a, que pune o veículo que não mantém acesa a luz baixa durante a NOITE, sendo necessário, destarte, conceber a noite não como relativa a um determinado horário, mas como sendo o “período do dia compreendido entre o pôr-do-sol e o nascer do sol”.
Entretanto, nem todos os conceitos necessários para a compreensão do CTB estão previstos no Anexo I, sendo comum nos depararmos com determinados significados no corpo da própria Lei, como ocorre com os conceitos de trânsito (§ 1º do artigo 1º); deslocamento lateral (parágrafo único do artigo 35); infração de trânsito (artigo 161) ou multa reparatória (artigo 297).A par desta análise, em que verificamos que o artigo 4º do CTB não expõe regra restritiva, pois nem todos os conceitos e definições estão contemplados pelo Anexo I, importa-nos ressaltar alguns conceitos jurídicos que nem mesmo se encontram presentes no Código, mas em legislação extravagante que possui, portanto, correlação com a legislação de trânsito.
Vejamos, pois, alguns exemplos:
1. A fiscalização de trânsito, exercida pelos órgãos executivos de trânsito e rodoviários, no âmbito de suas competências, é exercida mediante o PODER DE POLÍCIA administrativa de trânsito, conforme podemos verificar textualmente no artigo 22, V e 24, VI do CTB.
O conceito de poder de polícia está consignado no artigo 78 da Lei nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional), com redação dada pelo Ato complementar nº 31/66:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
2. O transporte de crianças em veículos automotores é regulado pelo artigo 64 do CTB, que limita a idade mínima de dez anos para o transporte nos bancos dianteiros (salvo as exceções regulamentadas), capitulando-se a infração de trânsito no artigo 168; no que se refere, entretanto, ao transporte em motocicletas, motonetas e ciclomotores, fixa o artigo 244, V, como infração de trânsito o transporte de CRIANÇA menor de sete anos OU QUE NÃO TENHA, nas circunstâncias, condições de cuidar de sua própria segurança.
Quando tratamos do limite, seja de dez anos (para automóveis), seja de sete anos (para motocicletas e congêneres), não há a necessidade de definirmos a expressão “criança”, diferentemente do que ocorre para configurarmos a parte final da infração de trânsito do artigo 244, V, que se refere às circunstâncias específicas, cabendo o questionamento sobre até qual idade o transporte daqueles que não têm condições de cuidar de sua própria segurança acarretará a punição legal prevista.Neste sentido, entendemos que se deva utilizar, por analogia, o conceito estabelecido no artigo 2º da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da criança e do adolescente):
Art. 2º. Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. 3. Outro conceito que temos que “importar” é o referente ao DOMICÍLIO, tendo em vista que tanto o artigo 120 quanto o artigo 140 do CTB estabelecem, respectivamente, que o veículo deve ser registrado e que o exame de habilitação deve ser realizado junto ao órgão de trânsito do domicílio ou residência do interessado.Desta forma, reportamo-nos aos artigos 70 a 78 da Lei nº 10.406/02 (Código Civil), que estabelecem as regras para determinação do domicílio. É por esta combinação legal que se permite, por exemplo, que o militar tenha o seu veículo registrado no endereço da Unidade em que ele serve, pois se trata de seu domicílio necessário, por força do parágrafo único do artigo 76.
Art. 76. Têm domicílio necessário o incapaz, o servidor público, o militar, o marítimo e o preso.
Parágrafo único. O domicílio do incapaz é o do seu representante ou assistente; o do servidor público, o lugar em que exercer permanentemente suas funções; o do militar, onde servir, e, sendo da Marinha ou da Aeronáutica, a sede do comando a que se encontrar imediatamente subordinado; o do marítimo, onde o navio estiver matriculado; e o do preso, o lugar em que cumprir a sentença.
4. Outro conceito extraído do Código Civil é o concernente à propriedade, que se torna de extrema importância ao analisarmos o disposto no artigo 123, inciso I, do CTB, que estabelece a obrigação de expedição de novo Certificado de Registro de Veículo quando for transferida a PROPRIEDADE.
A propriedade, conforme artigo 1225, inciso I, do Código Civil, representa direito real e, portanto, aplica-se-lhe o disposto no artigo 1226 do mesmo codex:
Art. 1.226. Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição.
Ou seja, de acordo com o preceito acima exposto, apesar da obrigação determinada pelo artigo 123, I, do CTB, não é lícito supor que a propriedade se transfira apenas por ocasião da expedição de novo Certificado de Registro, mas a mesma se opera desde a efetiva tradição, ou seja, desde a entrega do bem móvel, mediante a devida contraprestação.
5. Por fim, vejamos mais dois casos em que nos socorremos da legislação penal, aliás aplicável expressamente aos crimes de trânsito previstos no CTB, ex vi seu artigo 291:
Art. 291. Aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que couber.
Além das normas gerais aplicáveis aos crimes de trânsito, até mesmo os conceitos devem ser importados, para compreensão, por exemplo, do significado dos crimes dos artigos 302 e 303 do CTB:
Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor.
Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor.
Vejam que, diferentemente do que ocorre na legislação penal, o legislador de trânsito deixou de relacionar a conduta praticada por aquele que comete os crimes dos artigos 302 e 303, utilizando o nomem juris (título do crime) como discriminante da própria ação adotada.
Ou seja, na verdade, quem “pratica homicídio” responde por matar alguém, da mesma forma que quem “pratica lesão corporal” responde por ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, trazendo-se a lume as descrições previstas nos artigos 121 e 129 do Código Penal.
De igual maneira, torna-se necessário o conhecimento do vocábulo “culposo”, porquanto o mesmo faz parte da configuração dos crimes de trânsito, mas não se conceitua no CTB. Para tanto, vejamos o que dispõe o artigo 18 do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 7.209/84:
Art. 18 – Diz-se o crime:
…
Crime culposo
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Enfim, nessa simples amostra do contexto legal em que se insere o CTB, é interessante perceber a relação e a dependência da legislação de trânsito com os diversos ramos do Direito, especialmente quando se discute a existência ou não do ramo autônomo denominado Direito de trânsito, que, como comprovado, necessita de conceitos pré-determinados e desenvolvidos por outras searas do conhecimento jurídico.