João Manoel, estudante, acorda numa terça-feira às 8:30. A caminho do trabalho, atrasado, ultrapassa um sinal vermelho e tem seu carro fotografado por um radar. Mais adiante pára num caixa automático e saca algum dinheiro; ao sair, faz uma careta para a câmara de vídeo. Chegando ao escritório, consulta alguns sites na Internet, faz três telefonemas e envia seu curriculum, via e-mail. Ao final do dia, João vai a uma cantina jantar com sua nova (e jovem) assistente. Durante a sobremesa, recebe uma ligação do chefe no celular cobrando a entrega de um relatório, ao sair, paga a conta com seu cartão de crédito. Ao longo do dia, João, sem se dar conta, realizou diversos tipos de comércio, e deixou um rastro de informações pessoais que mostram seus interesses, hábitos, comportamentos. Esse fenômeno foi antecipado pelo professor Alan Westin, da Universidade Colúmbia, na década de 60. O professor alertou que esse rastro que ele batizou de “data shadow”, poderia ser utilizado para construir um dossiê digital de qualquer indivíduo onde quer que ele esteja.
O que se coloca em pauta, são as mudanças inesperadas e significativas que surgiram na sociedade e que acabaram provocando uma grande “dor de cabeça” para os doutrinadores e legisladores. Em face de todas essas mudanças, e à rápida expansão tecnológica, não possibilitando que houvesse tempo razoável para que o ordenamento jurídico regulasse as novas condutas.
Para entender essas mudanças é necessário que se defina o que seria este elo de ligação entre o direito e a tecnologia. Então acredita-se que o comercio eletrônico, é o que despertou toda esse alvoroço na área jurídica. Pode-se entender por comércio eletrônico “a realização de toda a cadeia de valor dos processos de negócio num ambiente eletrônico, por meio da aplicação intensa das tecnologias de comunicação e de informação, atendendo aos objetivos de negócio. Os processos podem ser realizados de forma completa ou parcial, incluindo as transações negócio-a-negócio, negócio-a-consumidor e intraorganizacional, numa infra-estrutura predominantemente pública de fácil e livre acesso e baixo custo. ” Ou, simplesmente como a compra e venda de informações, produtos e serviços usando uma rede mundial de computadores. Tal situação é inevitável, pois já é efeito da globalização chegando ate o cotidiano das pessoas, pois “hoje em dia o computador na China está tão próximo quanto o do escritório ao lado” . Em se tratando de Brasil pode-se capitular que o pais já responde por “88% do comércio eletrônico da América Latina, com o maior número de varejistas online cadastrados (307), seguido pelo México (com 50), e com vendas online em torno de US$ 160 milhões por ano, em toda a América Latina” .
Com a possibilidade de relações interpessoais pela rede mundial de computadores, abriu-se o caminho para que fosse realizado também o comércio virtual, o que seria uma alternativa de expansão da economia global. Todavia o direito ainda estava com suas raízes arraigadas ao positivismo jurídico, que proporcionava um certo distanciamento das normas para com a realidade social.
Seguindo essa linha de pensamento, os operadores do direito, trabalhavam exclusivamente ligados a lei, não se preocupando com a ordem social, pois o jurista ou o aplicador da lei, tinha que apegar-se estritamente a ela, deixando de analisar o caso concreto sob uma visão mais realista e social. Tem-se então que a lei, era imposta à sociedade sem que fosse discutido a aplicabilidade e o motivo que levou sua formulação. Diante deste contexto, como será possível o direito regular tantas inovações existentes na atual realidade social?
Certamente com a difusão da internet, as mudanças serão impulsionadas com novas tecnologias de uma maneira muito mais rápida, o que representa uma grande oportunidade de crescimento e até mesmo de sobrevivência para as empresas. Mary Cronin pensa que “gerenciada de forma estratégica, a Internet oferece mais que apenas um elo global com o futuro. Pode tornar-se o principal fator para a liderança na era da interconectividade” .
Concordando com a autora, grande parte das empresas se lançaram a esse sistema de comunicação, por se tratar de algo que transmite sua mensagem em tempo real, possibilitando que seus produtos sejam oferecidos a um mercado muito mais amplo, de uma forma rápida e eficiente. Essa tecnologia aparece mais como um meio de salvação do que de alternativa, pois as empresas em geral, estavam enfrentando um mercado saturado e limitado de vendas, agora com a expansão da economia através da internet, pode-se fazer negócios com consumidores do outro lado do mundo, sem ter que fazer altos investimentos.
O fator determinante desta discussão consiste em que o Direito por ser sempre antecedente aos fatos; no caso do comércio eletrônico, porém, mais que antecedido, o Direito está sendo literalmente “atropelado” por uma realidade que é virtual, e que incide não sobre um determinado objeto, mas em vários ao mesmo tempo, sendo fenômeno físico estranho e desconhecido, que comporta inúmeras interpretações. A Internet ocasionou uma verdadeira “revolução comercial”, com mudanças profundas e radicais para o mundo dos negócios. Mas o que se indaga é que tanto no Brasil como em outros países, a legislação não tem acompanhado o ritmo crescente do desenvolvimento tecnológico, principalmente considerando o impacto que as tecnologias de informação têm provocado na sociedade globalizada. A legislação brasileira, no que tange à transmissão e registro de informação é inadequada e ultrapassada porque não contempla o comércio eletrônico. Dentre os projetos que temitam no Congresso Nacional Brasileiro, destaca-se o de nº 672/99, de autoria do senador Lúcio Alcântara, que prevê que a oferta e aceitação de contratos podem ser feitas por mensagens eletrônicas e que elas serão expedidas e recebidas nos locais onde o remetente e o destinatário têm seus estabelecimentos. Outro projeto importante de nº 1589/99 do deputado Luciano Pizzato, também versando sobre a mesma matéria, embora de forma mais detalhada, que trata da validade jurídica dos documentos eletrônicos, prevendo ainda a certificação digital dos mesmos, via notário, o que lhe daria fé pública. Mesmo assim, ambos dos projetos não esclarecem questões de maior relevância no campo da tributação. E o que se busca é a adequação de definições para a tributação do comércio eletrônico “próprio” ou “direto” é aquele onde a operação começa, se desenvolve e termina nos meios eletrônicos, normalmente a Internet. Atualmente, estas operações estão fora do campo da tributação. “É absolutamente imprescindível, para a tributação válida destas transações, a edição de um conjunto de normas voltadas para especificidade deste novo campo de atividades econômicas. Existe a necessidade de definição clara, precisa, determinada, pelo menos, dos aspectos material, espacial e pessoal da regra-matriz de incidência” . Isso significa que a maior dificuldade é relacionado as definições de termos lingüísticos para tipificação das novas condutas virtuais. Como entende o tributarista Pedro Guilherme Accorsi Lunardelli, que “como temos condições de formular conceitos a respeito da figura de um triangulo, de um unicórnio ou de um deus da mitologia grega, sera possível conceituar o software indicando as propriedades que o definem” .
O ponto que se pretende enfatizar é a incidência do ICMS sobre a circulação virtual. Torna-se oportuno destacar que o fato gerador do ICMS que é definido no artigo 1º da Lei 87/96, deixa expresso que:
“Art. 1º – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”
Analisando tais fatores, entende-se que há a incidência do ICMS, na mera saída ou circulação física da mercadoria. A doutrina de modo geral, costuma dividir a incidência do presente imposto em três situações: a primeira é a circulação física, ou seja, o mero deslocamento da mercadoria; também existe a circulação econômica, que se trata da passagem de um estagio para outro do processo econômico; E por ultimo a circulação jurídica que é a mudança do titular do bem. Mas nenhuma destas situações vai definir corretamente o estágio de circulação virtual de mercadorias. Ai surge o foco principal dessa discussão, vez que “hoje é possível a qualquer um de nós associarmo-nos a um sueco, para produzir algo na Malásia, com a auditoria de uma firma suíça, com co-financiamento americano e japonês. A partir daí pergunta-se: Onde é o fato gerador? Onde é que começa e onde é que acaba? Quem deve o quê? “. É muito difícil fornecer uma solução instantânea para tais indagações, vez que o tema é ainda muito polemico e de variadas interpretações. Já que uma aquisição, por exemplo, de um CD, um automóvel, caracterizam típicas operações de circulação de mercadorias, podendo haver incidência do ICMS. Ressaltando que o direito tributário estava acostumado a trabalhar com fatos físicos, ocorre que agora, descobre-se que temos a informação dissociada de seu suporte físico, como algo autônomo, prometendo mudar radicalmente o estilo de vida em sociedade.
E de complicada analise as situações em que comportem bases tecnológicas, o que não se pode, portanto, é discutir o tema pensando no direito clássico, isto é, muitos olham o novo com os olhos do velho, isso iria dificultar ainda mais a chegada de alguma solução ao problema. Por exemplo, o software teve seu conceito definido pela Secretaria de Estudo da Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro:
“A) Software significa um conjunto de instruções codificadas suportadas em meio físico digital, aplicáveis no funcionamento dos computadores e maquinas assemelhadas, com fim de tratar de informações.
B) Seu regime jurídico é o de direito autoral, por tratar-se bem da intelectualidade(…)”
É conveniente destacar uma decisão proferida no STJ, em que esta corte definiu alguns pontos sobre a incidência de ICMS e ISS sobre softwares:
“Mandado de Segurança – Recurso – Tributário – Software – Programas de computador – tributação pelo ISS ou pelo ICMS – Atividade Intelectual ou Mercadoria – Distinção – Inviabilidade na via Estreita do Mandado de seguraça Preventivo. Os programas de computação feitos por empresas em larga escala e de maneira uniforme, são mercadorias, de livre comercialização no mercado, possíveis de incidência do ICMS. Já os programas elaborados especialmente para certo usuário, exprimem verdadeira prestação de serviços, sujeita ao ISS” .
Nessa mesma perspectiva, o ilustre jurista Orlando Gomes, da sua contribuição, afirmando que:
“Na área da informática, a computação exige o processamento de programas cuja a elaboração pessoal requer do programador criatividade, isto é, um esforço intelectual, original em sua composição e em sua expressão” .
De acordo com a maioria da doutrina e das decisões jurisprudenciais, é perceptível que existe uma diferença entre os softwares de “prateleira”, nestes incidindo o ICMS, que são aqueles que estão a venda em grandes quantidades nas bancas de jornais, supermercados, etc; e os softwares sobre encomenda, que são aqueles que pressupõe um trabalho intelectual, que evidentemente há uma prestação de serviços, incidindo o ISS. Por outro lado, o Ministro Sepúlveda Pertence, relator do leading case, seguindo em caminho contrario, entendeu que: “Estou, de logo, em que o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo” .
Analisando tais posicionamentos é possível notar que ainda há muita polemica girando em torno dos fatos ocorridos na internet, muitas dúvidas em torno dos juristas, com apenas alguns conceitos sendo fixados. Torna-se, portanto um dilema em que se indaga se o direito tributário estará, ou não, apto para enfrentar essa nova realidade?
Ao focalizar os produtos que são frutos da tecnologia, nada mais lógico que se utilizar desta tecnologia para tipificá-los, isto é, já que o direito tributário não possui conceitos adequados para enquadrar essa nova realidade, o ideal é buscar novos conceitos da própria realidade virtual para suprir essa deficiência. O que se deve ter atenção é que o legislativo tributário do comércio eletrônico deve ser geral e flexível, para que possua a capacidade de oferecer soluções para futuras inovações tecnológicas.
Como solução muitos autores, como Arthur Cordell, Luc Soete e Karin Kamp, sugeriram a utilização de uma tributação baseada na “The bit tax Theory” (teoria da tributação sobre o bit). Primeiramente pode-se definir bit como uma “unidade mínima de informação em um sistema digital, que pode assumir apenas um de dois valores”. Demonstrado o significado do bit pode-se compreender que a “bit tax”, consiste em uma tributação nos volumes de informações que são transmitidas da Internet para o computador particular. Luc Soete um dos idealizadores desta teoria, entende que a tributação sobre o bit funcionaria como “um imposto sobre transmissão digital de informação proporcional ao número de bit transmitido e recebido” . A idéia principal da “bit tax” é simples, é uma taxação que ira incidir diretamente as informações envolvidas entre o computador e a internet. Entretanto essa teoria ensejou muitas criticas, a que mais ecoou, foi o entendimento da Comissão Européia, que considerou a imposição de um imposto sobre bit como uma afronta à Constituição da União Européia, pois empregando o método de registrar o volume de informação transmitida, pode parecer a solução mais prática, mas em contrapartida criaria muitos problemas relacionados à critérios de justiça do sistema. “Imagine-se o seguinte exemplo: “A” resolve mandar um e-mail para “B”. B, por sua vez, realiza um contrato de compra e venda de software pela Internet. O e-mail de “A” e o contrato de “B” possuem a mesma quantidade de bits transmitidos. Logo, deverão pagar o mesmo imposto “.
Outro problema evidente que vem a tona, é acerca da jurisdição tributária. Pois numa interligação de computadores onde estes estão espalhados por todo lugar do planeta, quem teria competência pra tributar. É mais do que lógico que “os sites não podem ser qualificados como estabelecimentos virtuais. Para tanto, seria preciso ainda a edição de toda uma legislação regulando as peculiaridades dos mesmos, os aspectos relacionados com o registro fiscal, procedimentos de fiscalização, solução de conflitos de competência, etc. Ausente a legislação referida, os sites devem ser considerados meras extensões dos estabelecimentos físicos” .
Certamente a internet veio para reformar todas as áreas em que tenham um contato direto ou indireto com ela. Isso significa que praticamente todos os conceitos que eram preestabelecidos, hoje já não satisfazem a nova realidade, e devem ser revistos e adequados ao direito informático.
O ICMS que teve em 2002 uma arrecadação nacional de 105,65 bilhões aproximadamente 8,08% do PIB , tem sua incidência sobre toda e qualquer circulação de mercadoria. Seria ate injusto que pessoas se aproveitassem dessa nova realidade virtual para fugir do pagamento dos tributos. Mas o que se deve ter em mente é que os novos conceitos devem ser definidos com cuidado, para não acabar se tornando uma carga tributária injusta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tal caminho põe em destaque, que uma interpretação pacifica esta difícil de aparecer, pois ainda há um grande enfrentamento das idéias modernistas com o modelo clássico. Para chegar-se ao objetivo, devemos pensar estando na tecnologia, não apenas imaginar soluções “de cima”, já que a mesma esta no cotidiano das pessoas, isto é inevitável, o direito não pode ficar inerte esperando os fatos acontecerem sem ter respostas.
Para perfeita concretização do direito tributário virtual é necessário muita reflexão sobre os institutos informáticos de uma maneira que haja uma tributação, visto que deve-se respeitar o direito de igualdade tributária consagrada em nossa Carta Magna, mas ao mesmo tempo deve-se ter cuidado para que a sua tipificação não seja definida de qualquer jeito, que acabe tornando uma forma fiscal injusta. Apesar das diversas interpretações que foi expostas nessa obra, acredita-se que é possível a tributação de bens incorpóreos ou digitais, o que deixa a tarefa mais árdua, a busca de conceitos que possam proporcionar ao direito tributário a certeza de estar fazendo a justiça fiscal.
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