Uma recente decisão da Justiça do Rio, que já está em fase de execução, reforça a jurisprudência sobre um tema polêmico: o respeito à garantia de produtos comprados no exterior por empresas que atuam no Brasil. Aliás, o comportamento das empresas globais que se recusam a prestar assistência local a seus clientes vai de encontro aos novos hábitos dos consumidores no atual cenário da economia do país. Em janeiro, os brasileiros gastaram US$ 2,3 bilhões em viagens ao exterior, o maior valor desde que o Banco Central (BC) começou a registrar tais dados, em 1947.
QUESTÃO EM DEBATE NA OEA
No caso levado à Justiça pelo advogado Ib Teixeira, a juíza Lúcia Glioche, da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais, decidiu que a Nikon do Brasil terá de indenizá-lo em R$ 2 mil por danos morais, além de fornecer a ele um equipamento novo. Teixeira teve negado o conserto gratuito de uma câmera fotográfica comprada durante viagem ao Chile, em abril passado. Com a decisão, os juízes de primeira instância poderão seguir a tendência favorável ao consumidor, embora não haja obrigatoriedade.
— Quando negaram o conserto da máquina fotográfica, decidi entrar com uma ação citando a recomendação do STJ (Superior Tribunal de Justiça). O produto ainda estava no prazo de garantia, mas queriam me cobrar pelo conserto, e um valor que era quase o do equipamento, alegando que esta serve apenas para produtos vendidos no Brasil e com termos de garantia em português — conta Teixeira, que aguardou quase um ano pela sentença.
A Nikon do Brasil informou, em nota, que age dentro da lei e segue na íntegra o Código de Defesa do Consumidor (CDC), “assim como qualquer determinação do Poder Judiciário brasileiro em todas as suas relações com consumidores”. A empresa “não comenta casos jurídicos publicamente.”
A assessora técnica do Procon-SP Maíra Feltrin Alves destaca que, embora ainda não haja legislação específica a respeito da aceitação global dos termos de garantia de produtos, as empresas terão que mudar esse entendimento e se adequar à nova realidade: — Isso não será tão fácil, mas, com o comércio eletrônico em ascensão, as empresas e os fornecedores terão de se adequar. É uma nova realidade.
Agora, é importante que o consumidor também atue de forma efetiva, que saiba cobrar e exigir seus direitos. Essa decisão da Justiça do Rio simplesmente traduziu o desejo da sociedade.
Entretanto, de acordo com Juliana Pereira, titular da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça (Senacon/ MJ), o assunto está longe de ser solucionado fora da esfera judicial. Até o momento, a possibilidade de acordo próximo existe apenas entre os países do Mercosul:
— Apresentamos à Organização dos Estados Americanos (OEA), em 2009, proposta para a criação de uma conferência sobre o assunto. A ideia era criar a Conferência Interamericana de Direito Privado, mas Estados Unidos e Canadá não apoiaram. E o assunto está parado. Vamos tentar uma nova rodada de conversas, mas é um trabalho longo — afirma Juliana, acrescentando que o assunto está na agenda da Senacon para este ano. — Esta é uma preocupação do Ministério da Justiça.
Segundo o advogado Rogério Beze, professor de direito do consumidor, apesar da tendência favorável dos juizados, antes de fazer compras no exterior, especialmente de produtos eletroeletrônicos, o brasileiro deve levar em conta o risco de enfrentar uma verdadeira peregrinação judicial, caso necessite de assistência técnica por aqui.
— Não creio que seja possível comprar tranquilamente. É fundamental observar se a garantia mundial está expressa no contrato de compra. Há empresas que oferecem esse recurso e orientam o consumidor a enviar o produto pelo correio, caso precise de assistência técnica. Mas ainda são poucos casos. E os acordos entre fornecedores e clientes são difíceis. Acho que há uma barreira operacional por parte das empresas que, no Brasil, negam a assistência técnica dentro da garantia para produtos da marca comprados lá fora — diz Beze.
O especialista defende ainda que o consumidor, com frequência, é levado a acreditar, por meio da propaganda, que as marcas pertencem a um único grupo empresarial.
— Há casos, por exemplo, em que um mesmo garoto-propaganda é usado para divulgar a marca em vários países. Caso de atores e jogadores de futebol — ressalta Beze.
DECISÃO DO STJ ABRIU CAMINHO O STJ
já havia anunciado, nos anos 1990, decisão semelhante contra a fabricante de eletrônicos Panasonic. No despacho, a 4ª Turma do STJ diz que “se as empresas se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, devem responder também pelas deficiências dos produtos, não sendo razoável destinar ao consumidor as consequências negativas dos negócios envolvidos e defeituosos”.
Por três votos a dois, o advogado paulista Plínio Gustavo Prado Garcia ganhou a ação que movia contra a Panasonic. A empresa recusou o conserto de uma máquina filmadora da marca por ter sido adquirida em Miami, nos Estados Unidos, em julho de 1991. A unidade brasileira alegava que o certificado de garantia, válido por um ano, estaria limitado ao território americano.
Com base no CDC, o advogado entrou com uma ação de indenização no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Nela afirmava que a garantia contra defeitos de fabricação é do produto e não estaria vinculada ao território onde tenha sido fabricado ou vendido. O TJ-SP negou o pedido porque entendeu que a Panasonic brasileira não estava obrigada a garantir mercadoria produzida e comercializada pela matriz ou filiais no exterior. No entanto, o STJ acolheu a argumentação de Garcia de que a Panasonic do Brasil deveria se responsabilizar pelo defeito do equipamento porque integra a multinacional com sede em Osaka, no Japão. Além disso, o advogado destacou que a empresa fabrica produtos da mesma marca e colabora indiretamente com a venda deles em outros países.