Introdução
Com freqüência, as auditorias militares dos Estados recebem denúncia de crime de Deserção contra policiais e bombeiros que por diversos motivos, tanto de ordem pessoal ou divergências com seus superiores, deixam de comparecer à unidade onde está lotado. Neste artigo, evidencia-se a distinção entre o conceito jurídico dos militares integrantes das Forças Armadas e os militares estaduais das Polícias e Corpo de bombeiros militares. Com base na exegese, também se demonstra a incompatibilidade em equiparar os policiais e bombeiros aos militares servidores da pátria. Referência ao Acórdão do CC 7.051/SP, STF Rel. Min. Maurício Corrêa: “2. A leitura do artigo 42 da Constituição Federal não autoriza o intérprete a concluir pela equiparação dos integrantes das Polícias Militares Estaduais aos Componentes das Forças Armadas, para fins de Justiça. 3. Impossibilidade de enquadramento no artigo 9º e incisos, do Código Penal Militar, que enumera, taxativamente, os crimes de natureza militar.” Trata-se de um conceito inovador, pois predomina o entendimento de que na prática do direito penal militar não há qualquer critério a definir a enorme diferença entre estas nomenclaturas jurídicas. O certo é que poucos sabem que o legislador não inseriu os militares estaduais no instituto do direito penal militar, além de que deixou explícito na ideologia do Código Penal Militar que “são considerados militares para efeitos penais qualquer pessoa incorporada às Forças Armadas para nela servir em posto, graduação ou sujeição à disciplina.”
Entretanto, ações por crime de deserção são deflagradas contra militares estaduais que deixam de comparecer a respectiva unidade por mais de oito dias. Muitas vezes, a ausência se dá por conta de punições disciplinares arbitrariamente aplicadas por superiores, resultando-se prisões do subordinado, sem ao menos lhe conferir o direito de defender-se. Primeiro se prende, depois que o miliciano cumpre a reprimenda, a qual não deve ultrapassar 30 dias, ele pode manejar os recursos administrativos para afastar os efeitos da punição na sua ficha de comportamento.
Ocorre que, temendo o constrangimento de ser preso, o militar estadual impetra habeas corpus preventivo e deixa de comparecer ao quartel enquanto aguarda a decisão final. Por isso, responde por crime de Deserção. Usualmente, também se imputa deserção ao militar estadual que adere a movimentos para reivindicar direitos trabalhistas e aos milicianos foragidos da justiça comum.
Militares Estaduais: Componentes da Reserva das Forças Armadas O Superior Tribunal Militar patenteou pacífica orientação de que o crime de Deserção é de mão própria e tem como agente o militar da ativa. Com efeito, o art. 4°, inciso II do Estatuto dos Militares estabelece que a Polícia Militar e Corpo de Bombeiro Militar são reservas das Forças Armadas: Art. 4º São considerados reserva das Forças Armadas: I – individualmente: a) os militares da reserva remunerada; e “b) os demais cidadãos em condições de convocação ou de mobilização para a ativa”. “II – no seu conjunto: a) as Polícias Militares; e b) os Corpos de Bombeiros Militares.” Além disso, o art. 3°, par. 1°, alínea “a”, inciso III, esclarece que os componentes da reserva podem vir a integrar o quadro “da ativa” em ocasiões especiais: Art. 3º Os membros das Forças Armadas, em razão de sua destinação constitucional, formam uma categoria especial de servidores da Pátria e são denominados militares. § 1º Os militares encontram-se em uma das seguintes situações: a) na ativa: I – os de carreira; II – os incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço militar inicial, durante os prazos previstos na legislação que trata do serviço militar, ou durante as prorrogações daqueles prazos; “III – os componentes da reserva das Forças Armadas quando convocados, reincluídos, designados ou mobilizados;” IV – os alunos de órgão de formação de militares da ativa e da reserva; e V – em tempo de guerra, todo cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas. b) na inatividade: I – os da reserva remunerada, quando pertençam à reserva das Forças Armadas e percebam remuneração da União, porém sujeitos, ainda, à prestação de serviço na ativa, mediante convocação ou mobilização; e II – os reformados, quando, tendo passado por uma das situações anteriores estejam dispensados, definitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuem a perceber remuneração da União. III – os da reserva remunerada, e, excepcionalmente, os reformados, executado tarefa por tempo certo, segundo regulamentação para cada Força Armada. (Alterado pela L-009.442-1997) Neste sentido, tem-se: 1. Sujeito passível de “convocação”: Os reservistas, militares estaduais e integrantes da reserva remunerada. 2. Sujeito passível de “reinclusão”: Os integrantes da reserva remunerada, isto é, quando percebam remuneração da União. 3. Sujeito passível de “designação”: Os reformados das Forças Armadas e da reserva. 4. Sujeito passível de “mobilização”: Os militares estaduais, reservistas, integrantes da reserva remunerada e, em estado de guerra, o civil.
Policial é Militar Provisório
Em suma, tanto os militares estaduais quanto os reservistas, são “militares em potencial”, ao passo em que se sujeitam às situações acima previstas, para integrar temporariamente o quadro da ativa da Forças Armadas, como componentes das Forças Auxiliares. São “cidadãos em condição de convocação ou mobilização” a que se refere o art. 4°, inciso I, alínea “b” acima consignado. O militar estadual em condição ordinária de Servidor Público Militar Estadual, não é militar em sua acepção original, até porque não se ajusta a quaisquer das situações previstas no art. 3°, par. 1°, alínea “a”, especificamente quanto à situação de atividade. Também não se pode amoldar o militar estadual no conceito de “militar da inatividade”, nos termos de que trata a alínea “b” deste artigo, já que se limita aos componentes da reserva remunerada “que percebem remuneração da União”. Definitivamente, não é o caso do agente de policia ou bombeiro militar. Portanto, como o militar estadual não se encontra naquelas situações previstas como sendo da ativa ou inatividade, não é considerado militar “membro das Forças Armadas”. Na verdade, a condição do militar estadual em relação às Forças Armadas é semelhante a do reservista. São “militares pro-tempore”.
Atividade Policial-Militar não é Serviço de Natureza MilitarEm relação ao Código Penal Militar, ele não se afeiçoa à expressão “militar em situação de atividade”, pois esta denominação se confunde com o termo “militar da ativa”: Art. 6º São equivalentes as expressões “na ativa”, “da ativa”, “em serviço ativo”, “em serviço na ativa”, “em serviço”, “em atividade” ou “em atividade militar”, conferidas aos militares no desempenho de cargo, comissão, encargo, incumbência ou missão, serviço ou atividade militar ou considerada de natureza militar nas organizações militares das Forças Armadas (…) Estatuto dos Militares. Nem tampouco se pode afirmar que o serviço policial militar, patrulhamento ostensivo e prevenção da ordem pública, seja atividade de “natureza militar”; do contrário não teria sentido o seguinte dispositivo do art. 9°, inciso III, do Código Penal Militar: d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, “ou” no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior. No texto acima, a conjunção “ou” caracteriza a distinção entre “função de natureza militar” e “serviço de garantia e preservação da ordem pública”. Não há também falar em “máculas” à Administração Militar, haja vista que o serviço policial militar vincula-se à Administração Pública. Destarte, no caso em exame não incide o seguinte dispositivo do CPM: Equiparação a militar da ativa Art. 12. O militar da reserva ou reformado, empregado na administração militar, equipara-se ao militar em situação de atividade, para o efeito da aplicação da lei penal militar. O termo “empregado na administração militar” se restringe às situações peculiares em que o servidor militar estadual (reserva de Exército) é mobilizado ou convocado, hipótese em que ele se equipara ao militar da ativa. É justamente quando “deixa de ser militar em potencial” para se tornar “militar propriamente dito”. Todavia, fora dessa exceção, o policial e bombeiro militar estadual, bem como os reservistas não são militares, mas sim “cidadãos sujeitos à disciplina militar”, ou seja, pessoas passíveis de tornar-se “militares provisórios”. As instituições militares estaduais, embora reservas das Forças Armadas, desempenham serviços destinados à manutenção da ordem pública e a proteção da incolumidade física e moral das pessoas. Todavia, em situações especificamente definidas em lei e que ensejam convocação ou mobilização dos seus componentes, tais atividades se nivelam às essencialmente ou de natureza militar. Segundo a técnica hermenêutica, o crime de Deserção, por ter como objetividade jurídica a Administração Militar, e não a Administração Pública, não pode nem deve ser imputado aos militares estaduais, salvo nas hipóteses definidas em lei. O Policial Militar se equipara ao Civil para Efeitos da Lei Castrense Segundo o Código Penal Militar, são considerados militares para efeitos de aplicação da lei penal militar, os incorporados às Forças Armadas, mediante procedimento específico. No caso dos militares estaduais, a convocação ou mobilização. Art. 22. É considerada militar, para efeito da aplicação deste Código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar. Se os militares estaduais fossem equiparados aos militares das Forças Armadas e a atividade policial às de natureza militar, o policial quando em serviço, responderia perante a Justiça Castrense pelos crimes praticados contra civil, nos termos do art. 9, inciso II, alínea “c” do CPM: Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: c) por militar em serviço ou atuando em razão da função contra civil, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar.” (síntese literária) E o cidadão civil também responderia na Justiça Militar pelos crimes de desacato, resistência, desobediência, de acordo com que dispõe o inciso III, alínea “d”, deste artigo: III – os crimes praticados por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos (sintaxe): d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar no desempenho de serviço de garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior (sintaxe). Todavia, a jurisprudência é pacífica ao firmar a competência da Justiça Comum nestes casos. Assim, o militar estadual, não sendo considerado “militar propriamente dito”, para fins de subsunção típica dos crimes militares impróprios, também não o é, e com maior ênfase, no que concerne aos crimes propriamente militares. Referência ao Acórdão do HC n° 72.022/PR, Rel. para Acórdão Min. Marco Aurélio: “Ainda que em serviço a vítima – policial militar e não militar propriamente dito…” Informativo nº 102, quinta turma, STJ, HC 11.376 –SP “Compete à Justiça comum estadual processar e julgar crime de desacato praticado por policial militar reformado contra policial militar em serviço de controle e sinalização de trânsito.” Em Situação de Greve o Policial pode responder por Deserção
Contudo, em caso de greve, a Policia Militar pode ser mobilizada, sendo que o cargo policial militar passa a ser considerado “cargo de natureza militar” e os militares estaduais são incorporados à ativa da Forças Armadas, por meio do respectivo ato, podendo figurar como agentes ativos ou passivos dos crimes propriamente militares. Mas, em situação de normalidade, o agente de policia militar responde no Juizado Especial Criminal por abandono de função, sem prejuízo de sanções administrativas cabíveis : Art. 323 CP – Abandonar cargo público, fora dos casos permitidos em lei.
A Eficácia do Crime Propriamente Militar no Tempo
Quanto aos militares “de carreira”, ou seja, os permanentes, tem-se que o crime propriamente militar, tal como um desiderato intrínseco destes “militares federais”, tem sua vigência em função dessa qualidade do agente – critério ratione personae. O militar estadual, porquanto não alcançado pelo escopo da lei castrense, sujeita-se, sobretudo, a estas leis quando devidamente convocado ou mobilizado, o que somente acontece em ocasiões especiais.
Neste caso, policiais e bombeiros incorporam as prerrogativas de “militar da ativa” e respondem pelos crimes militares próprios, os quais se dotam de ultratividade, isto é, mesmo cessando-se a situação excepcional, e conseguinte perda da qualidade de militar da ativa, o militar estadual responde pelos crimes propriamente militares praticados durante a vigência da lei temporária.
Competência para julgar e processar os Crimes Propriamente Militares
Não obstante a Constituição Federal estabelecer, no seu art. 125, par. 4°, a competência da Justiça Estadual para “processar e julgar os militares estaduais nos crimes militares definidos em lei”, o certo é que tal dispositivo não se refere aos crimes militares próprios.
De fato, o trecho “crimes militares definidos em lei”, não se traduz como mera redundância do princípio da legalidade aos crimes militares. A palavra crime, porquanto “fato típico e ilícito previamente definido em lei”, já traz em seu significado jurídico a necessidade de sua definição legal.
Na verdade, a análise lógico-gramatical da Constituição Federal, em seu conjunto literário, sinaliza a expressão “crimes definidos em lei”, como sendo “alguns crimes que em função de disposição especial ou circunstância de fato e direito devidamente expressa em lei se incluem na respectiva norma”.
Destarte, nos crimes propriamente militares, vez que específicos à militares da ativa, e não a militares estaduais, a competência é da circunscrição da Justiça Militar da União, máxime em razão do Estado não ser detentor do bem jurídico sob égide da objetividade jurídica desse ramo especializado do direito, qual seja, a estabilidade dos serviços relativos à Administração Militar, os quais são, por excelência, abarcados pela União.
Igualmente, a competência se firma pelo critério ratione personae, no que se conclui que o militar estadual somente responde por tais crimes se devidamente incorporado às forças armadas, ocasião em que se equiparam in tontum aos “militares da ativa”, inclusive para responder como os militares de carreira pelos crimes militares, próprios ou impróprios, nas circunstâncias definidas no art. 9° e seus incisos do Código Penal Militar.
Conclusão Conclui-se que o militar estadual só é considerado “militar” às luzes da legislação estadual pertinente, visto que se sujeitam à hierarquia e disciplina, inspiradas no regulamento do Exército. Mas, realizam atividades civis, sendo que em regra, são assim concebidos pela lei penal, destarte, relativamente invulneráveis à prática do crime de deserção e demais infrações propriamente militares.
Bibliografia DJI. Código Penal Militar, Estatuto dos Militares, Código Penal Brasileiro, Constituição Federal. STF. Revista eletrônica das jurisprudências. STJ. Revista eletrônica das jurisprudências
Autor: Rafael Pereira de Albuquerque