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O instituto da interceptação telefônica e a possibilidade da sua utilização em outros ramos do direito

Sumário: 1. Introdução; 2. Casuística; 3. Da conduta; 4. Da possibilidade de emprestar ao direito administrativo a prova colhida em interceptação telefônica; 5. Da conclusão.

1. Introdução

O presente escrito trata-se de uma casuística ocorrido na vida prática, envolvendo um servidor público que, em tese, praticou o crime de injúria e um ilícito administrativo punido com suspensão, através de uma conversa telefônica com um amigo que tinha seu celular interceptado pela polícia, com autorização judicial.O objeto principal deste artigo será a análise da utilização, ou da possibilidade de utilização, do conteúdo desta interceptação telefônica, em processo administrativo disciplinar, ocasião em que será também analisado a questão da prova emprestada, com um enfoque doutrinário e jurisprudencial.

2. Casuística

Recentemente, no desempenho das minhas atividades, como Delegado de Polícia, lotado na Assessoria Jurídica do Departamento de Polícia Especializada – DPE/PCDF, recebi da Corregedoria de Polícia Civil, para apreciação e providências cabíveis, cópia de uma interceptação telefônica, realizada por aquela instituição, com ordem judicial, cujo conteúdo, demonstrava indícios da prática de infração disciplinar cometida por servidor policial civil afeto ao DPE.

Constava, ainda, no memorando que encaminhou o expediente, que a divulgação do conteúdo da interceptação fora autorizada pelo juiz que a decretou.

Analisada a documentação , constatei que o referido policial civil, em conversa telefônica com um investigado (monitorado), em determinado momento diz as seguintes palavras: “Eu já falei com o cara, já, já, falei só que é o seguinte, a Delegada que tá lá eu sei quem é, uma filha da puta lá, uma piranha, uma safada, uma FULANA que eu não conheço. Ce tinha que vê se o FULANO conhece ela”. (negritei).

Na ocasião, o policial civil e o investigado conversavam sobre um amigo que fora autuado em flagrante delito por porte ilegal de arma de fogo, em uma das Delegacias do Distrito Federal.

3. Da conduta

Em tese, a conduta do policial civil, poderia caracterizar dois ilícitos, um no âmbito criminal e outro no âmbito administrativo, senão vejamos:

a) No Código Penal, poderia caracterizar o crime de injúria tipificado no art. 140, sob a seguinte redação: “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa”. Se chegasse ao conhecimento da vítima (a Delegada).

b) Na Lei nº. 4.878/65, poderia caracterizar a conduta tipificada no inciso I, do art. 43, que dispõe: “referir-se de modo depreciativo a autoridades e atos da administração pública, qualquer que seja o meio empregado para esse fim”. Sanção: SUSPENSÃO .

O delito de injúria é punido com pena de detenção, tratando-se de crime de menor potencial ofensivo (Lei nº. 9.099/90), de competência dos Juizados Especiais Criminais, somente se procedendo mediante queixa-crime, fazendo-se necessário que a vítima, no caso a Delegada, tomasse conhecimento dos fatos, o que não ocorreu.

Cabe lembrar que referida injúria não foi praticada na presença da vítima, o que não descaracteriza o delito, desde que tenha chegado, de alguma forma, ao seu conhecimento, pois a jurisprudência é no sentido de ser irrelevante que a injúria seja proferida na frente da vítima ou que lhe chegue ao conhecimento por intermédio de terceiro. Nesse sentido: RT, 425:345, 606:414 E 640:319 E 320; JTACrimSP, 15: 276; RTJ, 116:963 .

4. Da possibilidade de emprestar ao direito administrativo a prova colhida em interceptação telefônica:

A questão principal gira em torno do suposto ilícito administrativo praticado pelo servidor (item “b”), bem como o fato da prova ter sido colhida em uma interceptação telefônica.

Pergunta-se: é possível utilizar-se do conteúdo de uma interceptação telefônica para fazer prova no âmbito do Direito Administrativo, visando apurar infração disciplinar?

A interceptação das comunicações telefônicas é um procedimento de investigação criminal, regida pela lei 9.296/96, que ingressou no ordenamento jurídico nacional visando regulamentar o inc. XII, do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, a qual através deste dispositivo assegurou como direito fundamental do cidadão, a inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas, exceto, com ordem judicial, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, senão vejamos:

ART. 5, (…), XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (negritei).

A Lei nº 9.296/96 ao regular a interceptação telefônica, trouxe alguns requisitos para a sua concessão, entre eles que o crime investigado seja punido com pena de reclusão; que haja indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal; e, que a prova não possa ser colhida por outros meios disponíveis. É a interpretação do seu art. 2º . FERNANDO CAPEZ, ao tratar da interceptação telefônica, dispõe: “Assim, não poderá ser autorizada judicialmente a diligência, quando a finalidade for extrapenal ou quando tratar-se de contravenção penal ou crime apenado com detenção. Fica claro seu caráter subsidiário, somente tendo lugar quando não for possível nenhum outro meio de formação do conhecimento” (negritei).

Isso basta para afirmar sem medo de errar que a intenção do legislador constituinte, assim como do legislador infraconstitucional foi de restringir à esfera criminal os casos de interceptação telefônica. Não havendo que se falar em interceptação das comunicações telefônicas no Direito Civil ou no Administrativo. Em outras palavras, não se pode decretar a interceptação telefônica para apurar fato que não tenha natureza criminal.

Ora, não foi isso que ocorreu no caso sub examinem, visto que a interceptação das comunicações telefônica, aqui tratada, foi decretada por um juiz competente (criminal), em um procedimento criminal, a pedido da Corregedoria de Polícia para a colheita de provas de natureza penal e não ilícito administrativo. Resta agora, analisar as hipóteses de utilização da referida prova, a título de empréstimo, no Direito Administrativo.

A prova emprestada, segundo o magistério de Guilherme de Souza Nucci, “é aquela produzida em outro processo e, através da reprodução documental, juntada no processo criminal pendente de decisão. O juiz pode levá-la em consideração, embora deva ter a especial cautela de verificar como foi formada no outro feito, de onde foi importada, para saber se houve o indispensável devido processo legal. Essa verificação inclui, naturalmente, o direito indeclinável ao contraditório, razão pela qual abrange o fato de ser constatado se as mesmas partes estavam envolvidas no processo onde a prova foi efetivamente produzida” .

Assim, no âmbito criminal, a possibilidade da utilização da prova emprestada é pacífica, desde que as partes sejam as mesmas nos dois processos em que a prova será usada, ou seja, a prova emprestada só tem validade se for colhida perante o mesmo réu, pois nesse caso não desrespeitaria o princípio do contraditório e da ampla defesa na sua colheita .

Quanto à possibilidade de se emprestar ao Direito Administrativo uma prova produzida no âmbito criminal, colhida de forma legal, deve-se seguir o mesmo raciocínio, ou seja, se o servidor investigado (sindicado ou processado), for o mesmo do processo criminal (acusado ou réu), não existe razão para desconsiderar a prova criminal que foi submetida ao crivo do contraditório e da ampla defesa, tratando-se de prova lícita, e, inclusive, judicializada, não caracterizando a hipótese do Art. 5º, inc. LVI da Constituição Federal, que não admite provas obtidas pelos meios ilícitos. Mesmo porque, um ilícito criminal, na maioria das vezes, caracteriza, também, um ilícito administrativo.

Ocorre que, o caso analisado, envolve uma interceptação telefônica, tornando-o mais complexo, visto que não é pacífico o posicionamento doutrinário de se utilizar a prova colhida na interceptação, em outros ramos do direito, senão vejamos:

a) LUIZ FLÁVIO GOMES ensina que: “Em conclusão, a prova colhida por interceptação telefônica no âmbito penal não pode ser “emprestada” (ou utilizada) para qualquer outro processo vinculado a outros ramos do direito. (…) essa prova criminal deve permanecer em “segredo de justiça”. É inconciliável o empréstimo de prova com o segredo de justiça assegurado no art. 1º. (INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA, Ed. RT, p. 118/119).

b) VICENTE GRECO FILHO ensina que: “Os parâmetros constitucionais são limitativos. A finalidade da interceptação, investigação criminal e instrução processual penal é, também, a finalidade da prova, e somente nessa sede pode ser utilizada”. (INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA, ed. Saraiva, pág. 24);

c) LUIZ VICENTE CERNICCHIARO , ao comentar sobre a Lei. 9.296/96 diz que: “De outro lado, a prova colhida conforme o procedimento mencionado só pode ser utilizada na hipótese mencionada no requerimento de autorização judicial. Ou seja, imprestável para outro Inquérito, ou outro processo”.

d) ADA PELLEGRINI , por sua vez, aceita a prova emprestada colhida através da interceptação telefônica desde que o processo penal tenha sido desenvolvido entre as mesmas partes. Eis suas palavras: “O valor constitucionalmente protegido pela vedação das interceptações telefônicas é a intimidade. Rompida esta, licitamente, em face do permissivo constitucional, nada mais resta a preservar. Seria uma demasia negar-se a recepção da prova assim obtida, sob a alegação de que estaria obliquamente vulnerado o comando constitucional. Ainda aqui, mais uma vez, deve prevalecer a lógica do razoável”.

e) Nelson Nery Júnior “in Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, SP, RT, l996, 3a.edição, pgs.l59/l60”, assegura ser possível o Juízo Cível valer-se da chamada prova emprestada da Ação Penal, desde que a parte contra quem se vai produzir a prova obtida através de escuta, seja a mesma em ambas as esferas e se observe o princípio do contraditório, em respeito à unidade da jurisdição.

Os dois últimos posicionamentos (itens “d” e “e”) parecem ser os mais autorizados, inclusive, coincidem com o do STJ, o qual ao julgar o MS 9212 / DF, nº 2003/0142195-4 (Rel. Min. GILSON DIPP), envolvendo processo disciplinar e interceptação telefônica, entendeu que:

(…)

VI – Sendo a interceptação telefônica requerida nos exatos termos da Lei nº 9.296/96, uma vez que o impetrante também responde a processo criminal, não há que se falar em nulidade do processo administrativo disciplinar.

VII – Evidenciado o respeito aos princípios do devido processolegal, do contraditório e da ampla defesa, não há que se falar em nulidades do processo administrativo disciplinar, principalmente quando o “writ” é impetrado como forma derradeira de insatisfação com o conclusivo desfecho do processo administrativo disciplinar.(…)

Ora, não era o policial civil que estava sendo investigado (monitorado) pela Corregedoria Geral de Polícia, e sim, o seu amigo.

Veja que os supostos ilícitos (penal e administrativo), praticados pelo servidor, somente vieram à tona por força da interceptação telefônica autorizada em um procedimento criminal, de forma casual, ou seja, não era objeto de investigação anterior, tendo surgido de forma repentina, não tendo relação com o interceptado (investigado).

Nas palavras de Luiz Flávio Gomes : “é o que a doutrina penal denomina de “encontro fortuito” (“hallazgos fortuitos”) ou “descubrimientos casuales” ou “descubrimientos acidentales” ou, como se diz na Alemanha, “Zufallsfunden”. Significa dizer que, as palavras injuriosas proferidas pelo policial civil, dificilmente chegariam ao conhecimento da Delegada (a vítima), face à privacidade de que se reveste uma conversa telefônica.Ademais, os fatos colhidos casualmente na referida interceptação, que incriminam o servidor, não foram submetidos ao crivo do contraditório e da ampla defesa (após o término da interceptação), não se encaixando nas hipóteses de admissibilidades de prova emprestada, conforme as orientações doutrinárias e jurisprudenciais, acima colacionadas.

A não ser que houvesse, com base nas informações colhidas na interceptação telefônica, uma Ação Penal promovida pela vítima do crime de injúria (trata-se de crime de Ação Penal privada de menor potencial ofensivo), ocasião em que todo o conteúdo da interceptação, seria submetido ao crivo do contraditório e a ampla defesa, e em sendo aceito, pelo Juizado Especial Criminal, aí sim, poderíamos falar em prova emprestada.

Imagine a hipótese da confissão de uma dívida, através de uma interceptação telefônica, deferida judicialmente em investigação criminal, onde o devedor, um terceiro que se comunicou com o investigado, narrou, com riqueza de detalhes, como obteve o empréstimo, dizendo ainda, que o seu credor, moveu uma ação de cobrança contra sua pessoa, mas que não tinha provas suficientes para obter êxito na ação, visto que não assinou nenhum documento como garantia da dívida e o fato não foi presenciado por testemunhas. No meu entendimento, caso o credor tivesse acesso ao conteúdo dessa interceptação, essa confissão de dívida à terceiro, não poderia ser utilizada como prova no processo cível. Por outro lado, não vejo com bons olhos, a divulgação de conteúdo de interceptação de comunicações telefônicas, fora do âmbito do juízo criminal em que tramita, bem como o seu acesso por terceiros que não estão envolvidos no respectivo processo (acusado, advogado, juiz, promotor, autoridade policial e seus agentes). É comum a divulgação, nos meios midiáticos, de trechos de conversas telefônicas colhidas em investigação policial, através da interceptação, com autorização judicial.

Ora a Lei nº. 9.296/96 em seu art. 8º, dispõe que: “A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do Inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas”. Daí, a importância da Autoridade Judiciária, o Ministério Público, a Autoridade Policial e seus agentes, assim como os servidores que manusearem o processo, tomarem as cautelas necessárias visando resguardar o sigilo da interceptação telefônica e seu conteúdo, restringindo-o às partes.

A mesma lei, em seu art. 10, tipificou como crime, punindo com reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa, a conduta daquele que realizar a interceptação telefônica, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Entretanto, este delito, não revogou a parte final do inc. II, do § 1º do art. 151, do Código Penal, que trata do crime de divulgação, transmissão e utilização abusiva de conversa telefônica entre outras pessoas, punido com detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses. Crime este que constantemente vem sendo praticado, sob o argumento da liberdade de imprensa.

5. Da conclusão

Diante do acima exposto, chego às seguintes conclusões:a) a interceptação das comunicações telefônicas somente pode ser decretada, por juiz competente (criminal), para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

b) é perfeitamente possível, a prova colhida em interceptação telefônica, ser emprestada a outro procedimento criminal, desde que sabatinada pelas mesmas partes, e, assim, observados o contraditório e a ampla defesa, pois trata-se de prova obtida por meio lícito;

c) que com esse mesmo raciocínio, referida prova poderia, também, ser utilizada em outros ramos do direito, desde que as partes sejam as mesmas em ambos os processos (criminal e administrativo);

d) que o caso sub examinem não se encaixa nas hipóteses que autorizam a utilização da prova emprestada, em virtude de que o servidor, o policial civil, não estava sendo investigado no âmbito criminal, tratando-se de hipótese de encontro fortuito de provas, que, por si só, não serve para a instauração de procedimento disciplinar administrativo, pois do contrário, pela via transversa, estaríamos burlando o texto constitucional que é expresso quanto à interceptação telefônica: “para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”;

e) que o Juiz, o Ministério Público, a Autoridade Policial e seus agentes, devem zelar pelo sigilo das comunicações telefônicas, independentemente de já ter sido concluída e submetida ao crivo do contraditório e da ampla defesa, visto que as informações colhidas por este meio investigatório, pode revelar comportamento íntimo dos interlocutores, não relacionados com as condutas criminosas investigadas, que podem prejudicá-los de alguma forma se forem divulgados.

Assim, nessa linha de raciocínio, submeti parecer à apreciação da Corregedoria Geral de Polícia, sugerindo o arquivamento do expediente, o que foi acatado.

Bibliografia:

1. CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.2. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Lei 9.296/96 : interceptação telefônica. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.47, out. 1996.3. GOMES, Luiz Flávio. Interceptaçäo telefônica e encontro fortuito de outros fatos. Boletim do IBCCRIM. S.Paulo, n.51, p. 06, fev. 1997;4. GOMES, Luiz Flávio. Direito processual Penal. v. 6. Ed. RT. São Paulo. 2005.5. GRINOVER, Ada Pelegrine. As nulidades no processo penal, 6ª Edição, Ed. RT.6. JESUS, Damásio E. de. Codigo penal anotado, 4 ed. Saraiva 1994.7. JÚNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, SP, RT, l996, 3a.edição.8. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2004.9. Lei nº. 4.878/65 – Estatuto dos Policias Civis do Distrito Federal e Policiais Federais.