Prevê o artigo 5º do Código de Trânsito Brasileiro que “O Sistema Nacional de Trânsito é o conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que tem por finalidade o exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades”.
A coordenação máxima deste Sistema está a cargo do Conselho Nacional de Trânsito, por força do artigo 7º, inciso I, do CTB, o qual, por sua vez, está atualmente vinculado ao Ministério das Cidades, conforme prevê o artigo 9º do Código, combinado com o Decreto federal nº 4.711, de 29/05/03, a partir do que podemos inferir que o Sistema Nacional de Trânsito, como um todo, bem como os diversos órgãos de trânsito, em particular, estão inseridos, dentre os poderes governamentais, na área de atuação do Poder Executivo, muito embora, como veremos a seguir, sejam desempenhadas funções específicas dos outros Poderes, guardadas, logicamente, as devidas proporções.
A administração do trânsito, como expressão que reúne todas as atividades mencionadas no artigo 5º do CTB, apresenta uma peculiaridade interessante, pois, ao tratar de um assunto cotidiano da sociedade, que é a utilização das vias públicas, o Poder Executivo acaba se comportando como um Estado paralelo, em que vemos, claramente, a independência e harmonia dos três Poderes, tratados por Montesquieu, na denominada “Teoria da separação dos poderes”, na obra “O Espírito das leis” (1748), e consignados nas Constituições brasileiras, desde a primeira Carta republicana, datada de 1891, até a atual Constituição Federal, de 1988, a qual estabelece, em seu artigo 2º:
“Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
De certo modo, a atuação peculiar dos órgãos de trânsito, nos termos acima mencionados, explica-se pela flexibilização da regra estabelecida no transcrito artigo 2º, de vez que, apesar da independência entre os Poderes, é fato que cada um deles executa não só sua função típica, mas também possui funções atípicas, que, em regra, são atribuídas aos outros Poderes; não obstante a constatação desta condição, entendemos que a associação das competências dos órgãos de trânsito com as funções específicas de cada Poder ajuda, sobremaneira, a conceber e entender a atuação do Sistema Nacional de Trânsito.
Desta forma, vejamos o que dispõe o artigo 7º do CTB, para, em seguida, relacionar os órgãos de trânsito com as funções típicas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
“Art. 7º. Compõem o Sistema Nacional de Trânsito os seguintes órgãos e entidades:
I – o Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, coordenador do Sistema e órgão máximo normativo e consultivo;
II – os Conselhos Estaduais de Trânsito – CETRAN e o Conselho de Trânsito do Distrito Federal – CONTRANDIFE, órgãos normativos, consultivos e coordenadores;
III – os órgãos e entidades executivos de trânsito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
IV – os órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
V – a Polícia Rodoviária Federal;
VI – as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal; e
VII – as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações – JARI.”
Se considerarmos que as funções típicas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, são, respectivamente, a elaboração das leis, a administração do Estado e a aplicação da lei (função jurisdicional), podemos sintetizar as atividades desenvolvidas pelos órgãos relacionados no artigo 7º da seguinte forma:
1. ATIVIDADE LEGISLATIVA DE TRÂNSITO: desenvolvida pelos órgãos normativos, denominados Conselhos de Trânsito (que, por sinal, inexistem no âmbito municipal).
Neste aspecto, importante frisar que apesar das leis, em sentido estrito, serem somente aquelas determinadas pelo artigo 59 da Constituição Federal, o fato é que as normas emanadas do Conselho Nacional de Trânsito (na forma de Resoluções ou Deliberações), quando regularmente instituídas, na complementação da lei federal (Código de Trânsito Brasileiro) possuem força de lei, a ponto de criarem obrigações à sociedade, nos termos do artigo 5º, inciso II, da CF/88:
“Art. 5º, II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Isto se deve ao fato de que o legislador de trânsito preferiu, em determinadas situações, deixar a cargo do órgão técnico a regulamentação da matéria, prevendo, taxativamente, a necessidade de complementação do texto legal pelo CONTRAN, como, a exemplo de tantos outros, nos artigos a seguir transcritos:
“Art. 105. São equipamentos obrigatórios dos veículos, entre outros a serem estabelecidos pelo CONTRAN:…”
“Art. 111. É vedado, nas áreas envidraçadas do veículo:…III – aposição de inscrições, películas refletivas ou não, painéis decorativos ou pinturas, quando comprometer a segurança do veículo, na forma de regulamentação do CONTRAN.”
“Art. 115. O veículo será identificado externamente por meio de placas dianteira e traseira, sendo esta lacrada em sua estrutura, obedecidas as especificações e modelos estabelecidos pelo CONTRAN.”
“Art. 141. O processo de habilitação, as normas relativas à aprendizagem para conduzir veículos automotores e elétricos e à autorização para conduzir ciclomotores serão regulamentados pelo CONTRAN.”
2. ATIVIDADE EXECUTIVA DE TRÂNSITO: desenvolvida, na esfera de suas competências e de acordo com as atribuições previstas nos artigos 19 a 24 do CTB, pelos órgãos e entidades executivos de trânsito e rodoviários, bem como pelos órgãos fiscalizadores (Polícias Militares e Polícia Rodoviária Federal).
3. ATIVIDADE JULGADORA DE TRÂNSITO: desenvolvida, em primeira instância, pelas Juntas Administrativas de Recursos de Infrações, existentes junto a cada órgão ou entidade executivo de trânsito ou rodoviário, e, em segunda e última instância, pelos Conselhos de Trânsito, nos termos do artigo 289 do CTB.Ressalta-se que optamos pelo termo “julgadora”, em vez de “jurisdicional”, de vez que esta, por ser exclusiva do Poder Judiciário, prescinde dos elementos da aplicação contenciosa da lei, da coercibilidade e, em especial, da definitividade. Neste aspecto, é de se verificar que o artigo 290 do CTB estabelece que “A apreciação do recurso previsto no art. 288 encerra a instância ADMINISTRATIVA de julgamento de infrações e penalidades” (grifei), não havendo, obviamente, que se falar em coisa julgada, o que somente ocorre na decisão judicial de última instância.
Ainda que o CTB contivesse artigo contrário a tal premissa, reza o inciso XXXV do artigo 5º da Carta magna que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Assim como ocorre com a consagrada teoria “montesquiana”, quando analisamos o Estado como um todo, também no Sistema Nacional de Trânsito não há uma divisão estanque das atividades comparativamente tratadas, valendo-se, igualmente aqui, o princípio americano “Checks and balances” (sistema de freios e contrapesos), por meio do qual os poderes se interagem, na busca do necessário equilíbrio para atuação do Estado, o que se reflete na determinação dos objetivos básicos do Sistema de trânsito, conforme disposto no artigo 6º do CTB:
“Art. 6º. São objetivos básicos do Sistema Nacional de Trânsito:…III – estabelecer a sistemática de fluxos permanentes de informações entre os seus diversos órgãos e entidades, a fim de facilitar o processo decisório e a INTEGRAÇÃO do Sistema”. (grifei)
Finalizando-se esta análise do Sistema Nacional de Trânsito, sob o prisma da Teoria da separação dos poderes, resta-nos destacar justamente uma situação antagônica e paradoxal à comparação apresentada, de vez que desobedece às regras de indelegabilidade de funções e inacumulabilidade de cargos entre Poderes, pilares sobre os quais se assenta a cláusula pétrea da independência dos Poderes.
Dispõe o artigo 10 do Código de Trânsito Brasileiro que “O Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, com sede no Distrito Federal e presidido pelo dirigente do órgão máximo executivo de trânsito da União, tem a seguinte composição:…”
Ou seja, o Diretor do DENATRAN exerce, ao mesmo tempo e como funções típicas, a atividade executiva (como dirigente do órgão máximo executivo de trânsito da União), legislativa (como Presidente do CONTRAN) e julgadora (nos casos previstos no artigo 289, I, a, do CTB).
O assunto comporta, obviamente, discussão muito mais aprofundada, mas nosso propósito, por ora, é justamente estimular este contínuo trabalho de análise e interpretação da legislação de trânsito entre nós, profissionais e especialistas do setor.