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Patrimônio mínimo: algumas possibilidades positivadas e um novo horizonte

A teoria do instituto jurídico do patrimônio mínimo foi idealizada, com a observância do artigo 1175 do Código Civil de 1916, correspondente ao artigo 548 do Código Civil vigente de 2002. FACHIN destaca que o pano de fundo analisar o alcance desta norma, na qual declara-se a nulidade da doação do patrimônio, se o doador não assegurar a sua sobrevivência. Esta vedação de doação global dos bens já possuía guarida antes do Código Civil de 1916, desde as Ordenações e na Consolidação das Leis Civis elaborada por Teixeira de Freitas trazia a informação de que “é nula a doação entre vivos de todos os bens sem reserva de usufructo, ou do necessário para a subsistência do doador”.

Este cenário colocado pelo Código Civil de 1916 e conservado no Código Civil de 2002 demonstra claramente a preocupação com o indivíduo ampliando para a repersonalização deste direito, que segundo FACHIN está alicerçado na “gênese de um feixe de valores articulados em torno da pessoa e de sua respectiva proteção”, o mesmo buscado nesta tese que. Assim, estaria promovendo bem mais que uma simples limitação à transferência inter vivos, criando um terreno fértil para a propagação da proteção da pessoa humana em meio a um sem número de normas que promovem a proteção do patrimônio.

Neste mesmo sentido, a única possibilidade de promover a doação de todos os bens, “burlando” essa regra geral, é caracterizada pela doação com reserva de usufruto, fato que permite ao doador, conforme dispõe o artigo 1710, inciso I do Código Civil. A máxima, na interpretação de ORLANDO GOMES , aclara que o usufruto possui uma função econômica, qual seja a garantia ao individuo de meios de sobrevivência.

Assevera ainda CAMPOS , que a “vontade da lei” não é patrimonial, visto que traz em seu bojo a expressão “o suficiente para a subsistência”, configurando-se, assim, num nítido respeito à Dignidade Humana, protegendo o individuo contra ele mesmo.

As medidas tomadas, segundo FACHIN são diretas e indiretas, visto que no primeiro caso haverá a anulação do ato e no segundo ocorrerá a reserva facultativa dos bens para o próprio individuo.

Outra situação latente e que configura como possibilidade normatizada de configuração concreta da tese do Patrimônio Mínimo é a possibilidade de revogação de doação, em caso de recusa de prestação de alimentos, por parte do alimentante, que teria condições de prestá-lo. Esta é a hipótese do artigo 557, IV do CC, protege, de fato, a vida do doador, contra a possibilidade de doação feita sob a égide do ato jurídico perfeito.

Ao mesmo passo, existe a previsão legislativa do artigo 4º, II do CC, onde fica impossibilitado aos pródigos praticarem atos jurídicos, asseverando, novamente, latente preocupação com os seres humanos que dependem deste individuo, alem de proteger o próprio. Esta possibilidade é congruente com a situação do artigo 548, e conforme afirma FACHIN , citando CARVALHO SANTOS, os credores também podem utilizar-se desta prerrogativa legal para evitar situações que esvaziem o patrimônio do devedor e impossibilite que este quite as suas dívidas, ressalvado, é claro os devidos limites, pois o intuito da lei é resguardar o futuro existencial do doador.

Bastante interessante é a vedação de contrato que tenha por objeto a herança de pessoa viva, previsto no artigo 426 CC , além da inalienabilidade testamentária, onde a sua decretação no corpo do testamento impossibilita a disposição dos bens após a morte do testador.

Estas hipóteses denotam claramente o resgate da pessoa humana e da coletividade em detrimento do patrimonialismo.

1.1. Cláusula de Inalienabilidade.

Porque a cláusula de inalienabilidade tem importância para a tese do patrimônio mínimo? Este questionamento encontra fácil resposta quando percebemos que o cerne da questão é garantir o mínimo e se este e quando este mínimo está gravado com a inalienabilidade o bem ficará seguro até para o próprio proprietário, pois ela impossibilita que o bem seja vendido/alienado e por isso garante o usufruto do proprietário e/ou de sua família.

Uma discussão absolutamente pertinente, quando se trata de impor limites à disposição dos bens é a clausula de inalienabilidade. Neste âmbito, assevera FACHIN , que três teorias procuram explicar a natureza desta clausula.

A primeira leva em consideração a incapacidade do proprietário e por isso a cláusula assegura que ele fica impossiilitado de alienar o bem, portanto dispor da coisa, e isso por determinação do testado, assim o bem é suscetível de alienação no entanto a proibição recai sobre o seu proprietário. Esta teoria peca, já que se só a lei pode estabelecer uma incapacidade, por isso não é permitido que a vontade do particular a estabeleça.

A segunda tese, segundo STEFANO , no que tange a obrigação de não fazer, já que “parte da distinção entre indisponibilidade real e a simples proibição de alienar”, onde a referida cláusula gera uma obrigação de não alienar. Ocorre que esta inexecução deste dever levaria na indenização por perdas e danos, algo que não corresponde à vontade do testador, por isso esta teoria não tem porque prosperar.

A terceira teoria é a da indisponibilidade da coisa, onde haverá a gravação da cláusula de ônus real, já que a inalienabilidade seria inerente à coisa. Assim, o proprietário ficaria privado do jus abutendi – direito de abusar, idéia que foi criada pelos jurisconsultos medievais para exprimir a desmedida extensão que atribuíam ao direito de propriedade – e havendo qualquer afronta à cláusula seria considerada nula.¬

Esta possibilidade de não alienar, que depende da vontade do particular, protegerá o individuo que irá receber um bem gravado de inalienabilidade e não poderá vendê-lo, assim sua família sempre terá onde morar e viver dignamente. Esta seria a justificativa para a inalienabilidade testamentária .

SILVIO RODRIGUES defende que a cláusula de inalienabilidade só poderia ser estabelecida por vontade em testamento ou doação. No entanto, FACHIN afirma que poderá constar também em contratos onerosos, visto que a lei não o proíbe expressamente.

Vale ressaltar que existe a possibilidade de invalidação desta cláusula, quando ocorrer expropriação por necessidade ou utilidade pública, na execução de divida ativa de impostos em função do próprio imóvel, ou quando incorrer no artigo 30 da lei 6.830 de 1980 , que amplia o rol de possibilidades, pois se refere a qualquer tipo de divida ativa, mesmo que não relacionados ao bem, exceto os bens que a lei declara absolutamente impenhoráveis.

No que tange aos bens da legitima, ANTONIO FERREIRA INICÊNCIO, citado por FACHIN , explica que o testado pode estabelecer a cláusula de inalienabilidade, conforme aduz o artigo 174, §1º CC , fato que não impede, inclusive, este herdeiro de também instituir a referida cláusula ou mesmo retirá-la na disposição testamentária.

De maneira contrária, ORLANDO GOMES , afirma não ser possível a cláusula de inalienabilidade em relação à legítima, já que não se sabe quais são os bens que a comporiam, fato que só ocorrerá no momento da partilha, quando, se maiores, escolherão quais os bens a comporão e se menores o juiz o determinará, isso se o testador não os indicar.

Coadunamos com o entendimento de FACHIN , quando acredita na possibilidade da cláusula de inalienabilidade, no entanto afirma ser possível a alienação dos frutos, visto que a intenção dói legislador foi promover a sobrevivência digna da família, portanto seria paradoxal impedi-la.

Estas possibilidades supramencionadas denotam a presença normativa de possibilidades que comprovam a existência de um patrimônio mínimo que, em congruência com a Constituição Federal rumam em direção à proteção do indivíduo, promovendo a tão sonhada solução justa.

Para FACHIN , o Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo não possui uma definição fechada e incólume, no entanto gravita acerca de valores e propostas de integração à legislação, visto que a sua ausência legal não impossibilita a teoria, quando afirma que:

Não esmaece a tese o argumento centrado na ausência de regra legal especifica constituindo a tutela de um patrimônio mínimo. Esse aparente vazio pode ser legislativo, mas não será um óbice jurídico, posto que esta suposta lacuna não afasta a integração na sistema do direito. Tarefa difícil, mas necessária e imprescindível.

Na verdade, o aparente vazio de regra não cria problema, já que o próprio ordenamento prevê como preenchê-lo. É inevitável a existência a existência de uma esfera de integração a cargo do aplicador. A definição de vida digna, conceito no qual se baseia o estatuto do patrimônio mínimo, não deixa de ser subjetivo, apesar de alguns pensarem que merece de uma norma infraconstitucional. As bases do Direito Civil contemporâneo abrem-se espaço para dar um passo adiante, na visão desse autor, haja vista a garantia pessoal de um patrimônio mínimo, “do qual ninguém pode assenhorear forçadamente, sob hipótese legitima alguma, pode ser esse o novo horizonte.”

Por isso o conceito de vida digna deve ser apreciado no contexto em que ela é exercida, considerando-se o padrão social do devedor como bem relata FACHIN . Este referido conceito se correlata diretamente com a situação do credor, visto que o patrimônio mínimo não pode cessar frente a dividas.

Uma nova concepção jurídico-social baseada na despatrimonialização, segundo FARIAS deve estar atenta para:

a partir de novos valores que permeiam a ordem jurídica brasileira, a partir da legalidade constitucional, é imperioso despatrimonializar as relações jurídicas, sendo mister afirmar o ser sobrepujando o ter.

Assim, nas relações jurídicas, o mercado “transforma” lei através de uma mediação, onde o objeto é o ter (coisa), o sujeito é o proprietário do ter (coisa) que dispõe delas no ato da apropriação, pois isso é o que LENIO STRECK afirma que o Direito Civil no século passado era bem mais um direito de bens, (patrimônio) do que um direito das pessoas, tem por objeto representar a esfera de circulação e descrever a fenomenologia daquela relação de troca através da “ideologia do sujeito”. Para FARIAS , justifica-se:

uma vez que a pessoa humana é o fim almejado pela tutela jurídica e não o meio. Assim, as regras jurídicas criadas para as mais variadas relações intersubjetivas devem assegurar permanentemente a dignidade da pessoa humana. Para tanto, é necessário ultrapassar as fronteiras dos direitos da personalidade para buscar, também os direitos patrimoniais, a afirmação da proteção funcionalizada da pessoa humana. Enfim, relacionando as garantias de um mínimo patrimonial à dignidade da pessoa humana, percebe-se o objetivo almejado pela Constituição da Republica no sentido de garantir a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, funcionalizando o patrimônio como um verdadeiro instrumento de cidadania e justificando a separação de uma parcela essencial, básica, do patrimônio para atender às necessidades elementares da pessoa humana.É o chamado mínimo existencial, revelando um dos aspectos concretos, práticos da afirmação da dignidade da pessoa humana.

De sorte, o que propugna a tese do patrimônio mínimo é a promoção da tão asseverada constitucionalmente Justiça Social, tão aclamada e querida, mas tão subjetiva e utópica, é que precisa ser materializada. É na concretização desta aparente utopia social, que se busca a defesa do mínimo existencial para o individuo, promovendo uma vida digna e para isso utilizar-se-á de instrumentos jurídicos e extrajurídicos.

1.2. Sujeito X Propriedade

A tese do Patrimônio Mínimo defendida por FACHIN possui base sólida, já que parte da definição do que seja a propriedade e indivíduo, num precedente, até o conseqüente, que são os reflexos que esta tese causa no direito. Assim, temos como elemento basilar da configuração da tese, a relação entre o sujeito e a propriedade.Quando tratamos sobre patrimônio mínimo, é inevitável à relação que se estabelece com o patrimônio, numa seara dimensional mais especifica, que o simples conceito de patrimônio, já que existem varias correntes doutrinarias divergentes, ainda mais quando se estabelece uma relação de dialogo com a personalidade do individuo, como assevera FACHIN respaldado em BUSTAMANTE SALAZAR, que destaca, só haverá a “compreensão sobre o patrimônio, quando este conceito dialoga com o da personalidade”.

Justifica esta sua posição quando traz as correntes jusfilosóficas acerca da acepção de propriedade:

A jusnaturalista-racionalista, por considerar a propriedade como m direito natural e fundamental do homem, acaba por construir princípios jurídicos que levam em conta apenas os interesses de uma burguesia sedentária e proprietária. Já o idealismo, ao diluir a pessoa como um dos elementos da relação jurídica, acaba poor construir um Direito a partir da relação da pessoa com a coisa, sendo o patrimônio uma emanação ou prolongamento da pessoa. A premissa é outra, não sendo esse o melhor caminho.

Prossegue sua explanação , com uma proposta de repersonalização do Direito, fundado na correlação da pessoa com o patrimônio, fundado num sentido social de coletividade, da seguinte maneira:

A “repersoalização” do Direito assenta-se na premissa de que o patrimônio e pessoa não estão absolutamente entrelaçados, nem ocupa um primeiro plano a relação entre eles; ademais nem sempre o conceito de universalidade jurídica é aplicável à mesma massa patrimonial. Considerando o patrimônio, por vezes dotado de um determinado fim, espera-se a compreensão de que um patrimônio individual não é apenas fruto das oportunidades individuais, mas algo que é definido pelo coletivo dotado de um sentido social. Daí a superação proposta dessas concepções clássicas sobre pessoa e patrimônio.

Ocorre que o patrimônio, como mesmo assevera FACHIN , possuía sua justificativa e criação diretamente ligada à personalidade, compondo uma unidade indissociável – teoria clássica –, isso porque todos os seres humanos teriam um patrimônio uno e indivisível. Destarte, apenas a pessoa jurídica possuiria a sua desvinculação total do individuo.

Diverge desta posição ORLANDO GOMES , quando não pondera as influências externas e denota entender o individuo como possuidor de um poder jurídico. Com isso, a proposta seria a separação entre o patrimônio e o sujeito, e este não é o pensamento de FACHIN , que conceitua o patrimônio como um “conjunto de direitos, relações ou bens que sejam aferíveis em pecúnia, ou seja, tenham valor de troca”, e a sua ligação com a pessoa é latente, criando patrimônios de afetação, que se referem diretamente a assegurar o credito de terceiros.

Este patrimônio de afetação mencionado por FACHIN, advém do pensamento de MOTA PINTO, pois haveria um patrimônio geral, ligado diretamente à pessoa, além de patrimônios autônomos, especiais ou separados, e estes poderiam ter destinações diversas como responsabilidade por dividas, por isso estaria afetado a este fim. Assim, haveria a superação da universalidade vinculada diretamente à personalidade, e, desta forma, poderia um só indivíduo possuir mais de um patrimônio.

Essa assertiva provoca, na tese do autor uma verdadeira aclarada, já que, assim, poderá o individuo manter o seu mínimo patrimonial, chamado por MOTA PINTO de patrimônio geral, absolutamente ligado à personalidade, convolando-se num mínimo existencial protegido e incólume. Assim, seria garantido o direito ao crédito e os bens que respondem por esse crédito seriam aqueles destacados do mínimo, promovendo maior segurança para o credor, e dignidade para o devedor, ao passo que a ele será assegurado o mínimo.

Consoante ao que se asseverou, a propriedade perde sua centralidade de direito por excelência, passando a um instrumento de realização do ser humano, isto porque o enfoque passa a ser a dignidade da pessoa humana, e, se antes, era vigente a liberdade para negociar a coisa, hoje devem todos os elementos sistêmicos contribuírem para a proteção da pessoa.