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Este estudo tem o escopo de expor ao leitor algumas noções preliminares sobre as políticas públicas e privadas denominadas de “ações afirmativas”, um instituto ainda pouco conhecido no Brasil.

1. INTRODUÇÃO2. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO2.1. PRINCÍPIO DA IGUALDADE2.2. UM OLHAR SOBRE AS AÇÕES AFIRMATIVAS3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. INTRODUÇÃO

Pretende-se demonstrar a possibilidade de aplicação destas medidas como alternativa capaz de corrigir as injustiças sociais produzidas ao longo da história da humanidade. Para tanto, faz-se necessário analisar e compreender a essência do princípio da igualdade, imperativo máximo da justiça num Estado Democrático de Direito, a fim de constatar a harmonia constitucional deste com as medidas de desequiparação supra citadas. Ressalva-se que este trabalho não tem como proposta exaurir a polêmica que cerca as “ações afirmativas”, mas sim, apresentar elementos que permitam aos interessados fazer um primeiro contato com o assunto que, em nossos tempos, é digno de verdadeiros discursos de “Fidel”.

Percebe-se, nos últimos tempos, que a luta do homem pela sobrevivência tornou-se cada vez mais violenta e desesperada. Não bastassem as guerras e atos terroristas que expõem ao perigo a própria existência humana, outros males continuam a devastar a sociedade, de forma cada vez mais avassaladora. Dentre as moléstias mais funestas e perniciosas que afligem o corpo social pode-se destacar a fome, o desemprego, a pobreza, a marginalização, a exclusão social e, acima de tudo, a indiferença quanto a tudo isso que, sob a égide de um “apartheid” social disfarçado, parece mais mortífera e cruel do que a maioria dos conflitos bélicos que assolaram o século passado, colaborando, dessa forma, para um desnivelamento social ainda mais acentuado, óbice intransponível na incessante busca do homem pela igualdade.

Acredita-se que qualquer Estado que se denomine “democrático” não deve, nem pode, ficar inerte frente às desigualdades sociais com as quais a coletividade se depara. Assim, faz-se indispensável atitudes que propiciem a inserção social de determinados grupos minoritários, desfavorecidos e injustiçados ao longo da história, uma vez que compete à Constituição, documento máximo do Estado, garantir um mínimo invulnerável de dignidade a todo e qualquer ser humano.

É em face dessa conjuntura, e às vistas da problemática social que se apresenta, que saluta-se entender, mesmo que, a princípio, superficialmente, o que a doutrina denomina de “ação afirmativa” ou “discriminação positiva”, a priori, um instituto perante o qual alguns depositam a sua confiança em alcançar uma vida digna, ensejando paz e segurança, com igualdade de oportunidades para todos, que tem o intento de reparar as injustiças sociais produzidas ao longo da história da humanidade.

Destarte, às luzes de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, faz-se necessário levantar olhares sobre o princípio constitucional da igualdade, visto que sua compreensão é de fundamental importância para que se possa constatar a observância da discriminação positiva frente à constitucionalidade exigida pelo ordenamento jurídico e, conseqüentemente, sua posterior aplicação prática. 2. ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, estabelece o perfil político-constitucional do Brasil, expondo que: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito…” (CF, art. 1º). É deste dispositivo que derivam todos os demais princípios fundamentais que guiam nosso ordenamento jurídico. Destarte, faz-se oportuno definir o que é um Estado Democrático de Direito.

O Estado Democrático de Direito em nada se confunde com o mero Estado de Direito. Como ensina CAPEZ, o Estado de Direito configurou um grande avanço em sua época, instituiu a igualdade formal entre os homens e, dessa forma, todos se submetiam ao império das leis, ademais, com o Estado de Direito foi que se implantaram as primeiras garantias individuais frente às arbitrariedades do absolutismo monárquico.

Como bem lembra o autor, nesse período, considerava-se direito apenas o que estava formalmente disposto no texto legal, desprezando-se qualquer tipo de valoração axiológica, assim como era veementemente repudiado qualquer tipo de interpretação subjetiva da norma. Destarte, foi sob esse prisma que o positivismo alcançou seu auge, uma vez que o escopo principal era impor um limite ao poder do soberano, preservando, assim, uma esfera de liberdade individual na qual o Estado de modo algum poderia transpor.

Ressalta ainda CAPEZ que, com o passar do tempo, o Estado de Direito mostrou-se insuficiente, uma vez que a igualdade meramente formal, onde “todos são iguais perante a lei”, por si só, revelou-se incapaz de realizar justiça social, e, ainda, não havendo controle material sobre as normas, simplesmente substitui-se o arbítrio do rei pelo do legislador. Como muito bem sintetiza o autor: “No Estado Formal de Direito, todos são iguais porque a lei é igual para todos e nada mais”. Por essa razão, a Constituição brasileira foi além, definindo o Brasil como um Estado Democrático de Direito (CAPEZ, 2005, p.4 a p.6).

O Estado Democrático de Direito é aquele que se rege por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, devendo também se submeter a essas normas os governantes, tendo limitado seu poder de atuação através dos direitos e garantias fundamentais (MORAES, 2005, p.17).

Como expressa nossa Constituição, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito é o respeito à dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), este dispositivo, per si, torna inadmissível qualquer tentativa por parte do Estado de abster-se frente à problemática social que a ele se apresenta, principalmente, no que diz respeito à sua função de reparar as injustiças sociais produzidas ao longo da história.

Dessa forma, percebe-se que enquanto no Estado de Direito requer-se do Estado uma atividade negativa, uma vez que ele não deve intervir nas distorções sociais de ordem material, ao contrário, no Estado Democrático de Direito, requer-se uma atividade positiva, prestacional, no sentido de buscar a superação das carências individuais e sociais. Enquanto aquele enfatiza o instituto da “liberdade”, uma vez que manifesta um mecanismo de defesa do indivíduo contra o Estado, conformando-se com a mera igualdade formal, este último dá especial atenção ao instituto da igualdade, em sua dupla acepção, formal e material, pois sua essência está na preocupação com as necessidades humanas, acentuando-se, assim, o princípio da igualdade entre os indivíduos.

Conforme aduz MORAES, modernamente, a proteção constitucional não se limita aos direitos de um indivíduo específico ou mesmo de uma coletividade determinada, vai além, seu manto acoberta também os direitos da própria espécie humana, a saber, o direito à paz, ao meio ambiente equilibrado, ao progresso, à autodeterminação dos povos, a uma qualidade de vida saudável, entre outros interesses difusos e coletivos. Como assinala o autor, tratam-se dos chamados direitos de “solidariedade” ou “fraternidade” (MORAES, 2005, p. 27). Assim, como aponta FERREIRA FILHO, apud MORAES, a Constituição Federal de 1988 contempla em si os ideais iluministas da Revolução Francesa que, em 1789, alçou a bandeira da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” (MORAES, 2005, p.27).

Entretanto, convém salientar que a igualdade aí apontada não era suficientemente ampla para atender a sociedade como um todo, até mesmo porque a revolucionária burguesia tinha consciência da sua condição de classe privilegiada. Um rápido olhar ao presente e percebe-se que esse avanço baseado numa igualdade política e jurídica não bastou à coletividade, principalmente, no sentido de atenuar o desnivelamento social existente entre as classes. Como bem lembra FERREIRA FILHO, “não se pode modernamente caracterizar a democracia sem que se abra lugar para a igualdade” (FERREIRA FILHO, 1999, p.274).

2.1. PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A igualdade talvez seja um dos objetivos mais antigos do homem. Conforme lembra MELO, em plena Antiguidade Clássica, na Grécia, Aristóteles afirmava que “se a liberdade e a igualdade são essenciais à democracia, só podem existir em sua plenitude se todos os cidadãos gozarem da mais perfeita igualdade política” (MELO, 2006, p.2). Assim como os demais direitos fundamentais, o princípio da igualdade não é absoluto, devendo ser interpretado de acordo com o seu fim teleológico, uma vez que a interpretação literalista e formal não são suficientes para revelar o exato sentido do texto legal.

Dessa forma, conforme aduz MOREIRA, apud MORAES, em relação à hermenêutica constitucional, toda interpretação exige, ipses litteris, “a necessidade de delimitação do âmbito normativo de cada norma constitucional, vislumbrando sua razão de existência, finalidade e extensão” (MORAES, 2005, p.11).

O princípio da igualdade, em sua dupla acepção, formal e material, é um dos pilares fundamentais sobre os quais sustenta-se a Constituição Federal de 1988. A Carta Magna, no seu documento de intenções do diploma legal, proclama:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (PREÂMBULO, Constituição Federal de 1988).

Ademais, o Documento Fundamental insere-o, ainda, no rol dos direitos fundamentais, expondo que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…” (CF, art. 5º). Trata-se, neste dispositivo, do princípio da igualdade formal ou princípio da isonomia. Os vocábulos “iso” e “nomos”, ambos, provém do grego, significando, respectivamente, “igual” e “norma”, ou seja, a expressão “isonomia” denota a “igualdade perante a lei”.

Como se percebe, o princípio da igualdade formal ou da isonomia não concretiza em si a igualdade social ou material, tampouco nega a existência de desnivelamentos sociais atinentes a situações econômicas, culturais, intelectuais e, especialmente, históricas.

No entender de SILVA, “esse tipo de igualdade gerou as desigualdades econômicas, porque fundada numa visão individualista do homem, membro de uma sociedade liberal relativamente homogênea” (SILVA, 2004, p.213).

Nessa mesma orientação, leciona MIRANDA, “tal igualdade compreendia a igualdade política e jurídica, mas não a econômica; nem a igualdade de fato” (MIRANDA, 1979, p.463).

Dessa forma, entende-se que a mera igualdade formal, erigida às luzes de um Estado Liberal, não faz mais do que permitir que o abismo entre as classes sociais vá se aprofundando cada vez mais, mostra-se inepta no sentido de proporcionar aos cidadãos uma igualdade efetiva, real, uma vez que não oferece amparo aos grupos historicamente desprivilegiados. Como bem lembra MIRANDA, “as leis regulam algumas relações entre os homens ou entre os homens e o Estado…, porém, não regulam todas as relações” (MIRANDA, 1979, p.458).

Em contrapartida, no que se refere à igualdade material, como bem ensina BASTOS, ela “postula o tratamento uniforme de todos os homens. Não se trata, como se vê, de um tratamento igual perante o direito, mas de uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida” (BASTOS, 2000, p.79).

Como se nota, a igualdade material ou substancial não se traduz num conflito com a igualdade formal, mas sim, numa complementação desta, no sentido de que as leis devem propiciar a todos a igualdade política, jurídica e social. É célebre na área do direito a expressão aristotélica que preconiza que “a máxima igualdade consiste em tratar igualmente os desiguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”.

Compartilha-se do entendimento de MORAES, que explicita que é sob esse prisma que as Constituições devem aceitar discriminações sempre que estas se reportem a atenuar os desníveis existentes entre os diversos agrupamentos sociais. Expõe o autor, sobre o princípio da igualdade, que:

O que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente se protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito (MORAES, 2005, p.31).

A Carta Magna, em seu art. 3º, estende seu manto tanto à igualdade material quanto à igualdade formal, ao estabelecer que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (CF, art. 3º, III)”; e, “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, IV)”.

Assim, compreendido a essência do princípio constitucional da igualdade, em sua dupla acepção, delimitado o seu alcance e constatada a sua finalidade, faz-se oportuno aludir ao que a doutrina denomina de “ação afirmativa”, com o desígnio de apontar, brevemente, sua definição e principais características, uma vez que o fundamento teórico constitucional destas medidas de desequiparação já fora exposto.

2.2. UM OLHAR SOBRE AS AÇÕES AFIRMATIVAS

O conceito jurídico denominado “ação afirmativa” teve sua origem nos EUA, por volta de 1950 e 1960, com o movimento dos afrodescendentes pelo fim da segregação racial nesse país. Foi Kennedy, em 1961, quem utilizou pela primeira vez a expressão “ação afirmativa”, em inglês “affirmative action”, ao expedir a Executive Order, n.º 10.925, que impedia os contratantes do governo federal de “discriminar funcionário ou candidato a emprego devido à raça, credo, cor ou nacionalidade”. As ações afirmativas ou discriminações positivas não tardaram a se disseminar pelo mundo (MELO, 2006, p.7).

Assinala ALMEIDA (2004, p.1) que, considera-se “discriminação positiva” aquela que enseja manter ou proporcionar a existência de igualdade real e efetiva entre as pessoas; e, “discriminação negativa”, as ações que agem em desrespeito ao princípio da igualdade.

Ao se buscar definições doutrinárias para estas medidas em questão, faz-se relevante o entendimento de GOMES, citado por SILVA, que conceitua as ações afirmativas da seguinte forma: Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade (SILVA, 2002, p.2). Destarte, nota-se que as ações afirmativas acastelam-se constitucionalmente no campo da igualdade material, como medidas que visam à inserção social de minorias desfavorecidas, eliminando desigualdades existentes entre grupos ou parcelas da sociedade por meio de programas públicos ou privados.

Em relação à sua esfera de ação, percebe-se que as ações afirmativas não se limitam unicamente ao sistema de cotas, este é apenas uma das espécies daquela, talvez, a mais polêmica, abrange, ainda, a desigualdade existente entre homens e mulheres, as questões referentes à viabilização de emprego a portadores de deficiências físicas, concessão de “bolsas” de estudo para adolescentes pobres (não necessariamente aos negros), políticas de incentivos fiscais às empresas que favoreçam a contratação multiracial, entre outras áreas que apresentem flagrante discriminação, destituídas, por sua vez, de fundamento objetivo, racionalmente justificável. Contudo, a implementação das ações afirmativas acerca-se de inúmeras indagações. Pairam dúvidas no sentido de saber se estas caracterizam a garantia de um direito ou o estabelecimento de um privilégio; quais seriam os critérios legitimantes que não incorreriam numa agressão ao princípio da igualdade; até que ponto uma política restrita a um grupo social pode trazer mais benefícios que uma política social universalista, mais ampla; não obstante, a própria interpretação normativa ainda é motivo de polêmica entre os constitucionalistas.

Referindo-se as controvérsias das medidas de desequiparação, CAPOTORTI, apud ALVES, adverte que “a adoção de medidas especiais de proteção a um grupo poderia conter as sementes de uma discriminação às avessas” (ALVES, 1997, p.234).

FERREIRA FILHO observa que “é inegável a tendência ao desenvolvimento de um direito de classe, que, embora para proteger o social e economicamente fraco, lhe concede privilégios em detrimento do princípio da igualdade” (FERREIRA FILHO, 1999, p.276).

Em sentido contrário, aponta MIRANDA que “erram aqueles que pensam que as desigualdades se eliminam por decreto: às vezes, a igualdade tem de ser recriada. Nesse recriar a igualdade, há toda uma política de plano, de meios e de ação” (MIRANDA, 1979, p.489). 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em face do que fora exposto, percebeu-se que as ações afirmativas como políticas de inserção social não só podem como devem ser implantadas, uma vez que a desequiparação com o fito de atenuar as diferenças sociais encontra amparo legal em diversos dispositivos do Documento Fundamental. Ademais, em um Estado Democrático de Direito, as ações afirmativas constituem-se verdadeiras obrigações que se impõe tanto às autoridades públicas quanto às privadas.

No entanto, por tratar-se de um tema polêmico, notou-se que os obstáculos que se lançam frente às ações afirmativas vão além da análise teórica da constitucionalidade, uma vez que a mera disposição normativa não é capaz, por si só, de levar a cabo uma política de tamanha envergadura, assim, o “animus” da sociedade é imprescindível para legitimar atitudes mais eficientes por parte do Estado.

Destarte, acredita-se que é indispensável uma verdadeira “ação afirmativa” no sentido de conscientizar a própria população da necessidade de inserir no corpo social as minorias desprivilegiadas historicamente. Tendo consciência que as ações afirmativas não são a única opção que possibilita a atenuação do abismo entre as classes, talvez nem mesmo seja a mais viável, o fato é que atitudes devem ser tomadas, a fim de proporcionar a todas as pessoas uma igualdade política, jurídica, social, enfim, uma igualdade de fato, real e efetiva, que ministre condições para que se possa viver com dignidade.