Os Conselhos Regionais de Medicina possuem competência para impor as penalidades aos médicos militares que infringirem as regras da conduta ética no exercício da profissão. Este entendimento unânime, firmado pelos ministro Franciulli Netto e demais integrantes da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça durante o exame de um recurso especial, garantiu a retomada do processo judicial em torno da cassação do registro profissional de Ricardo Agnese Fayad, acusado de prática de tortura na condição de médico militar do Serviço Ativo do Exército, entre os anos de 1970 e 1972. Até um novo pronunciamento da Justiça Federal sobre o caso, o registro profissional de Ricardo Fayad estará cassado.
Em meados de 1988, o Conselho Regional de Medicina (CRM) instaurou um processo ético-profissional para apurar a participação do médico militar Ricardo Fayad em sessões de tortura no início da década de 70. Segundo um dos depoimentos de presos políticos, colhidos pela entidade de classe, o acusado “fazia parte do esquema de tortura, sendo que sua função no processo de tortura era reanimar os pacientes para que pudessem ser novamente torturados e determinar se estavam ou não representando grandes sofrimentos”.
O processo ético-profissional resultou na cassação do registro profissional de Ricardo Fayad pelo CRM, o que foi confirmado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). A punição foi revertida na primeira instância federal após o exame de um mandado de segurança onde foi declarada a incompetência dos órgãos de classe para impor a sanção disciplinar. Este posicionamento foi mantido pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (com sede em Brasília), onde também foi entendido que a condição militar do médico restringiria ao Exército a iniciativa de aplicar qualquer penalidade ao profissional.
Este argumento de natureza processual, contudo, foi afastado pelo Superior Tribunal de Justiça, onde o CFM ingressou com um recurso especial. O exame da causa pela Segunda Turma do STJ ficou limitado a este aspecto como fez questão de observar o relator do processo, ministro Franciulli Netto. “Não está em exame averiguar se o recorrido praticou ou não ato de tortura, pois tal fato implicaria em penetrar no exame probatório dos elementos trazidos para os autos, o que não se admite nesta via do recurso especial”.
A concessão do recurso especial pelo órgão do STJ foi dada parcialmente, reconhecendo a competência do CRM para a fiscalização e punição dos profissionais da medicina ligados às Forças Armadas. “Quando o médico também é servidor público militar, assim, apenas estará vinculado hierarquicamente aos superiores, em relação à disciplina militar e matéria administrativa, visto que o exercício da medicina não decorre de sua condição de militar. Antes de ser servidor público militar, o médico é um profissional sujeito às regras determinadas por sua entidade de classe. Não pode ele aceitar nenhuma restrição à sua independência, exceto a vontade de seus pacientes ou de seus responsáveis legais” ressaltou Franciulli Netto.
O relator do recurso também fez questão de delimitar o alcance da intervenção do CRM em casos que envolvam médicos militares. “O órgão responsável pela análise das questões éticas do exercício da medicina é o respectivo Conselho Profissional que, se for o caso, aplicará sanção civil que dirá respeito somente à medicina e não à vida do agente na corporação como servidor público militar. O médico militar que tem seu registro cassado deixa de ser médico, mas não perde sua patente, nem sofre qualquer sanção”.
Diante de um recurso onde se reconheceu a competência ampla da entidade de classe para analisar a conduta ética de um profissional, o ministro Franciulli Netto fez questão de transcrever, em seu voto, o juramento de Hipócrates, um texto clássico originado na Grécia Antiga (séc. V a.C.) e de significado histórico em relação à responsabilidade de todo médico. “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém” – citou o ministro Franciulli.
Além de reconhecer a competência do CRM, a decisão unânime tomada pela Segunda Turma do STJ determinou a remessa do processo à Justiça Federal. Lá serão examinadas as demais alegações feitas por Ricardo Fayad quando propôs o mandado de segurança a fim de cancelar a decisão que cassara seu registro profissional. Desta forma, será analisado se a decisão do CRM foi ilegal por outros três motivos : perda do prazo de cinco anos para a punição ética; violação da Lei de Anistia; e afronta ao princípio constitucional do devido processo legal.
Esses fundamentos não foram apreciados originalmente pela primeira instância, que apenas declarou a incompetência do Conselho Regional de Medicina para cassar o registro do médico militar, tese afastada pelo julgamento do STJ. Até que a Justiça Federal se posicione sobre esses temas, Ricardo Fayad está com seu registro profissional cassado.
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