O cardeal Karl Lehmann, diretor da conferência dos Bispos Católicos Romanos da Alemanha, acusou a Holanda, na quarta-feira (11), de adotar a “cultura da morte”, tornando-se o primeiro país a legalizar homicídio misericordioso e o suicídio assistido.
A declaração veemente do cardeal, que afirmava ser “inconcebível” que médicos holandeses “enviassem seus pacientes doentes para a morte, ao invés de ajudá-los atravessar uma situação difícil”, foi parte de uma feroz reação alemã à lei de eutanásia, aprovada na terça-feira (10) pelo senado holandês.
Muitos editoriais de primeira página dos jornais, além de declarações do clero e críticas de médicos concordaram que os holandeses haviam “aberto uma represa” com perigosas conseqüências, nas palavras de George Paul Hefty, no principal jornal conservador da Alemanha, o “Frankfurter Allgemeine Zeitung”. A extensão da reação, muito maior do que em qualquer outro país europeu, pareceu refletir o desconforto persistente sobre a eutanásia em um país que a experimentou sob o domínio de Hitler.
Não se nota que a lei holandesa, que se baseia no direito individual do paciente e seu pedido inicial para morrer, não tem nada em comum com os métodos que marcaram a psique alemã. Estes eram baseados na seleção arbitrária dos médicos de quem não merecia viver no Terceiro Reich devido assuas limitações. Entre 1939 e 1941, os nazistas perpetraram eliminação clandestina, muitas vezes pelo uso de gás. Aproximadamente 100.000 homens,mulheres e crianças com deficiências físicas ou mentais foram eliminados. O objetivo era melhorar a raça ariana, erradicando aqueles que os médicos decidiam ter deficiências congênitas.
Referindo-se a essas práticas em sua crítica à lei holandesa, o jornal “Die Welt” observou, na quarta-feira, que nos tempos de Hitler: “Os capangas do governo, que visitavam as instituições para deficientes para selecionarem quem não merecia viver, tinham muito cuidado em não alardearem suas intenções. Em algum nível, antigos escrúpulos ligados ao mandamento contramatar estavam presentes”.
E continuou, “O escândalo em Haia é que o parlamento impôs uma norma federal no lugar da liberdade de sustentar esses escrúpulos”.
A nova lei holandesa formaliza o que há muitos anos é prática comum na Holanda. Ela determina que pacientes terminais, vivendo com “sofrimento longo e insuportável”, podem pedir a seus médicos para morrerem. Se o médico determinar que a eutanásia é a melhor solução disponível e um segundo médico -independente, também treinado como consultor- concordar, então o homicídio misericordioso pode ser executado.
Estima-se que aproximadamente 3.500 pessoas por ano morreram assim na Holanda na última década. Em aproximadamente 85% dos casos, as mortes acontecem em casa, geralmente com a administração de doses letais de barbitúricos pelos clínicos gerais da família.
Segundo a lei, as crianças devem ter no mínimo 12 anos para pedirem para morrer dessa forma e precisam da aprovação dos pais. Para os adolescentes com idades de 16 e 17 anos os pais devem ser informados, mas não mais têm o direito de decidirem. Quando a idade de 18 anos é alcançada, considera-se que o paciente atingiu o direito de um adulto de morrer.
“Temos finalmente uma boa lei”, disse Rob Jonquiere, clínico holandês aposentado que chefia a Associação Holandesa de Eutanásia Voluntária. “Os alemães têm um trauma de guerra e comparar nossa lei de eutanásia com o que aconteceu no passado alemão é inaceitável, porque esses métodos não têm a menor relação entre si”.
Muitos médicos alemães, no entanto, pareceram observar na quarta-feira tendências sinistras por trás da lei holandesa. Dr. Stephan Sahm, por exemplo, que trata de pacientes de câncer em Wiesbaden, argumentou no Frankfurter Allgemeine que uma pesquisa sugeria que muitas mortes a cada ano na Holanda envolviam “atos de terminação de vida sem pedido explícito”.
Dr. Sahm escreveu: “O processo ganhou dinâmica e lógica próprias, que estão longe de serem misericordiosas. Quando continuar a viver é somente uma de duas opções legais, qualquer um que sobrecarregue os outros com a continuidade de sua existência se torna responsável”.
Joerg-Dietrich Hoppe, presidente de uma importante associação de médicos alemães, disse: “Todo mundo tem o direito de uma morte digna, mas ninguém tem o direito de ser morto. Os perigos do abuso são grandes demais”.
As sugestões de abuso ou de uma “pista escorregadia” para um uso cada vez maior da eutanásia causaram preocupação na Holanda recentemente. O caso do ano passado, no qual um médico ajudou o antigo senador socialista Edward Brongersma a morrer porque achava que estava vivendo uma “existência vazia esem sentido”, recebeu muita atenção. O médico foi absolvido, apesar de Brongersma não ser portador de nenhuma séria doença física ou psicológica.
Peter Huurman, principal oponente holandês à eutanásia disse que “Se uma pessoa está morrendo neste país, muitas vezes ela se sente pressionada a considerar a morte assistida, pela postura dos médicos e das enfermeiras. Esta é uma das razões porque me oponho a essa lei. A outra é religiosa: A vida é sagrada”.
Mas Jonquiere, médico que ajudou dois pacientes a morrerem quando praticava medicina antes de entrar para o movimento de eutanásia voluntária, disse que a grande maioria do povo holandês era da opinião que “Deveria ter o controle sobre sua vida, ao invés de colocá-la nas mãos de Deus”.
As pesquisas sugerem que mais de 80% dos cidadãos holandeses são a favor da lei.
Jonquiere argumentou também que a excelente qualidade do sistema de saúde holandês -em que todos têm seguro de saúde- assegurava que qualquer decisão de morrer fosse tomada apenas depois do melhor tratamento possível. “Nos EUA, onde tantas pessoas não têm seguro, essa garantia estaria ausente eportanto não seria possível defender uma lei desse tipo”, disse.
Mas em nenhuma parte a reação à lei foi tão virulenta quanto na Alemanha, onde as chamadas “bio-políticas” estão sob intensa revisão. O chanceler Gerhard Schroeder disse recentemente que, “Concordamos sobre o que não queremos: o ser humano clonado, otimizado, geneticamente selecionado”. Mas deixou cuidadosamente a possibilidade aberta para pesquisa em clonagem e diagnóstico embriônico, enquanto rejeitou a eutanásia.
“Essa é uma catástrofe em termos morais e sociais”, exclamou Eugene Brysch, diretor de administração da principal fundação hospitalar alemã. “Algumas pessoas na Holanda esqueceram a história da Alemanha. Esses programas podem ser mal-utilizados”. Herta Daeubler-Gmelin, ministra da justiça, disse que a Alemanha evitaria a eutanásia e se concentraria em assegurar uma “mortedigna e sem sofrimento” para os pacientes terminais.
Como em muitas questões na Alemanha, parece haver certa distância entre as opiniões oficiais, sempre conscientes do passado, e a opinião pública. Uma pesquisa publicada na quarta-feira mostrou que 64% dos alemães ocidentais e 80% dos alemães orientais achavam que um paciente criticamente doente deveria ter o direito de pedir a um médico para morrer.