No dia 26 de novembro do ano passado, Vera Maria depôs encapuzada na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Maranhão, que investiga casos de abuso sexual infantojuvenil e práticas de pedofilia no estado. Ela tenta obter na Justiça o direito a uma pensão para o filho que teve há 12 anos, quando ainda era adolescente, mas que não foi registrado pelo pai, hoje prefeito de uma cidade do interior do estado.
Vera diz que já procurou a Justiça na comarca de sua região e na capital, São Luís, mas não conseguiu sequer que uma intimação fosse entregue ao político. “Na época, ele estava sem mandato e o oficial de Justiça alegou não saber o endereço”, conta. Ela espera, agora, que a CPI pressione o político a fazer o exame de DNA.
A impunidade de autoridades e pessoas bem posicionadas socialmente foi um dos principais motivos para a instalação, em outubro do ano passado, da CPI – a segunda no estado que investiga casos de abuso sexual infantojuvenil e de pedofilia. A primeira comissão a apurar esse tipo de crime foi concluída em 23 de abril de 2004.
“Nós temos uma absolvição grande no estado”, afirma a presidente da CPI, Eliziane Gama (PPS-MA). Segundo a deputada, a impunidade protege prefeitos, advogados, funcionários públicos professores e empresários.
Contra isso, a maranhense Francisca do Carmo luta para que o caso de sua filha adolescente não caia em esquecimento. Há cerca de dois anos, a menina foi levada depois da aula, com duas colegas, para um motel em São Luís por um advogado conhecido na cidade. Para a surpresa da mãe, o processo foi arquivado pela Justiça “por falta de prova”. Ela relatou à CPI do estado, no entanto, que a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente não chegou sequer a tomar o depoimento de todos envolvidos.
Para o promotor de Justiça da Infância e Juventude de São Luís, Márcio Thadeu Silva Marques, o país avançou muito na legislação que visa a coibir e punir o abuso sexual. “Hoje qualquer ato sexual com menores de 14 anos é crime, com pena de oito a 15 anos [de prisão].”
O promotor acredita, porém, que ainda exista uma “cultura jurídica que precisa ser modificada”. Ele citou decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) favorável a dois réus de Campo Grande (MS) que fizeram programas com adolescentes e foram absolvidos porque, segundo a decisão, elas eram “prostitutas reconhecidas”.
O promotor também avalia que a impunidade também ocorre por causa do foro privilegiado ao qual as autoridades têm direito em tribunais. A mesma opinião tem o presidente da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), Mozart Valadares Pires.
“O que se verifica é que o foro privilegiado se transforma em um mecanismo de impunidade. Os tribunais superiores não têm a tradição da instrução processual, do colhimento de provas”, assinala defendendo o fim da prerrogativa.
Para o representante da Comissão da Criança e do Adolescente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ariel de Castro Alves, “a imagem da impunidade é verdadeira e notória”.
Segundo ele, há “pouquíssimas” delegacias da criança e do adolescente e delegacias especializadas com policiais preparados para fazer investigação sobre abuso sexual.
Além da impunidade, outro fator que dificulta a responsabilização em casos de violência sexual contra crianças é a falta de estrutura especializada na polícia e também no Judiciário para a produção de provas.
“Esse sentimento [de impunidade] tem um pouco de informação equivocada para quem não conhece o procedimento de apuração”, pondera a promotora de Justiça em Santa Catarina Helen Sanches.
“Crimes de violência sexual são crimes que têm uma dificuldade de prova muito grande, esse crime não é praticado na presença de testemunhas, normalmente não deixa vestígios”, completa a promotora, que também é primeira-secretária da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP).
O juiz da 5ª Vara Criminal de Brasília Márcio Evangelista Ferreira Silva também acredita que a falta de provas leva à absolvição. Segundo ele, os tribunais dão muito valor à palavra da vítima, “mas tem que vir acompanhada de provas”, avalia o magistrado.
“Quando a gente fala em combate à impunidade temos que pensar a nossa polícia investigativa, no sentido de que sejam buscados outros elementos de prova [como os exames de DNA], para que as pessoas que têm conhecimento dos fatos e a própria vítima tenham segurança para denunciar”, reforça a promotora Helen Sanches.