Certamente, a razão para a decisão não deve ter sido (embora possa ter contribuído) a superlotação carcerária, mas que na prática ela deve minorar o problema, não há dúvida. O Supremo Tribunal Federal decidiu que réus só poderão ser presos após o trânsito em julgado da condenação, ou após esgotados todos os recursos possíveis. A alteração na jurisprudência acabou acontecendo em função do julgamento de um habeas corpus (HC 84078) impetrado em favor de um preso condenado a sete anos e seis meses de prisão pelo Tribunal do Júri de Passos (MG). Ele foi julgado por tentativa de homicídio duplamente qualificado. Poderá agora recorrer, em liberdade, aos tribunais superiores.Como o recurso especial ainda não havia sido julgado e o réu corria o risco de ser preso, ele impetrou habeas corpus pedindo a suspensão da execução da pena e que não fosse aplicada a norma (artigo 637 do Código de Processo Penal), segundo a qual o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo.
O habeas corpus foi concedido por sete votos a quatro e a questão provocou debates entre os ministros da Corte. Joaquim Barbosa, por exemplo, questionou a eficácia do processo penal brasileiro, lembrando que é relator de um processo em São Paulo onde “só de um dos réus foram julgados 62 recursos no STF”. O presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, chegou a classificar a Justiça criminal brasileira de “um mundo de horrores” ao lembrar que o País tem nada menos do que 440 mil presos.
As correntes contrárias à iniciativa, porém, alegam que ela abre precedentes para que milhares de presos voltem à sociedade, garantindo a liberdade a inúmeros condenados que por muitos anos usaram recursos protelatórios (apenas uma pequena parte dos recursos resulta na reversão da condenação). Outros argumentam que o novo entendimento provocará mais impunidade devido à morosidade da Justiça e as “brechas processuais” que permitem a utilização de uma grande variedade de recursos.
Reclusão domiciliar
Quando estabelecido regime aberto para cumprimento da pena, e há falta de vaga em albergue, o preso pode cumpri-la em domicílio. Com esse entendimento, o corregedor-geral da Justiça Federal, ministro Hamilton Carvalhido, no exercício da presidência do STJ, deferiu o pedido de liminar em habeas corpus favorável a um preso condenado por roubo, detido na Penitenciária Industrial de Caxias do Sul (RS).
De acordo com a defesa, o homem, não reincidente, cumpria pena em regime aberto, mas estava detido na penitenciária por falta de albergue. A petição para o cumprimento da pena em prisão domiciliar foi indeferida pelo Juízo da Vara de Execuções Criminais de Caxias do Sul. O pedido foi encaminhado ao STJ e deferido. (HC 124659)
A Corte parecia uma sala de aula. Para quem assistisse a sessão, ficava a impressão da preva-lência de um discurso acadêmico e dogmático, presumivelmente infalível, vitorioso sobre vontades e concepções completamente diferentes daquelas que sairiam vencedoras.
Há um componente chamado “realidade”, e por causa dele os ministros do Supremo Tribunal Federal se dividiram radicalmente na hora de decidir. A balança da justiça agitou-se com as discussões sobre o apaixonante tema. Foram sete votos contra quatro e está decidido: todo condenado, mesmo em segunda instância, adquire o direito de recorrer em liberdade (ver página 17), firmando-se assim um princípio constitucional, considerado apenas um mantra em amplos setores jurídicos, onde a livre interpretação não cede espaço para denominador comum. Nem na mais alta Corte de Justiça do País houve consenso. Contra a interpretação vencedora, manifestaram-se os ministros Ellen Gracie (ex-presidente da Corte), Joaquim Barbosa, Menezes Direito e Cármen Lúcia. Os quatro invocaram até a Súmula 267 do próprio STF: “A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, não obsta a expedição de mandado de prisão.” Inútil, porque os outros ministros — Eros Grau (relator), Ayres Britto, Ricardo Lewandovsky, Marco Aurélio, Cezar Peluso e Gilmar Mendes — preferiram entender que “não pode ser reduzida em sua eficácia a garantia do artigo 5º da Constituição”. Lewandovsky afirmou que os acusados não podem correr riscos de “convivência com facções criminosas e doenças infecto-contagiosas antes que se esgotem todas as chances de recurso”. Gilmar Mendes, presidente do STF, comentou que apesar dos pontos de vista divergentes, nem a morosidade da Justiça justifica a manutenção na prisão de acusados não condenados definitivamente. “Não é motivo para deixar de reconhecer o direito do preso recorrer em liberdade”, argumentou.
A decisão, de início beneficiando o fazendeiro Omar Coelho Vitor, de Minas Gerais, condenado a 7 anos e meio de prisão, em segunda instância, por tentativa de homicídio duplamente qualificada, foi ratificada uma semana depois no julgamento conjunto de cinco pedidos de habeas corpus de réus condenados em primeira instância. O STF também decidiu que poderá adotar critério semelhante em novos casos.