A realidade é que ainda no final do século passado começou-se a desenvolver a idéia de que a abrangência conceitual do patrimônio comum da humanidade, antes limitado aos mares pelo interesse na navegação, estendera-se aos recursos naturais inclusos em territórios apropriados pelos Estados. Isto, diante da constatação de que a degradação ambiental estava comprometendo a segurança no planeta e atingindo a todos com a poluição do ar e das águas, o dano à camada de ozônio e a extinção de espécies. A água, um dos fatores ecológicos essenciais ao surgimento e à manutenção da vida nas suas mais diversas formas [Assim dispõe a Agenda 21, Capítulo 18 que trata dos recursos hídricos], já foi motivo de muitas guerras entre povos e disputa entre particulares. Abundante em alguns lugares da Terra, mas escassa em outros, passou a ser considerada como um dos direitos humanos fundamentais, impondo o seu uso racional e o cuidado de preservação para que possa estar ao alcance de todos.
Os recursos florestais e hídricos da Amazônia, com 5.800.000 km2, da Bacia do Prata com 3.200.000 km2 e da Patagônia com 1.000.000 Km2, representando a terceira parte da superfície continental Argentina, passaram a ser alvo da atenção do mundo e considerados santuários, coração do planeta e patrimônio da humanidade. VEGAS, embaixador da Argentina, narrando que em reunião de Governadores do Mercosul, na cidade de Ushuaia, foram discutidos os planos para estabelecer um eixo integrador regional e outro ambiental entre a Amazônia e a Patagônia visando impulsionar o desenvolvimento dos dois espaços geográficos, com impacto econômico e social sob o paradigma da sustentabilidade baseado na proteção e preservação do meio ambiente, destacava a importância do corredor turístico que favoreceria, por um lado, o desenvolvimento e a promoção de ambas regiões, e por outro, simultaneamente, contribuiria para fortalecer a consciência sobre a necessidade de preservar-se o meio ambiente já que aquelas regiões, contando com enormes reservas minerais, hídricas, ictícolas e florestais, constituíam dois gigantescos e diversos ecossistemas únicos no mundo e, “porque, na realidade, tanto a Amazônia brasileira como a Patagônia Argentina foram sempre, por suas características, objeto da mais elevada curiosidade de todo o nosso planeta”[VEGAS, JORGE HUGO HERRERA, em discurso na abertura de uma mostra fotográfica sobre a Amazônia e a Patagônia, realizada em Brasília, 1988, in http://www.embarg.org.br/frame2.html].
A exploração daquelas regiões envolve o crucial problema enfrentado pelos países em desenvolvimento e que precisam converter em dinheiro os seus recursos naturais para melhorar as condições de vida de seus povos e pagar o serviço da dívida externa, a destacar-se: a consciência de que devem promover o desenvolvimento sustentável; as pessoas e organizações com consciência ambientalista pensando numa comunidade universal ideal e procurando um mundo melhor para todos; os países credores e desenvolvidos buscando seus juros, quase sempre especulativos, à custa do ar, da água, do solo, do trabalho e do sangue das nações dependentes; e as pessoas e organizações ambiciosas que aberta ou obscuramente criam ou se aproveitam de crises para obter lucro sem preocupar-se em fazer circular as riquezas no lugar em que são geradas.
Num saite da internet [A matéria é um estudo sobre defesa da Amazônia elaborado pela Associação dos Ex-alunos do Colégio Militar, em Fortaleza/BR, in www.resistenciabr.hpg.ig.com.br] encontram-se manifestações que merecem destaque:
“É inaceitável o conceito de que a Amazônia não é patrimônio nosso, mas da humanidade” (…) “constata-se que as madeireiras estrangeiras, juntamente com seus fornecedores tradicionais, chamados patrões da madeira, são os principais responsáveis pelo desmatamento na Amazônia, pois, cabe-lhes cerca de 85% do total das exportações de produtos madeireiros” (…) “É nossa grande preocupação, essa expressão chamada patrimônio da humanidade ! Ela está consolidando cada vez mais, a nível internacional, a cobiça e a tendência à intervenção” (…) “Estrangeiros na Amazônia – Aumento crescente nos últimos anos: 10.000 estrangeiros, 10% clandestinos (estimado pelo DPF), cresce 5% ao ano. Deficiente controle de estrangeiros. Nível cultural elevado: cientistas/pesquisadores, religiosos, turismo, multinacionais” (…) “1991 – Proliferam as ONGs (Organizações Não-Governamentais) nacionais e internacionais, muitas delas utilizando o meio ambiente e a questão indígena como instrumento político. Nesse mesmo ano, atinge o máximo o esforço da mídia internacional para vender a idéia de que o Brasil não tem competência para gerir a Amazônia”
O receio é de que alguns movimentos ecológicos, como qualquer outro tipo de organização, possam estar infiltrados de intenções que extrapolem o esforço e a solidariedade de preservação da natureza para consubstanciarem interesses individuais ou de outros Estados.
O mesmo saite divulga artigo do jornalista SEBASTIÃO NERY [Artigo publicado em O Estado, de 14/15 de agosto de 1999, sob o título Ameaças Diretas à Soberania brasileira sobre a Amazônia] que destaca diversas manifestações de estrangeiros, inclusive governantes, referindo-se à Amazônia, que não podem ser esquecidas: Oswald de Richifofen, chanceler alemão (1902): “Seria conveniente que o Brasil não privasse o mundo das riquezas naturais da Amazônia”; Margaret Tatcher, Primeira Ministra da Inglaterra (1983): “Se os países subdesenvolvidos não conseguem pagar suas dívidas externas, que vendam suas riquezas, seus territórios e suas fábricas”; Al Gore, Vice-Presidente dos Estados Unidos (1989): “Ao contrário do que os brasileiros pensam, a Amazônia não é deles, mas de todos nós”; Francois Mitterrand, Presidente da França (1989): “O Brasil precisa aceitar uma soberania relativa sobre a Amazônia”; Mikhail Gorbachev, Presidente da União Soviética (1992): “O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacionais competentes”; John Major, Primeiro Ministro da Inglaterra (1992): “As nações desenvolvidas devem estender o domínio da lei ao que é comum de todo mundo. As campanhas ecológicas internacionais sobre a região amazônica estão deixando a fase propagandística para dar inicio a uma fase operativa, que pode definitivamente ensejar operações militares diretas sobre a região”; Henry Kissinger, Secretário de Estado norte-americano (1994): “Os países industrializados não poderão viver da maneira como existiram até hoje, se não tiverem à sua disposição os recursos naturais do planeta. Terão de montar um sistema de pressões e constrangimentos garantidores de seus intentos”; Patrick Hugles, Chefe do Órgão Central de Informações das Forças Armadas norte-americanas (1998): “Caso o Brasil resolva fazer uso da Amazônia, que ponha em risco o meio ambiente dos Estados Unidos, temos de estar prontos para interromper esse processo inadequado”.
A matéria, assim, demonstra que a idéia de patrimônio comum incidente sobre os recursos naturais apropriados de um Estado não é apenas lirismo ecológico ou aspiração romântica de quem acredita numa humanidade fraterna, mas verdadeira pretensão de Estado.
No que se refere à Patagônia, interessante é o trabalho de FULLGRAF [FULLGRAF, FREDERICO. Os senhores do fim do mundo ou: o assalto do império à Patagônia. Revista caros Amigos n. 82. p. 26, janeiro 2004. São Paulo: Editora Casa Amarela], jornalista e cineasta, ao comentar um plano de interesse inglês e norte-americano sobre os recursos naturais de países emergentes, embasado no National Security Study Memorandum 200, plano elaborado por Henry Kissenger quando Secretário de Estado dos EUA, em 1974, dizendo nele constar que o crescimento populacional em determinados países emergentes dotados de importantes recursos naturais em seu subsolo representará uma ameaça em potencial à segurança nacional dos EUA, pois poderão aumentar o preço de suas matérias primas e impor relações comerciais desvantajosas. Diz o jornalista que Kissinger tem reiterado perante a mídia, desde o ano 2000, a “importância dos recursos naturais argentinos para o mercado livre” e que aquele presságio teria se “tornado realidade face à recente crise aberta na OMC e à postura refratária do Brasil e da Argentina à ALCA tal qual proposta pelos EUA”.
Naquela articulação FULLGRAF diz que 150.000 Km2 do território da Patagônia passaram à propriedade de uma oligarquia representada por empresários de multinacionais – muitos dos quais sofrendo ações no judiciário Argentino [Não há no artigo detalhe sobre posição do Judiciário diante de tais ações] por impedir acesso da população nativa na Terra do Fogo e por violar território indígena – e que tramita projeto de lei de deputados da Província de Chubut propondo a proibição da venda de grandes extensões de terras a estrangeiros. Narra, ainda, que segundo matéria publicada no jornal El Patagónico de 30/5/02, aqueles deputados disseram ter ouvido falar, na Universidade Harvard, de uma nova ordem geográfica para a qual a “fragmentação territorial desempenhará um papel fundamental no âmbito de um reordenamento global, em cujo contexto poderão surgir novos países, principalmente nos territórios do Chile, da Argentina e do Brasil”. Este vaticínio seria de JUAN ENRÍQUEZ, mexicano, cientista político de um centro para estudos da América Latina que investigara aquisições “excêntricas” de terras na Patagônia.
Nos saites de internet [in hllp://www.thepatagonialandcompany.com/Topa_Port/home. htm], ainda sobre a Patagônia, é possível capturar-se mensagens comerciais em que os promotores dizem, com sofríveis traduções, que:
“O projeto de nossa empresa é mundial em todos seus aspectos: altamente rendível e um show case de como os interesses comerciais, sociais e ambientais devem se integrar para intensificar esses interesses” .(…) “Em 50 anos, as pesquisas da maioria dos científicos advertem sobre a perigosa escassez do ar e da água, elementos básicos da vida, como assim também a perdida completa do ambiente da vida selvagem natural e a restauração, santuário sanador que fornecem a um sem número de criaturas que habitam lá, e para os homens que o visitam. Como a vida verdadeiramente selvagem rapidamente desaparece, mais extravagantes e valiosas serão nossas visitas aos locais protegidos”. (…) “O perfil da Empresa envolve a aquisição de terras em grandes quantidades. Com o passo do tempo, se nós só mantemos a terra, a terra vai se converter em ingressos – muita terra – muitos ingressos. A idéia da compra de terra para conservá-la não é nova.” (…) “A preservação natural e as vantagens naturais dos impostos tem atraídos milhões de dólares em todo esse tempo. Nós só estamos somando outro incentivo” (…).”Cada hectare perdida em outras áreas incrementa o valor de nossos holdings, assegurando que o valor total de esses holdings vão crescer rapidamente”. (…) “Com essa idéia, nosso projeto de inversão é construir/comprar uma coleção das cinco melhores operações produtoras de benefícios, atraindo os clientes antes mencionados”. (…) “Exploração, Investigação, Experiência é o Perfil de nossa Companhia. A região da Patagônia na Argentina e no Chile é considerada como um dos santuários dos recursos naturais mundiais, como assim também um patrimônio da humanidade. Um estudo de investigação feito o ano passado pela World Tourism Organization indica que a Patagônia é uma das cinco áreas com uns dos maiores potenciais do crescimento para os próximos anos no mundo inteiro”.(…) “A nossa proposta é criar um produto/plano único para o futuro dessas áreas”.
É possível deduzir-se, inequivocamente, que dois propósitos são declarados naquele material: a aquisição de terras protegidas e a sua exploração comercial.
Não é o conceito de patrimônio comum da humanidade, entretanto, que há de permitir que os recursos naturais da Amazônia, da Patagônia e do Prata, ou de qualquer outro parte do planeta, constituam-se em grandes propriedades particulares, mesmo sob a velada intenção preservacionista, ou a benesse de capital estrangeiro que em regra não vê fronteiras e admite mercado livre quando sai à busca do lucro e escraviza a economia criando necessidades e dependências. E, ainda mais quando estimulado pelo subsídio e interesses tributários externos que possam acobertar verdadeira política intervencionista do Estado concedente.
Finalmente, é de aceitar-se que os recursos naturais existentes no território de um Estado sejam comuns à humanidade pela interação e interdependência que há no ambiente, e pelo objetivo compartilhado de fraternidade e solidariedade que deve mover os homens, mas, absolutamente, não é possível se admitir que seja ferida a soberania dos Estados; ao menos enquanto persistir a ordem política contemporânea estruturada numa organização milenar que apenas admite – e há menos de meio século – associações ou organismos internacionais despidos de poder igual ou superior ao daqueles. O condomínio universal exige objetivo e autoridade, deliberativa e judicante, comum.