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Anotações da Relação da Usucapião com a Função Social da Propriedade

Intróito:

No plano prático, a legislação brasileira – como o Novo Código Civil – alcançou situações novas, contemplando pontos que, há muito, precisavam ser considerados. Contudo, a usucapião, mesmo com diversas inovações e melhoras fulgurantes, necessita abarcar situações fáticas que permitam ampliar seus efeitos e, assim, ampliar o atendimento à já muito discutida função social da propriedade.

1. Conceito:

A forma de aquisição de posse denominada usucapião tem sua utilização considerada já no direito romano, propiciando a aquisição de algum direito real sobre bem, móvel ou imóvel, condicionada a um determinado período temporal, sendo este determinado em lei.

O usucapião – “a” usucapião, segundo a orientação do Código Civil Miguel Reale – teve na Lex Duodecim Tabularum sua manifestação mais antiga, sendo tratada, especificamente, na Tábua Sexta, a qual tratava do direito da propriedade e da posse. Nesta, o prazo era de dois anos para bens imóveis e de um ano para bens móveis. Percebe-se a importância atribuída “a” usucapião desde o remoto tempo do direito romano. Essa expressão latina significa: “tomar pelo uso”, sendo capio “tomar” e usu “pelo uso”. Contudo, o instituto recorre ao condicionamento do curso de tempo com o uso do bem que se quer adquirir para a, efetiva, realização, extinguindo, de outra parte, o direito de propriedade do proprietário anterior e o conferindo ao novo titular os direitos reais sobre o bem usucapido.

2. Controvérsia doutrinária:

Esse reconhecimento de direitos ao novo titular é pacífico na doutrina, contudo, questão controversa que se apresenta é a tentativa de definir a usucapião como modo de aquisição originário ou derivado. O elemento a ser observado é o foco sobre o qual deve recair o estudo, visto que a resolução é de difícil monta.

2.1 Consideração sobre forma originária de aquisição de direitos reais: Consoante Orlando Gomes, a usucapião é uma forma de aquisição da posse originária. Fundamentando-se tal posicionamento no fato de que o instituto não estabelece qualquer espécie de relação direta entre os direitos de propriedade do antigo titular da propriedade e a objeto. Ainda, como refere-se outro ilustre, Senise Lisboa, “o usucapiente não recebe o direito de outra pessoa, porém o obtém em virtude do preenchimento dos pressupostos legais, mediante a sucessão meramente fática sobre o bem, e não de direito”. Há, como se nota, uma nova formação de direitos, advindos do atendimento às disposições legais, não envolvendo as relações anteriormente havidas entre o proprietário originário e o novo proprietário, adquirente da terra por usucapião. A relação do proprietário, que perde os direitos sobre a propriedade – com a propriedade, tomando a propriedade como objeto – usucapida é desconsiderada quando há o atendimento dos requisitos legais pelo usucapiente, havendo entre este e a propriedade uma nova relação, a qual se inicia no plano fático e atinge o plano jurídico. Não há, segundo tal seguimento da doutrina, exercício de direitos entre o proprietário originário e a propriedade, visto que aquele está em estado de inércia consoante seus direitos, e isso possibilita o surgimento de uma nova relação de direitos entre o usucapiente e a propriedade. O fundamento para a usucapião é a teoria de Duguit, a qual prega a dessacralização da propriedade, “afirmando que somente o proprietário pode realizar uma tarefa compatível para o aumento da riqueza geral, daí o motivo pelo qual a propriedade é um direito em constante mudança. Por isso, Duguit estabelece que todo o proprietário individual deve destinar os bens de sua propriedade à consecução dos fins objetivados pela coletividade, já que ele é o detentor social das riquezas.” A concepção, acertada, de que o proprietário deve atender ditames coletivos no exercício de seus direitos de propriedade, compõe fundamental arcabouço para a constituição do Estado Democrático de Direito e o fato de o proprietário estar em estado de inércia é danoso a tal objetivo. Por tal situação, observando, também, de forma conjunta a continuidade de uma posse de fato, mansa e pacífica, transportada para o mundo jurídico, há essa nova relação de direitos, propiciando a constituição de direitos de propriedade entre o novo proprietário e a propriedade.

2.2 Anotações considerando forma derivada de aquisição da propriedade:

Em ensinamentos diversos, Lacerda de Almeida estabelece que a usucapião é modo derivado de aquisição da propriedade. O ponto disforme em relação à linha que considera a usucapião modo originário aparece quando há a constatação, não duvidosa por parte da doutrina, de substituição da relação jurídica existente. No que tange aos ensinamentos defendidos por tal grupo, a relação entre proprietário originário e propriedade é reconhecida, porém, pelo descumprimento da função social da propriedade e, ainda, pela inércia, ele é substituída por outra relação proprietário-propriedade, esta regular. Existe, conforme expõe Lacerda de Almeida, uma situação semelhante à da transferência de domínio, pois a relação anterior é substituída por uma relação nova, vinculando o usucapiente e a propriedade. Essa vinculação acontece pela inatividade e improdutividade social do proprietário anterior e pelo atendimento dos requisitos legais pelo proprietário por usucapião.

No caso do proprietário originário, o vínculo não se dissipa deixando a propriedade alheia à direitos e deveres, sem contar com um sujeito portador de direitos e deveres. Fica, sim, a propriedade com – em um momento pré-usucapião – um proprietário inativo, que não atende à função social da propriedade, contudo, subsiste a vinculação entre a propriedade e o referido proprietário não atuante. Há, com o atendimento das premissas dispostas legalmente, uma substituição desse vínculo entre propriedade e inativo, por propriedade e proprietário ativo, ainda que em estado latente, pois este, como proprietário usucapiente pode realizar a função social da propriedade.

3. Apontamentos legais da usucapião:

No Código Civil brasileiro, ao tratar de servidão – Título V – há a previsão da usucapião como modo de aquisição derivado, visto que ocorre a transformação do exercício dos direitos baseados na servidão em direitos de propriedade.

“Art. 1.379. O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a usucapião. Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião será de vinte anos.” Estabelece-se, com tal indicação, que no Ordenamento jurídico do Brasil há tanto a previsão da usucapião como modo originário de aquisição quanto como modo derivado, o qual é exposto no artigo supracitado.

3.1 Legislação estrangeira:

Trabalhou bem o legislador ao permitir a usucapião na servidão, visto que esse instituto tem, em elemento constitutivo, o interesse coletivo.Entretanto, a usucapião como, modo derivado, de aquisição da propriedade deve ter aumentadas suas possibilidades e, ótimo entendimento, parte do Código Civil de Portugal.No Código Civil Português, capítulo II, relacionado à constituição do direito de superfície, há previsão da aquisição com a utilização da usucapião como modo derivado de aquisição dos direitos de propriedade.”Art.º 1528º – Princípio geralO direito de superfície pode ser constituído por contrato, testamento ou usucapião, e pode resultar da alienação de obra ou árvores já existentes, separadamente da propriedade do solo.”

Diferente da posição brasileira, que aceita a usucapião no instituto da servidão, apresenta-se em Portugal a previsão no direito de superfície.Contando com a previsão do direito de superfície, abre-se a possibilidade de que o superficiário venha a adquirir a totalidade dos direitos que lhe são atribuídos parcialmente com a superfície.Observando que a usucapião é o reconhecimento jurídico de uma situação de fato, faz-se interessante ao Ordenamento a implementação desse dispositivo contido no Código Português, visto que, como expõe Ricardo Lira, o direito de superfície objetiva uma distribuição mais justa da riqueza, já que permite construção e plantações em propriedade alheia.

4. A função social da propriedade e a necessidade de um sujeito:

Partindo dessa premissa, o superficiário tem a possibilidade de gerar riquezas e benefícios com sua construção e, desde que atendidos os requisitos e a função social, deveria o mesmo ter a possibilidade de aquisição da propriedade, visto que não se escala no estado de inércia, mas de benfeitor.O foco de estudo e atribuição está sobre a propriedade, considerando, nas duas teorias, o fato de da propriedade emanarem direitos e deveres, tornando conturbado os estudos sobre tal questão.Por isso, elemento a ser percebido é que a propriedade torna-se um ser, um ser enquanto ser, o Sein, com características próprias e que há independentemente de sua relação com um sujeito.Do fato de ser propriedade decorre a necessidade de atendimento de sua função social, a qual consiste no uso benéfico para a coletividade pelo proprietário, além de restringir seu uso ao limite dos direitos de outros.A propriedade, contudo, não realiza por si a função social, havendo, portanto, a necessidade de um sujeito detentor de poderes sobre tal propriedade, o qual pode garantir que a função social seja executada e os ganhos sejam coletivos.

5. Considerações finais:

Constatada tal situação, atribuir usucapião o caráter de modo derivado condicionaria outra possibilidade de aquisição com atendimento à função social da propriedade, sendo tal, o direito de superfície, já adotado em outros ordenamentos e que traria benefícios fortes à coletividade e permitiria que, como feito em Portugal, melhorias legislativas e sociais ocorram. Anota-se, por tal, que além da mudança teoria, deve haver, da doutrina e da jurisprudência, o atendimento dessa nova vertente de usucapir.