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“Eu, tu, eles”

Ficha Técnica:Gênero: DramaTempo de Duração: 104 minutosAno de Lançamento (Brasil): 2000Direção: Andrucha WaddingtonRoteiro: Elena SoàrezProdução: Flávio R. Tambellini, Andrucha Waddington, Leonardo Monteiro de Barros e Pedro Buarque de HollandaMúsica: Gilberto Gil

Elenco:

Regina Casé (Darlene)Lima Duarte (Osias)Stênio Garcia (Zezinho)Luiz Carlos Vasconcelos (Ciro)Nilda Spencer (Raquel)Diogo Lopes (Vaqueiro Negro)Helena Araújo (Mãe de Darlene)Iami Rebouças (Moça do forró)Lucien Paulo (Capataz)Herbert Medrado (Dimas – 1 ano)Joanderson Cruz (Dimas – 4 anos)Jocemar Damásio (Dimas – 6 anos)Ariélson dos Santos (Edinardo – bebê)Pablo Silva (Edinardo – 1 ano)Jefferson Sousa (Edinardo – 4 anos)Vítor da Conceição (Edinardo – 6 anos)Lucas de Castro Silva (Edinaldo – bebê)João Lucas de Barros Neto (Edinaldo – 1 ano)Jonathan Dantas (Edinaldo – 4 anos)Alessandro dos Santos Ribeiro (Edivaldo – bebê)Andrucha Waddington

Áreas conexas com o direito:• Direito civil• Direito Penal• Direito do Trabalho

Sinopse:

Darlene, grávida e solteira, vai embora da sua região e retorna três anos depois com Dimas, seu filho. Osias, um homem mais velho lhe propõe casamento; Darlene aceita. Em poucos anos nasce um filho, muito mais escuro que Osias. Então ele leva Zezinho, seu primo para morar com ele. E logo nasce outra criança, esta bastante parecida com Zezinho. Pouco tempo depois Darlene convida Ciro, que trabalha com ela nos canaviais e não tem onde dormir, para jantar. Ciro acaba morando lá, e acaba chegando outro filho, desta vez parecido com Ciro.Análise Jurídica:

Darlene trabalha de sol a sol, de facão à mão no corte da cana. Encontra a segurança no primeiro casamento, com o ranzinza Ozias, um construtor bem-sucedido para o padrão miserável que o cerca. É nesse contexto de seca e miséria que começa o filme que se passa em uma realidade de extrema escassez. A mesma, recém chegada de volta a sua terra, encontra um antigo vizinho construindo uma modesta casa, o que no sertão é sinal de certa riqueza. Então, Darlene comenta com admiração: “Enricou, hein?”. No contexto social atual do nordeste espera-se tamanha miséria material dos personagens, que é agravada pela improdutividade da terra do interior nordestino.

É neste mundo tragicamente real que vive Darlene, mãe solteira de um garotinho. Certo dia, a mulher recebe a visita do vizinho Osias, bem mais velho do que ela. Fruto de uma sociedade machista, ele vai “direto ao ponto” e oferece sua casa em troca da mão de Darlene. Sem nenhuma perspectiva de uma vida melhor, ela aceita a proposta.

Acostumada com a dura realidade da vida, teve que deixar o primeiro filho aos cuidados do pai biológico, pois não tinha condições de viver bem, ou sequer sobreviver, possuindo pouco dinheiro para criar seus filhos. Assim está presente a divisão constitucional do poder familiar que defere a igualdade do poder sobre os filhos para o pai e para a mãe, não mais a estrutura patriarcal do Código Civil de 1916.

Alguns anos depois, Zezinho, primo de Ozias, vai morar com o casal e torna-se o segundo marido de Darlene. Zezinho, apaixonado, dá a atenção que Darlene não encontra em seu marido.

Observa-se, então, um fato que a maioria das pessoas pensam conter efeito jurídico ao assistir o filme. Quando a personagem Darlene traz o “segundo marido”, Zezinho, para casa, não é correto afirmar que estes incorreram no crime do art. 235: bigamia. Entre os delitos que ofendem a dignidade do casamento está a bigamia, que consiste em contrair novas núpcias sem que estivesse dissolvido o casamento anterior (por sentença de invalidação, morte do outro cônjuge, divórcio ou declaração de ausência), sendo considerado cúmplice quem casou com o bígamo sabendo da existência de casamento pretérito, ou celebrar-se outro matrimônio embora já sendo casado. Posto isso, conclui-se que para haver a consumação do crime é necessário um segundo casamento, na constância do primeiro, não possuindo a união estável requisitos para ser equiparado a tal, pois justamente diferem-se pela constituição e efeitos jurídicos diversos.

Darlene dá a luz a uma criança parecidíssima com Zezinho. Osias, por sua vez, finge ignorar as evidências. Zezinho toma conta de seu filho não pretendendo esconder ser seu, porém, nem mesmo assim Osias renega a convivência com ambos. Ainda mais grave se considerarmos que o primeiro filho do casal (depois de casados Osias e Darlene) também é, claramente, fruto de uma relação extraconjugal com o comprador de cabras que foi até o sítio.

Desta forma, apresenta-se a paternidade afetiva, de acordo com os critérios adotados pelo CC/02 para a definição de paternidade, pois mesmo Osias não demonstrando afeto para com a criança, também não nega cuidados á mesma, há uma convivência pacífica.

A paternidade afetiva nasce para se contrapor à paternidade jurídica, que é uma fixação jurídica, baseando-se em presunções de determinação de paternidade, e também, à paternidade biológica, na qual o vínculo que liga uma pessoa à outra é apenas o genético. Fundamenta-se, juridicamente, no Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente, preconizado no artigo 227 da Constituição Federal de 1988. Para essa nova definição de paternidade, pai ou mãe não é apenas a pessoa que gera e que tenha vínculo genético com a criança. Ser pai ou mãe, antes de tudo, é ser a pessoa que cria. Apregoa-se, então, que deva haver uma “desbiologização” da paternidade. É na posse do estado de filho, acima referida, base da paternidade socioafetiva, que ela vê-se mais evidente.

Entretanto, caso houvesse no filme, a caracterização do crime supramencionado, os filhos havidos do casamento do bígamo, por óbvio, seriam tidos como legítimos, sem qualquer consideração à boa ou má fé do outro cônjuge, em vista de sempre se aplicarem a eles os efeitos civis do casamento e devido ao direito constitucional de que todos os filhos são iguais perante a lei, não havendo mais distinção; classificação entre eles.

Darlene é trabalhadora rural; bóia-fria, pegando transporte em “pau de arara” para ir ao canavial conseguir o sustento de sua família, visto que não conseguiu emprego na cidade grande. Verificamos um fato social atual que é a predominância do desemprego no Brasil, país da falta de oportunidades; também, uma relação com o direito do trabalho, visto que as condições são desumanas, perigosas, os horários são acima do permitido por lei de 8 horas/dia (assistimos a saída de Darlene pela madrugada, voltando apenas quando escuro), além do grande absurdo diário aos trabalhadores de míseros 3 ou 4 reais, que é insignificante e, nem sequer perfaz o valor do salário mínimo.

Tempos mais tarde, Darlene conhece Ciro, um rapaz bonito que estava de passagem, e apaixona-se. Ciro é levado para ficar na casa com o trio apenas por pouco tempo, pois não tem um lar fixo. Entretanto, torna-se o “terceiro marido” de Darlene ao morar definitivamente no sítio.

Sob o fundamento da adoção da monogamia pelo Estado, não é possível que mais de um casamento seja válido no mundo jurídico, por isso a bigamia figura como delito sujeito a sanções penais. Entretanto, o filme tem um é bastante eficaz ao demonstrar as diversas formas de amor existentes dentro de uma entidade familiar, sendo esse o mais novo conceito de família por englobar mais do que a família tradicional tido como sagrada antigamente, selada pelo obrigatoriamente com o matrimônio e aceitou o fato como sentimento gerador da mesma.

Nesse panorama não mais cabe deixar de extrair efeitos jurídicos de um fato que existe, sempre existiu, mas que a justiça se nega a reconhecer: vínculos afetivos mantidos de forma concomitante. A realidade social ao longo da história insiste em contrariar a determinação legal, de sorte que relações paralelas, duráveis, sempre ocorreram e continuam existindo.