Press "Enter" to skip to content

Crescimento de julgados resulta da crença do povo no Judiciário, diz Nilson Naves

Consta nos arquivos do STJ que o senhor foi o relator do primeiro julgado da história do STJ, a PET 001, numa sessão da Terceira Turma em maio de 1989, secretariada pela atual secretária dos Órgãos Julgadores, Rosângela Silva. O senhor se recorda desse processo e do seu julgamento? Poderia contar detalhes sobre ele?

Conquanto tenham os autos sido classificados como petição, tratava-se, na verdade, de medida cautelar. Uma empresa em concordata preventiva buscava dar efeito suspensivo ao recurso especial que discutia a aplicação de correção monetária aos créditos habilitados, tema sobre o qual o Superior Tribunal ainda iria definir posicionamento jurisprudencial.

Levando em conta haver divergência acerca da matéria, bem como estar a falência da requerente na iminência de ser decretada caso não fosse feito, em dois dias, o depósito da primeira parcela da dívida com os credores quirografários, concedi a liminar ad referendum do colegiado. Desse modo, autorizou-se, até o julgamento do recurso especial, o pagamento sem a correção monetária.

Em seguida, submetido o caso à apreciação da Terceira Turma – que não estava completa à época –, a cautelar foi confirmada por unanimidade. Participaram da sessão três ministros, todos provenientes do extinto Tribunal Federal de Recursos, eu, Eduardo Ribeiro e Torreão Braz, a quem coube a presidência do julgamento.

Pouco mais de um ano depois, foi aprovada a Súmula 8, que definiu a posição da Segunda Seção sobre essa matéria.

Quando o STJ foi criado pela Constituição de 1988, o senhor já era ministro do TFR. Era possível imaginar que o novo Tribunal seria uma corte tão demandada? O senhor demorou para sentir a mudança na quantidade de trabalho na transição do TFR para o STJ?

Imaginávamos que o Superior Tribunal seria muito procurado, mas não tanto quanto vem acontecendo. A mudança foi sentida aproximadamente cinco anos após a sua instituição. Acontece que a Constituição despertou o povo, levando-o a buscar mais o Judiciário, e este Tribunal conquistou amplo espaço no seio da sociedade, voltado que é, com seriedade, para os anseios dos jurisdicionados, tornando-se respeitado e também reconhecido como Corte de vanguarda e “Tribunal da Cidadania”.

Não poderia ser diferente, afinal, somos historicamente comprometidos: é que o Judiciário e, em particular, o Superior Tribunal têm históricos compromissos com a idéia de justiça, pois não é que andamos, é verdade, diariamente, desde que o mundo é mundo, procurando dar resposta à eterna pergunta “o que é a justiça?”! Fazemos diariamente a justiça da melhor maneira possível, embora, ao fazê-la, acabemos por agradar a uns e por desagradar a outros. É impossível agradar a todos!

Em seu primeiro ano de existência, o STJ julgou pouco menos de 4 mil processos. Em 2005, esse número já estava na casa de 270 mil. A expectativa para este ano é ultrapassar a marca dos 300 mil. O Tribunal demorou quase 13 anos para alcançar seu primeiro milhão de julgados. Para chegar ao segundo milhão, foram necessários apenas quatro anos. Na sua opinião, quais fatores levaram a esse crescimento quase exponencial no número de processos analisados pelos ministros ao longo desses 17 anos de vida do STJ?

De um lado, esse crescimento resulta da crença do povo no Judiciário. O aumento vem daí. Vejam, pois, para as questões das pessoas a importância da Justiça. De outro, é conseqüência do uso abusivo de recursos processuais pelos entes públicos. Acontece que o Superior Tribunal não foi criado para julgar esse sem-número de processos, foi criado para julgar os temas de repercussão nacional.

O senhor se sente sobrecarregado com a demanda crescente do STJ?Não haveria de me sentir diferente. Mais de uma vez, em situações em que referência se fez às pilhas e mais pilhas de processos que ao Superior chegam todos os dias, evoquei aqui o castigo mitológico de Sísifo, a saber, o de rolar eternamente uma enorme pedra na subida de uma vertente, mal alcançando o cimo – se é, no nosso caso, que lá conseguimos chegar -, a pedra rola vertente abaixo, e o trabalho, que jamais cessa, recomeça com todo o fôlego. É desse castigo que padecemos. Ainda que nos dediquemos, de corpo e alma, ao trabalho, não lhe daremos cobro, pois trata-se de tarefa invencível, faltando-lhe, inclusive, glamour em alguns momentos.

Recentemente, disse que, quanto mais exercemos a justiça, mais procuramos enobrecê-la, mais, porém, têm sido, ultimamente, as nossas frustrações: nossas mãos, mentes e corações vêm-se revelando insuficientes, tão insuficientes a ponto de nos acharmos prestes a sucumbir.

Que soluções o senhor apontaria para racionalizar o trabalho dos ministros e seus gabinetes? Aumentar o número de ministros seria uma boa alternativa? É essencial uma reforma na legislação de modo a barrar as possibilidades de recursos que tanto sobrecarregam o Tribunal?

Não é de hoje nem de ontem, mas de muito tempo que o Judiciário está mergulhado na crise. Dela, até hoje, o Supremo não saiu, e nós, que fomos instalados em 1989, já há algum tempo nela entramos. Apesar disso, nutrimos todos a esperança de que, um dia, as coisas terão um jeito. Tentativas têm sido feitas desde os primeiros anos do século XX, no sentido de ajeitar aqui, arrumar ali, enfim, de consertar não só a denominada instância de superposição, mas, de igual forma, todo o Judiciário brasileiro. As tentativas têm sido em vão, quase todas. Pena que a atual proposta de reforma tenha feito pouco caso de boa parte das sugestões apresentadas pelo Superior Tribunal. Nunca deixamos, e não deixaremos, de convocar a atenção para a falta de harmonia e de coerência do atual sistema quanto à distribuição das competências. Há uma solução radical, diria eu, que é a corte constitucional. Há outra, menos severa, a de dar melhor definição ao papel do Superior. Infelizmente, nenhuma dessas propostas foi acolhida pelo Congresso Nacional. O que legislativamente acabamos de ter foi uma meia-sola, e barata, e inconstitucional: doravante, será difícil admitir que três e somente três são os Poderes da União, independentes e harmônicos entre si.

Aumentar o número de ministros não me parece boa alternativa. Nem haveria lugar para colocar tanta gente. A queixa principal de todos não é contra a lentidão, a morosidade da Justiça – motivo crônico da crise que inquieta toda a sociedade? Talvez devêssemos insistir na adoção da súmula vinculante também em relação ao Superior Tribunal. Seria uma das saídas para desafogar o Judiciário.

Outra alternativa está no critério da relevância da questão federal. Esse mecanismo de contenção dos recursos para a instância extraordinária mediante a análise prévia da relevância jurídica do assunto, além de tudo, valoriza as decisões das instâncias ordinárias. O Superior Tribunal de Justiça freqüentemente aprecia recursos sobre temas irrelevantes, por exemplo: disputa entre vizinhos por causa de cães, contenda devido ao acesso a repartição pública usando bermudão, controvérsia em razão da captura de minhocuçus, questão sobre a restrição do uso de caneta com tinta verde-escura, valor do aluguel na ação de despejo.

Esses são problemas para o cidadão? De fato, são. Todavia caberia à Justiça estadual solvê-los, e não ao Superior Tribunal, ao qual deveriam ser submetidos, no âmbito do recurso especial, apenas aqueles temas que, embora digam respeito a interesses pessoais, afetam a sociedade. Dou um exemplo: causas que tratem do índice de correção monetária das cadernetas de poupança e do fundo de garantia. O Tribunal deveria julgar esse tipo de questão, e não aquelas de menor importância, denominadas “causas de bagatela”.

É injustificável mobilizarem-se o Superior e o Supremo para decidir demandas que se esgotam no plano do conflito intersubjetivo, sem nenhuma relevância para a Federação. Sem dúvida, a inadmissibilidade de recurso extraordinário lato sensu referente a causas de nenhuma repercussão social daria maior celeridade à solução dos litígios juridicamente mais representativos.