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Princípio da segurança jurídica e da irretroatividade da norma

INTRODUÇÃO
1. CONCEITO DE DIREITO
2. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
3. BASE CONSTITUCIONAL DO DIREITO ADQUIRIDO
4. PODER CONSTITUINTE E PODER DE REFORMA
5. A TAXAÇÃO DOS INATIVOS ORIUNDA DA EMENDA CONSTITUCIONAL DE Nº. 41/03
5.1 A AFRONTA AO DIREITO ADQUIRIDO MEDIANTE A TAXAÇÃO DOS INATIVOS
5.2 INFLUÊNCIAS CONJUCTURAIS POLÍTICAS E ECONÔMICAS EMPROL DA TAXAÇÃO DOS INATIVOS
6. CONCLUSÕES

INTRODUÇÃO

O objeto a ser abordado neste trabalho monográfico é oriundo de inquietações e descontentamentos sentidos ao acompanhar o rumo desalentador que nosso país vem já há algum tempo tomando em termos de política governamental adotada pelos nossos dirigentes e sua repercussão nas searas do Poder Legislativo e do próprio Judiciário.

É de se notar que a voracidade do capital em países periféricos, tal como o Brasil, impulsiona de forma diretamente proporcional os crescentes índices de desigualdade social e empobrecimento, trazendo cada vez mais à vida do brasileiro uma penúria cruel no que tange ao seu desenvolvimento sadio e um satisfatório gozar de vida. Trazer à baila considerações falaciosas com o fito de corroborar com a tão propagada tese sobre o grau extasiante de felicidade do cidadão brasileiro certamente seria uma atitude tipicamente hipócrita, boba e mesmo infantil, quando, ao dia a dia, presenciamos o esfalecimento das classes populares, operárias e médias, neste gigante país que tanta riqueza produz e que tão pouco distribui.

O que se vê, ao invés da consecução plena dos direitos constitucionais vigentes neste Estado Democrático de Direito, que promoveria o bem estar social, tais como: saúde, educação, lazer, trabalho, segurança etc., são as reiteradas violações a direitos e garantias incutidos em nossa Magna Carta promovidas sistematicamente pelos Três Poderes da República. É uma afirmação forte, inclusive agressiva, diga-se de passagem, até porque há o pressuposto fundamental de que aqueles estão em exercício pleno de suas legitimidades e soberanias ofertadas pelo povo; não deixando, porém, de ser verdadeira. Vigora a tese de que o Estado, isto é, a comunidade politicamente organizada e o governo, ou seja, o agente executivo do Estado que deve realizar a vontade geral, originada do contrato entre os homens, estão submetidos às leis que foram aprovadas com o aval da maioria dos cidadãos, mediante o voto direto. Então, o soberano, constituído pelo contrato social, é o povo unido ditando a vontade geral, cuja expressão é a lei – idéia esta vislumbrada por Jacques Rousseau.

Crucial questão, no entanto, é aquela que visa demonstrar o que denomino de “fraude social da democracia” que contamina e vicia aquele contrato cujo objeto teria como fim a consecução do bem comum.

No entanto, difícil tarefa seria a de apontar um a um os vícios que maculam o ideal de um estado verdadeiramente democrático em razão da própria inserção da ideologia burguesa, de natureza perversa, dos beneficiários minoritários desta ordem social de uma forma bastante sutil, quase invisível, principalmente quando se destila de forma vil a doutrina da promoção e garantia de seus interesses particulares de uma forma disfarçada, camuflada, no imaginário popular, na mídia, no ordenamento jurídico, nas câmaras legislativas e, enfim, nos tribunais. Por tal razão é que se busca ao longo do trabalho focar apenas um daqueles vícios, qual seja o que deturpa um direito (ou garantia) pétreo mediante a feitura de uma hermenêutica interpretativa violadora de princípios basilares do ordenamento jurídico pátrio em prol de uma minoria elitista, o que acaba por contrapor aos ideais democráticos da própria Carta Magna. Aquele direito seria o do direito adquirido.Sobre a temática da preponderância dos interesses de uma minoria privilegiada, tem-se que este não é um fenômeno novo e muito menos singular neste país emergente. A evolução natural da sociedade do capital, desde suas origens até a contemporaneidade, sempre foi consubstanciado numa guerra de classes e de interesses, em que se tem como pano de fundo sempre a busca do patrimônio e, consequentemente, do poder. As guerras santas, por exemplo, de ecumênicos apenas os seus discursos fundamentadores. A promoção da chamada “libertação dos escravos”, apesar de ser uma causa digna, nobre e humano, ao que se sabe, no fundo lá estava a força motora do capital, em busca de novos mercados consumidores. A própria consecução da democracia, em si, só foi possível na medida em que se propiciasse uma estrutura social-organizacional forte, segura e eficiente em que se pudesse viabilizar a livre circulação de mercadorias, minorando o intervencionismo e protecionismo exacerbado do estado absolutista. É a época embrionária do laissez-faire, laissez-passer, laissez-viver. A concepção original de liberdade está inserida neste contexto. O contexto do livre capital. Não é de se estranhar que três séculos depois – um piscar de olhos para o cronograma da humanidade –, dentro da mesmíssima conjectura social econômica do capitalismo, que idéias e ideologias se misturem a discursos tidos como dignificantes, belos e éticos que fundamentam as leis, a Constituição, mas que em essência refletem a manutenção de um status quo de dominação e exploração exacerbada das classes ordinárias da sociedade.Konrad Hesse – citando Ferdinand Lassalle no quando da apresentação de sua conferência sobre a essência da Constituição – in A Força Normativa da Constituição, ensina com muita lucidez e logicidade que as questões constitucionais vigorantes em nossas democracias nada mais são do que questões de ordem política, que refletem as relações de poder nelas dominantes.

O jurista de forma muito própria asseverou, conforme tradução de Gilmar Ferreira Mendes, que:

Considerada em suas conseqüências, a concepção da força determinante das relações fáticas significa o seguinte: a condição de eficácia da Constituição jurídica, isto é, a coincidência de realidade e norma, constitui apenas um limite hipotético extremo. E que, entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar. Para essa concepção do Direito Constitucional, está configurada permanentemente uma situação de conflito: a Constituição jurídica, no que tem de fundamental, isto é, nas disposições não propriamente de índole técnica, sucumbe cotidianamente em face da Constituição real. A idéia de um efeito determinante exclusivo da Constituição real não significa outra coisa senão a própria negação da Constituição jurídica. Poder-se-ia dizer, parafraseando as conhecidas palavras de Rudolf Sohm, que o Direito Constitucional está em contradição com a própria essência da Constituição.

Justamente, incutido neste contexto, tendo inclusive esta referência supra como a ideal, servindo, portanto, como uma premissa maior e considerando-se, enfim, praticamente um preceito dogmático, um pequeno paradigma que até o fim se adotará e que dificilmente se abrirá mão, que se analisará e discorrerá de uma forma bem modesta sobre a sutil e constante violação a direitos e garantias constitucionais praticadas em prol da minoria privilegiada detentora do capital. É o vislumbramento a olho nu da sobreposição vigorante da Constituição real em face da Constituição jurídica.

Sob tal enfoque, pode-se dizer que um dos instrumentos que legitimariam os direitos e garantias do cidadão seria aquele que viabilizasse uma relativa segurança jurídica à sua pessoa. Aquela não haveria se seus direitos pudessem a cada caso serem postos em questão ou suprimidos pela vontade do legislador e/ou administrador. O interesse geral não é senão resultante dos interesses individuais.

É dessa própria segurança jurídica, traduzida na efetivação do direito adquirido e também do ato jurídico perfeito e da coisa julgada que tange especificamente à recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no ano de 2003, julgando pela constitucionalidade do artigo 4º da Emenda Constitucional número 41. Faz-se necessário a análise minuciosa, focando-se no finalismo ao qual se propõe o presente trabalho, fazendo uma breve alusão, enfim, aos interesses escusos, recheado de má-fé por parte de Poder Executivo, principalmente. Sabe-se que o oportunismo deste que eventualmente tenha seus direitos rejeitados poderá servir de estímulo a pretensões que desejem reavivar a discussão de fatos já analisados, ou mesmo de provas já produzidas e valoradas. E isso, lamentavelmente, não tem sido incomum, pois têm surgido, na prática, casos bastante atuais em que, por exemplo, condiciona-se à constitucionalidade a hipótese de se obrigar juridicamente a taxação de proventos percebidos por aqueles que gozam de renda oriunda da Previdência Social, ou seja, os aposentados (inativos), sendo que aqueles seriam, a prima facie, um direito já adquirido.O interesse finalístico do Estado para com o patrimônio do cidadão, por via da instituição de impostos, taxas e contribuições, é questão crucial que ao fim se almeja traduzir em palavras de todos estes axiomas legais e valorativos ora suscitados, principalmente no que se refere à questão da relativização dos fundamentos jurídicos, ao fundo ideológicos, que são, como se asseverará, as normas e princípios do ordenamento jurídico pátrio estritamente referentes à chamada taxação dos inativos e pensionistas do Regime de Previdência Social.

Para tanto, traz-se considerações teóricas sobre as funções das normas, princípios gerais, conceito e divagações sobre o direito adquirido, coisa julgada, segurança jurídica, bem como as suas observâncias no atual contexto sócio-político e suas possíveis variáveis, necessárias para uma melhor compreensão do tema. Traça-se assim, em linhas gerais, temas de amplo grau de discussões e incertezas entre o pensamento da doutrina pátria e o seu vislumbramento prático.

Importante dizer que a tradição histórica do país, no que tange a realização de políticas que objetivem a redução dos problemas estruturais, corrobora com a idéia de que todos os poderes públicos, ou seja, o maquinário governamental é utilizado, ainda que de forma sutil e deturpada em prol das camadas mais privilegiadas da sociedade, acabando por não cumprir o mister da busca de uma sociedade mais justa e igualitária. No entanto, o que se visará por ora será apenas a tentativa de demonstrar a vinculação de tal premissa lata a um fato único recentemente ocorrido: a violação de um direito adquirido no quando da entrada em vigor do artigo 4º da Emenda Constitucional de n. 41/2003, bem como do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade de n. 3105-8, movida pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público em face do Congresso Nacional, onde se entendeu pela sua improcedência. É simbolicamente dizer que tal decisão se traduz na ponta de um iceberg em face de um complexo sistema de Estado de Direito Democrático gravemente deturpado, em desconformidade com os ideais principiológicos dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988.

Por fim, é mister definir que para a elaboração deste estudo utilizou-se do método investigativo, com o exame de livros, textos de sites jurídicos obtidos na Word Wide Web e pesquisas bibliográficas, desenvolvendo o aspecto teórico do tema com base no material colhido, a fim da total compreensão do assunto em questão.

1. CONCEITO DE DIREITO

Novidade não é àqueles calejados estudiosos do Direito acerca da dificultosa tarefa de se trazer ao lume o tão controvertido conceito de Direito. São diversas as acepções e variantes que se ligam à concepção do que o que há de ser tal expressão.

Devido à falta de convergência doutrinária sobre o que viria a ser o direito, Dworkin ensina que há “uma dimensão moral associada a um processo judicial legal”, corroborada pela existência de decisões imparciais de julgadores, originadas por princípios políticos, tendo como desfecho a conclusão de que a “lei freqüentemente se torna aquilo que o juiz afirma” .

Tal assertiva procede, pois a força normativa do direito servirá muitas vezes como um óbice aos interesses de natureza vil do estado liberal, marcado pelo capitalismo, não correspondendo aquele mais, às vezes, ao rumo tomado pelo dinamismo das leis do capital. A contextualidade da realidade social, histórica e cultural a qual estamos inseridos implica, é certo, de forma direta no idealismo vislumbrado no corpo textual de nosso ordenamento jurídico.

Tem o direito como uma de suas funções precípuas a solução de conflitos. Esta não se dá em um passe de mágica, mediante um singelo balançar de uma varinha de condão. Não. A aplicação do direito é feita por homens comuns, possuidor de valores seja de natureza conservadora, seja de liberalidade. Incrustados numa teia psicológica de crenças e preconceitos que suas referências pessoais acabaram por, difusamente lhe incutir, formando-lhes o caráter, seja em casa, na igreja ou na escola, eles se expressam no seio social com aquilo que acabou por absorver ou abstrair, sendo, portanto, objeto de conveniência ou satisfação, ou mesmo como precaução ou subserviência. No entanto, esta noção do ideal, do certo ou, ao menos, do que é vantajoso ou não, variará de mente em mente, em razão de uma mistura complexa de sentimentos e conflitos internos provocados pelos estímulos que a sociedade lhe proporciona, resultando na formação de uma singularidade comportamental típica da natureza humana. O que se quer dizer, enfim, é que “cada cabeça é um mundo”.

A solução de conflitos entre os homens será instrumentalizado pelo direito mediante a chamada interpretação de textos normativos. Ocorre que:

[…] a interpretação do direito tem caráter constitutivo – não meramente declaratório, pois – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma de decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção (= concretizar) ao direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção na vida.

Sob tal enfoque, tem-se substancialmente a noção de que as normas visam impedir ou cercear a realização de atos em desacordo com os seus preceitos. Funcionam essencialmente como um instrumento de bloqueio de condutas indesejáveis, servindo à consecução de um objetivo programado. Visa, enfim, padronizar certos tipos de comportamentos, assegurando a condução ordenada da conduta humana.

É de se constatar que aquelas podem ser de certa forma deturpadas mediante o complexo processo dogmático interpretativo que refletirá e direcionará o sentido da norma à legitimação formal de interesses daqueles que assim o desejem.Rafael Damasceno, citando Lyra Filho, afirma que:

[…] à injustiça que um sistema institua e procure garantir, às normas em que verta o interesse de classe e de grupos dominadores, a pretexto de consagrar o interesse comum, opõem-se outros projetos e institutos jurídicos, oriundos de grupos ou classes dominadas, e também vigem, e se propagam e tentam substituir os padrões de convivência impostos (…). As suas elaborações, que se cruzam, atritam acomodando-se, momentaneamente, e afinal chegado ao ponto de ruptura, integram e movimentam a dialética do Direito. Um direito se nega, para que outro o transceda e tudo isso compõe o Direito mesmo, apreciado na sua totalidade e devenir […] .

Convergem, portanto, tais considerações com a noção trazida por Tércio Sampaio Ferraz Júnior de que “norma é um centro teórico organizador de uma dogmática analítica”. Desenvolvendo seu raciocínio, continua o douto jurista a afirmar que:

Mesmo sem desconhecer que o jurista , ao conceber normativamente as relações sociais, a fim de criar condições para decidibilidade de seus conflitos, também é um cientista social, há de se reconhecer que a norma é seu critério fiundamental de análise, manifestando-se para ele o fenômeno jurídico como um dever-ser da conduta, um conjunto de proibições, obrigações, permissões, por meio do qual os homens criam entre si relações de subordinação, coordenação, organizam seu comportamento coletivamente, interpretam suas próprias prescrições, delimitam o exercício do poder etc. Com isso, é também possível encarar as instituições sociais, como a família, a empresa, a administração pública, como conjuntos de comportamentos disciplinados e delimitados normativamente .

O instrumento viabilizador do fim almejado por aqueles destinatários final das benesses com a qual a norma acabará por conceder será o da coação. A própria concepção do conceito de direito é indissociável da de coação. É tanto que há aqueles, tal como Von Jhering, que definem o direito como “o conjunto de normas coativas válidas num Estado” .

Conforme estudo efetuado pelo jurista Zeljko Loparic, abstrai-se das palavras de Kant que:

[…] o conceito de direito é conectado, segundo a lei da não-contradição, à autorização de exercer coação [Zwang] sobre quem infringir o direito. Do princípio geral do direito (mais precisamente, das máximas do direito) segue-se, portanto, analiticamente, um princípio de coação externa. Sendo uma conseqüência analítica da definição, isto é, do que está na idéia da liberdade externa, esse princípio deve ser considerado um juízo analítico. Kant o afirma explicitamente em princípios metafísicos da doutrina da virtude. O princípio supremo do direito de que a coerção externa, na medida em que esta é uma resistência oposta ao obstáculo da liberdade externa que concorda com as leis universais (um obstáculo ao obstáculo à liberdade), pode coexistir com os fins em geral é claro, segundo a lei da não-contradição, não sendo preciso ir além do conceito de liberdade externa para o conhecer, qualquer que seja o fim objetivado. Portanto, prossegue Kant, o princípio do direito é uma proposição analítica. De acordo com essa análise, o direito de executar uma ação legítima pode também ser representado como a possibilidade de uma coerção mútua universal [durchgängig] que concorda com a liberdade de cada um, segundo leis universais. Kant termina essa análise afirmando: O direito e a autorização de coagir significam, portanto, o mesmo .

Vejamos, enfim, as conceituações doutrinárias as quais se refereriam ao que viria a ser o direito. Diria Joaquim Pimenta que direito é um “sistema de normas de conduta que coordenam e regulam as relações de convivência de uma comunidade humana, e que se caracterizam por um poder de obrigatoriedade igualmente extensivo ao grupo e aos indivíduos que o formam” . Jaime Guasp, por sua vez, definiria como um “conjunto de relações entre homens que a sociedade estabelece como necessárias” . Miguel Reale, entende, entretanto, que direito é a “vinculação bilateral imperativo-atributiva da conduta humana para a realização ordenada dos valores de convivência” .Vê-se que a conceituação de direito pode ter uma ótica voltada à classificação como um direito público ou como um direito privado. A lição do eminente jurista Caio Mário da Silva Pereira é no sentido de que, “embora o direito constitua uma unidade conceitual no plano filosófico, uma unidade orgânica no plano científico e uma unidade teleológica no plano social, os princípios jurídicos acham-se agrupados em duas categorias: direito público e direito privado” .

Não se pode ter em mente a idéia de que ambos os direitos são dois blocos incomunicáveis e/ou incompatíveis, vigorando-se em uma absoluta separação do que viria a ter entre as normas de natureza pública e as de ordem privada. Na verdade, ambas se comunicam freqüentemente. Conclui-se que o direito público se trata das regras normativas que regem as interações dos países soberanos ou do estado propriamente dito e os seus súditos. Já o direito privado equivaleria àquele direito visionado a regular as relações entre os indivíduos, na categoria de particulares. Gustavo Tepedino, inclusive, tratando sobre a temática, comenta com muita propriedade acerca das implicações as quais vêm surgir quando se estuda a interpenetração entre aqueles dois direitos. Vejamos a transcrição abaixo de sua lição:

A interpenetração do direito público e do direito privado caracteriza a sociedade contemporânea, significando uma alteração profunda nas relações entre o cidadão e o Estado. O dirigismo contratual antes aludido, bem como as instâncias de controle social instituídas em uma sociedade cada vez mais participativa, alteram o comportamento do Estado em relação ao cidadão, redefinido os espaços do público e privado, a tudo isso devendo se acrescentar a natureza híbrida dos novos temas e institutos vindos a lume com a sociedade tecnológica.

Daí a inevitável alteração dos confins entre o direito público e o direito privado, de tal sorte que a distinção deixa de ser qualitativa e passa a ser meramente quantitativa, nem sempre se podendo definir qual exatamente é o território do direito público e qual o território do direito privado. Em outras palavras, pode-se provavelmente determinar os campos do direito público ou do direito privado pela prevalência do interesse público ou do interesse privado, não já pela inexistência de intervenção pública nas atividades de direito privado ou pela exclusão da participação do cidadão nas esferas da administração pública. A alteração tem enorme significado hermenêutico, e é preciso que venha a ser absorvida pelos operadores .

O que se pode concluir, diante destas breves considerações, é que a concepção do direito é fortemente concatenada com a idéia de se manter uma ordem legitimada de uma sociedade voltada para a reprodução do capital, servindo aquele como um instrumento do poder baseado no uso da coerção, objetivado não tão somente tendo em vista a resolução dos conflitos oriundos das infinitas relações sociais que se estabelecem entre as mais variadas classes, mas também a da promoção de um resultado satisfatório daquilo que a ideologia política-jurídica almeja, ou seja, a vitória do modo de produção capitalista e, obliquamente, a promoção de algumas benesses, como direitos e garantias, atenuantes àqueles que são de tal forma manipulados e explorados para a consecução daquele fim.

2. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA

É de se ver, justamente com o fito de se tentar evitar abusos e arbitrariedades na manutenção da ordem social, por exemplo, no que diz ao direito adquirido, que uma situação validada no passado deve ter seus efeitos conservados na posteridade, permitindo que se atravesse íntegro à incidência das leis futuras. Não há, pois, que se aplicar de forma imprudente a questão da retroatividade, já que se corre o risco de afetar a segurança jurídica do cidadão. Pelo contrário, há a incidência da nova lei sobre situações concretas antes ocorridas, cujos efeitos se almejam por a salvo, a fim de que não sejam perturbados pela sucessão normativa. Proteger o cidadão das arbitrariedades do Estado, que detém o poder da coerção e a natural facilidade em impor sua vontade soberana, é o mister natural utópico de todo e qualquer direito em um Estado Democrático. Deixaremos de lado a curiosa e não menos triste análise que emergiria da problemática em questão sobre determinados estados totalitários, os quais ainda, em pleno século XXI, ousam desafiar os princípios basilares universais que tutelam a efetivação da dignidade da pessoa humana, para focar o retrato que nos é apresentado sobre o poder de influência exercido pelos grupos minoritários e suas conseqüentes exações sobre a maioria oprimida instrumentalizado pelo uso e abuso do direito. Aqueles são os que detêm de forma indiretamente proporcional ao seu número absoluto os bens capitais da produção, e por conseguinte, estando de acordo com a máxima ideológica que a democracia se sustenta, influi decisivamente nos rumos e deliberações adotados no dirigismo de nossa ideologia política. É a constatação que se tira ao analisar uma sociedade onde a burguesia está no exercício do poder, seja ele político, econômico, social ou mesmo ideológico.

É essa mesma burguesia, dentro de um contexto da economia neoliberal capitalista, que determinará o norte adotado pelo maquinário governamental (Poderes Executivo e Legislativo), não restando dúvidas daí quanto a uma possível convergência da defesa de interesses próprios em detrimento de toda uma coletividade. Para tanto, utilizar-se-á de um Poder Jurídico, baseado no corpo jurídico sustentado pela Lei Maior – a Constituição – que por sua vez será inspirado por princípios gerais a efetivar falaciosamente as garantias e individuais e coletivos sob espírito de efetivação da Justiça, da liberdade, igualdade e fraternidade .

Há de se ter sempre em mente que as decisões administrativas governamental trarão sempre ao fundo um discurso de que aquelas são e serão feitas em prol exclusivamente aos interesses e da vontade geral do povo. Entenda-se “povo” como aquela maioria desgraçada que na base da pirâmide sustenta todo o sistema degenerativo e opressor do capital. Sabe-se, no entanto, que o sistema é regido pela diferenciação de classes, onde o proletariado (povo) legitima com o seu “direito de voto” o poder político então vigente, sustentando e trabalhando em prol deste mesmo Estado que o oprime e o engana, que, por sua vez, é dirigido e idealizado, na verdade, pela e para a elite burguesa. Não deixa de ser um “topói” ou um lugar comum falacioso o fato do governo ser atuante e benevolente para com o povo, onde haveria de ter “…a expressão máxima da democracia: governo do povo, pelo povo e para o povo, segundo frase acertada e consolidada pelo Presidente Lincoln encontrável na Carta Francesa(art.2º).” Sobre o “deficiente” regime democrático ora comentado, temos a mesma opinião de José Afonso, onde se entende que:

O regime representativo, no Estado burguês procura resolver o conflito de interesses sociais por decisões da maioria parlamentar. Maioria que nem sempre exprime a representação da maioria do povo, porque o sistema eleitoral opõe grandes obstáculos à parcela ponderável da população, quanto ao direito de voto, para a composição das Câmaras Legislativas. Daí decorre que a legislação nem sempre reflete aquilo que a maioria do povo aspira, mas, ao contrário, em grande parte, busca sustentar os interesses da classe que domina o poder e que, às vezes, está em contraste com os interesses gerais da Nação. As classes dirigentes, embora constituindo concretamente uma minoria, conseguem, pelo sistema eleitoral, impedir a representação, nos Parlamentos, da maioria do povo, razão por que, fazendo a maioria parlamentar, obtêm uma legislação favorável. Ao se falar de poder político denegrindo e desvirtuando a plano utópico da concretização da democracia, mister se faz, de uma forma introdutória, trazer à baila as considerações doutrinárias que o próprio José Afonso da Silva estruturou sobre esta espécie de poder. Vejamos o que o mesmo preleciona:

O Estado, como grupo social máximo e total, tem também o seu poder, que é o poder político ou poder estatal. A sociedade estatal, chamada também de sociedade civil, compreende uma multiplicidade de grupos sociais diferenciados e indivíduos, os quais o poder político tem que coordenar e impor regras e limites em função dos fins globais que ao Estado cumpre realizar. Daí se vê que o poder político é superior a todos os outros poderes sociais, os quais reconhece, rege e domina, visando a ordenar as relações entre esses grupos e os indivíduos entre si e reciprocamente, de maneira a manter um mínimo de ordem e estimular um máximo de progresso à vista do bem comum. Essa superioridade do poder político caracteriza a soberania do Estado, que implica, a um tempo, independência em confronto com todos os poderes exteriores à sociedade estatal(soberania externa) e supremacia sobre todos os poderes sociais interiores à mesma sociedade estatal(soberania interna) .

Como vivemos em um dualismo ideológico, – o discurso explícito do em prol do social versus o discurso implícito da manutenção da desigualdade social – o STF, dentro da sistemática processual do ordenamento jurídico, necessita encontrar subsídios institucionais que o possibilite sobreviver nesta “gangorra ideológica”, com o fito de alterar decisões de épocas remotas que satisfizeram vontades e interesses que, de certa forma, deixavam incólumes interesses das nossas elites, mas que em um presente momento acabou por, em razão de mudanças sociais, políticas e/ou econômicas, se tornar um fardo às mesmas. Pronto. Encontrou-se o terreno fértil para o aparecimento das divagações, discursos e retóricas doutrinárias em torno da tão em voga e badalada relativização dos princípios constitucionais, apresentando-se neste ínterim como pivôs o princípio da proporcionalidade (ponderação de valores) e do aspecto não definitivo do direito adquirido ou da coisa julgada.Havendo a intrínseca relação entre a afetação da segurança jurídica e a inobservância a direitos e garantias fundamentais, tais como: direito adquirido, coisa julgada e ato jurídico perfeito, Luis Guilherme Marinoni chega mesmo a observar em estudo próprio que:

Diante disso, a falta de critérios seguros e racionais para a relativização da coisa julgada material pode, na verdade, conduzir à sua desconsideração, estabelecendo um estado de grande incerteza e injustiça. Essa desconsideração geraria uma situação insustentável, como demonstra Radbruch citando a seguinte passagem de Sócrates: crês, porventura, que um Estado possa subsistir e deixar de se afundar, se as sentenças proferidas nos seus tribunais não tiverem valor algum e puderem ser invalidadas e tornadas inúteis pelos indivíduos? .

Esta hipótese última suscitada pelo professor Marinoni da possibilidade da insustentabilidade e da instauração de um estado inseguro, indigno e promovedor da injustiça, consubstanciado em uma ordem promovedora do desmonte da cadeia principiológica e sistemática que regem nossa constituição é que se centra um pouco o presente capítulo.

Na verdade é este o ponto nebuloso da injustiça e da insegurança que o “programa do poder” tenta de forma agressiva, porém sutil, fazer valer e imperar no seio social. O uso (na verdade a expressão abuso é a mais recomendada) da relativização de princípios constitucionais, entre eles o da coisa julgada, serve como um discreto instrumento do poder utilizado ao bel-prazer pelo nosso órgão jurídico maior, o Supremo Tribunal Federal, o qual caberia zelar por uma sociedade justa, livre e solidária, mas que, ao contrário, vem servindo à classe dominante com acórdãos recheados de benesses ao custo do bem-estar social.Diante de tal quadro desolador, em convergência com o tema aqui tratado, Souza, citando Alcides Telles Júnior, apresentou a seguinte reflexão:

O momento histórico retrata uma encruzilhada: ou trilhar a via cômoda e sistêmica de uma hermenêutica interpretativa adequada à lógica e à funcionalidade da razão dominante, o que sugere uma idéia de justiça inconciliável com a essência jurídica mesma das relações sociais; ou assumir a hermenêutica de ruptura, grado máximo-dialético da equidade, visualizando toda a fenomenologia jurídica desde suas raízes no concreto-histórico da experiência social.

Importante neste exato momento, até porque ratificará de uma forma simples e concatenada toda a logística interpretativa que se almeja traçar ao longo deste discurso, salientar que tanto as regras quanto os princípios são necessários à composição do sistema jurídico, pois, na concepção de Canotilho se abstrai a idéia de que um sistema exclusivamente positivista, constituído só por regras, levaria a um sistema com limitada racionalidade prática. Apesar de conceder uma segurança jurídica perfeita, não permitiria a adequação de valores numa sociedade eminentemente pluralista, pois democrática. No entanto, por outro lado, um organismo fundado basicamente por princípios, desprovidos de regras precisas conduziria a sociedade a um estado de caos, de um sistema falho e incapaz de reduzir a complexidade do mesmo, resistindo, assim, de cumprir o seu mister.

Na verdade, o que se quer dizer é que não é de todo mal o uso eventual daquele instituto da relativização de princípios e normas constitucionais. As vezes é mesmo necessário, como é o caso hipotético de se relativizar a coisa julgada e o direito adquirido , porém se mantendo a cautela em utilizar corretamente o princípio da proporcionalidade, que é ponderador e equalizador dos pesos materiais normativos que cada princípio ou norma faz emergir, sendo tal princípio sempre subordinado ao princípio maior da dignidade da pessoa humana.

Lima complementa o pensamento exposto vislumbrando a possibilidade de se proceder com uma eventual relativização da coisa julgada, que se aplicaria também ao direito adquirido e ao próprio ato jurídico perfeito, na hipótese de, por exemplo, existir um documento novo de que a parte não pôde fazer uso, mas que poderia lhe proporcionar um pronunciamento favorável (art. 485, VII do Código de Processo Civil). Relativa-se um direito em razão de um circunstância especial que pode marcar qualquer direito .Em razão destes prenúncios doutrinários, têm-se discrepâncias e conflitos ideológicos quando se passa do estudo teórico do direito à sua aplicação prática, do dia a dia, pois, há, entretanto, aqueles que vinculam o mister julgador do STF para com os valores grandiosos incutidos na Constituição, e daí se passa a operar a visualização das dificuldades em se incutir a função ao STF de guardar precipuamente a Constituição e ao mesmo tempo servir como a última instância de recursos extraordinários, já que “guardar a forma ou apenas tecnicamente é falsear a realidade constitucional”. Na verdade:

[…] sempre conduz (o STF) à preferência pela decisão da lide, e não pelos valores da Constituição, como nossa história comprova. Não será, note-se bem, por culpa do Colendo Tribunal, se não vier a realizar-se plenamente como guardião da constituição, mas do sistema que esta própria manteve, praticamente sem alteração

[…] (SILVA, 2003, P. 556)

No entanto há aqueles que possuem entendimento meio que, digamos assim, alternativo e que, certamente, ajuda a incrementar o debate ora estimulado. Certamente seguidores de uma ideologia levemente compatível com a dos simpatizantes do anarquismo, advogam a tese de que primar pelo mantimento de uma segurança jurídica mais arredia é um violento golpe contra a ascensão plena da liberdade. A segurança exacerbada haveria de favorecer a interesses escusos da chamada “elite burguesa”, pois o povo, em busca de um estado acalentador, diverso em essência do estado de natureza vislumbrado por Rousseau, submeter-se-ia, cegamente, aos dogmas e manobras dos poderosos. Entendimento razoável e baseado em idéias concatenadas, diga-se de passagem. Arremata então que:

[…] na busca da segurança que se estabelece o poder. O máximo de segurança é a escravidão. É uma coisa natural do homem esta necessidade de segurança, em conflito permanente com a necessidade do risco. A grande glória da sociedade burguesa, da família burguesa, das instituições sociais em geral, é a sua oferta de segurança, por um lado e, por outro, nos levar ao medo à liberdade. (FREIRE & BRITO, 1991, P. 71)

O que pode se constatar, enfim, é que uma cautela norteada na verdadeira espiritualização da norma e princípios se faz necessária, pois, em tempos em que a gangorra ideológica prepondera em nossas instâncias judiciárias, violentando, de tal forma, o princípio da imparcialidade, o objeto-fim há de ser sempre aquele que mais se aproxima ao ideal vislumbrado na objetivação da concessão de vida mais digna ao cidadão.Este aspecto último é, enfim, o que serviria como parâmetro na resolução de eventuais conflitos de principiológicos e normativos em âmbito constitucional. Um forte rigor ético haveria de pairar sobre nossas instituições. Fato este, é verdade, de difícil concretização, onde se vê no dia a dia o povo, assim propriamente dito, deseducado, desleal para com o outro, tão “corrupto” quanto aqueles que lá em cima os representam. O alto grau de disseminação do “jeitinho brasileiro”, por exemplo, é o símbolo do desvio de conduta ética que contamina nossa sociedade como um todo.

Recentemente, publicou-se na Internet, no jornal “on line” da página do Terra, reportagem em que o ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos afirma que o País vive uma crise de ética, inclusive nas práticas cotidianas da sociedade civil. O mesmo destacou que: “A crise de ética no Brasil é um problema histórico, que tem raízes no passado. Já foi motivo até para a deposição branca de um presidente da República”. Para o ministro, o problema acontece inclusive nas práticas cotidianas da sociedade brasileira. “Aqui nós temos uma cultura da condescendência. As pessoas passam escrituras por preços mais baixos, compram sem registro para pagar mais barato, pedem desconto por não exigir nota fiscal. Enfim, tudo começa com essas pequenas coisas”, criticou. Segundo ele, a cultura de combate a essas práticas ilícitas tem que ser implantada. “O jeitinho brasileiro de “tirar proveito” nas pequenas coisas criou a cultura do Caixa 2, da lavagem de dinheiro e da falta de ética”, comentou .

3. BASE CONSTITUCIONAL DO DIREITO ADQUIRIDO

A acepção básica da denominação “direito adquirido” encontra berço no fundamental princípio da irretroatividade das leis. Caracteriza como adquirido todo direito oriundo de ato jurídico perfeito ou da coisa julgada, por já se ter definitivamente incorporado ao patrimônio jurídico do indivíduo.O conceito deste instituto jurídico advém do ramo do Direito Privado, especificamente do enunciado no § 2º do artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil. Vejamos: “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.

É dizer que se trata de um direito em que seu detentor (ou representante) há de exercer de forma inexoravelmente plena, protegido de eventuais incidências legislativas, quanto à sua matéria, posteriores ao seu acabamento perfeito pela lei vigente à época de sua ocorrência. Importante é ressaltar que conforme esclarecimento de Baudry Lacantinerie-Foucarde, em sua obra Systeme, citado por Caio Mário, vê-se que:

[…] para bem interpretar o alcance do preceito legal, é preciso lembrar que com o direito em si não se deve confundir o que constitui o seu modo de exercício ou seu modo de conservação, pois estes modos são sempre regidos pela lei atual, ao passo que o direito se determina segundo a lei sob cujo império nasceu. Abstrai-se a idéia de que esse direito não poderá ser modificado sob o arbítrio de outrem. A exceção a esta regra ocorrerá apenas em razão de um eventual rompimento do ordenamento jurídico, em seu sentido lato, em que se instaure uma nova norma hipotética fundamental, consubstanciada, então, pela legitimidade da soberania do poder constituinte a qual lhe deu origem. Nesse contexto, existe a possibilidade de se romper com toda a materialidade legal que ao sempre deu forma e conteúdo ao direito que até então seus titulares faziam uso e gozo. É a criação, enfim, de uma nova ordem constitucional que sustentará os novos valores e fundamentos da sociedade estatal, possibilitando, assim, a desconsideração dos chamados direitos adquiridos. Abordamos mais a fundo o assunto no capítulo por vir.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XXXVI, determina que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

O entendimento doutrinário brasileiro a respeito do tema está abarcado, de forma resumida, na lição de Caio Mário da Silva Pereira é a que segue:

Direito adquirido, in genere, abrange os direitos que o seu titular ou alguém por ele possa exercer, como aqueles cujo começo de exercício tenha termo pré-fixo ou condição preestabelecida, inalterável ao arbítrio de outrem. São os direitos definitivamente incorporados ao patrimônio do seu titular, sejam os já realizados, sejam os que simplesmente dependem de um prazo para seu exercício, sejam ainda os subordinados a uma condição inalterável ao arbítrio de outrem. A lei nova não pode atingi-los, sem retroatividade. (Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1961, v. 1, p. 125)

Ressaltemos, no entanto, que a expectativa de direito não é título de um direito em si. Diferentemente, então, é na hipótese em que o sujeito detentor de um direito adquirido. Inclusive, respeitando-se este instituto ora citado é que se poderá trazer uma paz social nas relações humanas e sua conseqüente segurança jurídica. Com o fito de corroborar com o alegado, é imperioso trazer à baila o ensinamento de Maria Helena Diniz, que, citando autores renomados, caracteriza o direito adquirido frente à lei posterior constituída. Vejamos:

Nesse mesmo sentido, Agostinho Alvim define direito adquirido como “conseqüência de um ato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo em que esse fato foi realizado, embora ocasião de o fazer valer não se tivesse apresentado antes da existência de uma lei nova sobre o mesmo, e que, nos termos da lei sob o império da qual se deu o fato de que se originou, tenha entrado imediatamente para o patrimônio de quem o adquiriu”.

Manuel A. Domingues de Andrade esclarece-nos que o patrimônio vem a ser o conjunto das relações jurídicas (direitos e obrigações), efetivamente constituídas, como valor econômico, da atividade de uma pessoa física ou jurídica de direito privado ou de direito público. Portanto, o que não pode ser atingido pelo império da lei nova é apenas o direito adquirido e jamais o direito “in fieri” ou em potência, a “spes juris” ou simples expectativa de direito, visto que “não se pode admitir direito adquirido a adquirir direito. Realmente, expectativa de direito é mera possibilidade ou esperança de adquirir um direito por estar na dependência de um requisito legal ou de um fato aquisitivo específico. O direito adquirido já se integrou ao patrimônio, enquanto a expectativa de direito dependerá de acontecimento futuro para poder constituir um direito.

A lei nova não poderá retroagir no que atina ao direito em si, mas poderá ser aplicada no que for concernente ao uso ou exercício desse direito, mesmo às situações já existentes antes de sua publicação.

Há aqueles que, entretanto, convergem com o entendimento de que o direito adquirido não é um instituto inatacável em face de uma norma posterior que lhe retire sua efetividade, pressupondo então sua superveniência na mesma ordem e conjectura jurídica.No entanto, mister se faz esclarecer o norte interpretativo a ser adotado no que se refere ao termo “lei” adotado no contexto normativo a todo tempo abordado. Para tanto relacionar a força normativa da lei com a sua literalidade enunciativa em âmbito constitucional é necessário. A máxima que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” deve ser interpretada de forma extensiva, caso contrário todo o esforço e concatenamento lógico da retórica aos quais queremos fazer imprimir neste trabalho serão em vão e de cunho falacioso, pois baseado em premissa falsa ou sem imperatividade.

Trazer considerações do estudioso Paulo Bonavides certamente enriquece de forma peculiar, neste ínterim, de uma forma oblíqua, a análise da expressão “direito e garantias” quanto a sua normatividade e a sua repercussão hermenêutica no âmbito doutrinário, buscando as origens e limites de sua atuação:[…] a expressão direitos e garantias, ali textualmente nomeada e gramaticalmente compreendida, exprime os limites teóricos, históricos e específicos traçados para traduzir na essência o breviário da escola liberal e sua versão de positivismo jurídico.Dessa fonte privilegiada promana, assim, o enunciado normativo onde se cristalizam no Direito os axiomas da razão individualista. Trata-se de um círculo cerrado à invasão de outros conteúdos axiológicos, suscetíveis também de se normatizarem ou criarem dimensão nova de juridicidade mais lata para aquela expressão, ou seja, de alterar-lhe aditivamente o sentido com maior abrangência de espaço, no qual se introduziria, então, aquilo que aos teoristas liberais se lhes afigura um paradoxo ou uma singularidade inadmissível: a natureza social dos direitos individuais, noção filosoficamente impura e prosmícua, segundo essa linha de pensamento, mas que, convenhamos, já prevalece em considerável parte da doutrina contemporânea, livre de impugnadores, a cimentar o argumento interpretativo mais importante de numerosa parcela de hermeneutas constitucionais, consoante demonstraremos posteriormente”. É de suma importância, inclusive, a abordagem temática sobre a associação do direito adquirido com a sua natureza intrínseca de cláusula pétrea. Depreende-se que, de fato, o direito adquirido é uma basilar garantia constitucional, ademais, com um status superior de juridicidade tamanho que acaba por proteger e assegurar, ao menos em tese, a dignidade da pessoa humana contra os arbítrios e abusos dos governantes.Observe-se que a Constituição Federal de 1988 reza em seu art. 60, § 4º, IV que:

Art. 60 – (omissis)§ 4º – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – (omissis)

II–(omissis)

III – (omissis)

IV – os direitos e garantias individuais

Justamente sobre este tema, o Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles clarifica e corrobora com o entendimento de que a expressão “lei” incutida no art. 5º, XXXVI, deve ser compreendida em seu sentido mais lato, como norma e de sua conseqüente natureza pétrea. Na verdade faz referência à impossibilidade de se atribuir a quaisquer espécies legislativas que objetivem suprimir do texto constitucional ou vedar sua eficácia do elenco dos direitos e garantias individuais, ressaltando o fato de que as emendas constitucionais também se enquadram nos chamados atos legislativos, conforme interpretação literal do artigo 59 da Constituição Federal.

Quando se fala de “garantia constitucional” é de bom alvitre, trazer aqui os ideais do ilustre Paulo Bonavides, onde, na esteira do pensamento do indefectível Rui Barbosa, que, por sua vez, tenta encontrar o verdadeiro conceito de garantia constitucional, sepulta de vez quaisquer vacilações teóricas acerca da sua natureza única de cláusula pétrea, prestígio do qual desfruta tal instituto, fundamentando e qualificando seu conteúdo com bojo no pensamento liberal da doutrina mais afortunada. Abstrai-se de seu entendimento que as garantias constitucionais são de primordial importância para a promoção da segurança à figura da pessoa humana e que haverá de se concentrar as forças motoras dos poderes públicos em prol dos cidadãos, visando protegê-los dos arbítrios e excessos da Administração. Aquelas garantias constitucionais hão de direcionar os mecanismos utilizados pelos poderes públicos na seara do exercício pleno de suas funções, servindo, enfim, como freios e contrapesos da Constituição. Consubstancia-se o alegado com aquela interpretação do § 4º do art. 60 da Constituição, a qual direciona ao entendimento de que a cláusula pétrea é aplicável unicamente aos direitos e garantias da tradição liberal. É pelo tanto que repulsiva será toda a interpretação que objetive, via emenda, a ofender os direitos e garantias em prol das classes privilegiadas, bem como da sua ordem egocêntrica de interesses.

É de saltar aos olhos, portanto, que o instituto do direito adquirido se encontra incutido na Magna Carta não apenas como mais um de seus preceitos normativos, mas sim, também, como um “plus” intocável de cláusula pétrea. Combina-se a isto, também, o caráter de conteúdo eminentemente valorativo da expressão “lei” do inciso XXXVI do art. 5º, que há de ser entendido como norma, como bem lembrou Fonteles, resultando no desfecho lógico de que a superveniência de uma lei (norma) que implique na afetação de direito ou garantia fundamental, abarcado pelo o que discrimina o art. 60, § 4º, IV, há de ser tida como inconstitucional.O professor Ponciano Carvalho, ao início de suas atividades científicas na área jurídica, ainda bacharelando, com muita propriedade, em tom crítico, acaba por discorrer de certa forma sobre a matéria, especialmente no tema tocante a afetação do direito adquirido mediante emenda constitucional. Com o tom ácido e provocador que lhe é peculiar, aduz da seguinte forma sua lição:

O manto constitucional impede a violação do direito adquirido por via direta ou oblíqua. Em conseqüência, será materialmente inconstitucional, tanto a emenda, que proclame expressamente, de forma hipotética: A partir de hoje, fica revogada a norma do inciso XXXVI, do art. 5º, quanto àqueloutra, o que, convenhamos, é mais usual, que retira indiretamente do patrimônio dos cidadãos direito a este incorporado por mandamento de norma infraconstitucional, e ainda mais, se o foi por força de norma constitucional. O § 4º do art. 60 fala na impossibilidade de ao menos deliberar-se sobre a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. Ao utilizar o termo tendente a nossa Carta quis o não ferimento das cláusulas pétreas pela via oblíqua.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 939-7-DF, que tinha por objeto a análise da constitucionalidade da emenda constitucional n.3/93, na parte em que concedeu à União a competência para instituir o chamado IPMF, sem necessidade de respeito ao princípio da anterioridade, estatuído na alínea b, inciso III, do art. 150 da CF/88, entendeu pela impossibilidade das emendas constitucionais desrespeitarem direitos e garantias individuais.

Com o fito de corroborar e ratificar todo o seu raciocínio então desenvolvido, o professor traz, ao fim, trecho do voto do Ministro Celso Melo. É o que se segue:

Dentro desse contexto, tenho por irrecusável que a norma inscrita no art. 2º, § 2º da Emenda Constitucional n.3/93 – ao reduzir, ainda que temporariamente a abrangência da cláusula de proteção representada pelo princípio da anterioridade – vulnera, nas múltiplas dimensões em que ele se projeta o regime jurídico constitucional dos direitos e garantias individuais dos contribuintes. A norma questionada desconsidera – ante o que prescreve, cogentemente, art. 60, § 4º, da Constituição […]. O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores – que desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais ou coletivos – introduz um perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, por completo, a harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente desiguais, entre as pessoas e o Poder .

4. PODER CONSTITUINTE E PODER DE REFORMA

Tendo todas aquelas considerações contextuais abordadas nos tópicos supra em mente, observa-se que muitas vezes a influência do poder político se sobrepõe até mesmo sobre a do poder judiciário, que nada mais é do que uma certa espécie, ou sub-espécie, de poder social, baseado precipuamente em uma ideologia e que na verdade emana originariamente da própria vontade política. Exsurge, portanto, do chamado “Poder Constituinte Originário” que dá origem à Constituição. O poder jurídico é consubstanciado e estruturado por tal Constituição. Esta, diria Kelsen, é a norma hipotética fundamental, ou seja, a ponta da pirâmide da estrutura do ordenamento jurídico, servindo como fundamento lógico transcendental da validade da constituição jurídico positivo. É a norma suprema que regula e condiciona a criação de outras normas, infraconstitucionais.

A Constituição, uma vez posta em vigência, é um documento jurídico, é um sistema de normas. As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências de insubmissão ao seu comando. As disposições constitucionais são não apenas normas jurídicas, como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a paradoxal equivocidade que longamente campeou nesta matéria, considerando-as prescrições desprovidas de sanção, mero ideário não-jurídico .No âmbito da realidade brasileira, verifica-se que ao se observar o cenário sócio-político contemporâneo, no que se refere à confrontação entre a teoria e a prática, entre o que a democracia idealiza e o que a realidade apresenta, traduzida nas decisões do órgão maior que tem o mister de primar pela defesa da Constituição Federal do Brasil, ou seja, do Supremo Tribunal Federal, muitos receios e preocupações passam a nos assolar. A própria análise da evolução histórica, política e jurídica de nossa sociedade justifica este sobressalto.

No momento em que se tem uma ideologia, ao sempre, como sinônimo de dominação e há de se dizer até mesmo sobre sua indissociabilidade da alienação , é possível e até mesmo necessário interligar a estrutura dos Três Poderes visando o fim da concretização não de uma política de poder voltada efetivamente ao social e ao bem comum, mas sim à satisfação dos escusos interesses dos que propagam a ideologia do capital. Todo este idealismo, ressalte-se, vê-se incutido em via de princípios e valores que se formam em nosso embrionário ordenamento jurídico. É exatamente a interpretação que se tem da lição que Souza apresenta:

A História demonstra que o princípio da legitimidade é uma necessidade de ordem social. Os grupos sociais precisam de uma ideologia que estabeleça a coesão entre os seus membros e justifique as relações intergrupais, que se resumem a relações de dominância. Pressupondo o consenso do grupo, a legitimidade se instrumentaliza pela técnica da legitimação, através da qual esse consenso é obtido; legitimidade, portanto, articula-se com poder e dominação. Quando certos grupos passam a exercer o controle dos meios ideológicos de transformação das relações sociais de dominação em relações ideais de poder jurisdicizado, tem-se então a hegemonia. Assim, cria-se a sociedade que se diz livre, o Estado que se diz democrático e a ordem jurídica que se diz legítima[…] Torna-se então aceitável a sociedade real, que oculta a escravidão pelo mito da liberdade, que oculta a tirania e a oligarquia pelo mito da democracia, que oculta a alienação pelo mito da legitimidade .

Curial a explanação sobre o que vem ser, enfim, em letras miúdas, o chamado poder constituinte. Este é um instrumento que representa e cria as instituições do poder originadas de uma pressuposta legitimidade soberana que organizará e estruturará a sociedade política de um novo Estado. Conecta-se hoje, de certa forma, à noção e conceito de democracia, pois oriunda de revolução social que almeja alterar o status quo então vigente . É, enfim, “a manifestação soberana da suprema vontade política de um povo, social e juridicamente organizado” .

Entretanto, este poder constituinte, em razão da precisão de se moldar às normas constitucionais à conjectura social da realidade acaba por criar mecanismos que viabilizem eventuais alterações no texto constitucional. Daí que a grande doutrina advoga a tese sobre a existência de um poder subalterno e vinculado a regras jurídicas preexistentes que lhe dão autenticidade constitucional. É o chamado Poder Constituinte Derivado.

O que não de se perder de vista é a visão da imutabilidade da ordem jurídica, a não ser nas situações de revolução, onde se rompe a ordem constitucional, para se implementar uma outra. Então, sabemos que as normas da inamovibilidade apresentam barreiras materiais em face do poder de reforma constitucional.Algumas dessas barreiras materiais são de forma expressa e outras implícitas. Daí que se conclui que exatamente não são todas as matérias que serão alcançadas pela égide da reforma.Subtende-se, portanto, que o poder de reforma fica subserviente ao instrumento que lhe constituiu e que acaba por fixar a sua forma de operar. Assim, sob um enfoque jurídico, tratar-se-á de um equívoco aquele entendimento em que os legitimados para o exercício do limitado poder reformador, com o difícil mister de operar eventuais mudanças em nossa Constituição, com o fito de moldá-la aos novos rumos tomados pela sociedade, em que de forma indiscriminada poderiam fazer.

Caso contrário se poderia afirmar o absurdo de que aqueles seriam habilitados ao exercício do próprio poder constituinte originário, incidindo na hipótese de se criar uma nova constituição, de forma obliqua, e não apenas reformá-lo. O que se visa evitar é que o Legislativo, de forma ordinária, exerça indiscriminadamente o poder de fazer nascer preceitos inconstitucionais, concebidas mediante uma interpretação viciada de preceitos, normas e princípios constitucionais alterados. Vejamos então que para vislumbrar os efeitos protetores da normatividade incutida no art.60, § 4º, da Magna Carta, basta fixar a idéia sobre a característica predominante do condicionamento das formas de exercício do poder reformador. Assim, óbvia a afirmação de que a garantia dos direitos adquiridos está abarcada diretamente pela impossibilidade de se interpretar de forma equivocada ou deturpada o seu espírito.

Assim é que com muita singularidade que Bonavides, ao divagar acerca do futuro da Constituição, vinculado-se à temática da tênue garantia das garantias e direitos constitucionais inovada na edição de 1998, filosofa nos seguintes termos:

A conclusão que se extrai assim não poderá ser outra senão esta: ou o pensamento constitucional brasileiro teve criatividade teórica bastante para unir numa fórmula jurídica perfeita e acabada o Estado liberal com o Estado social – o que não nos parece haver já acontecido – ou produziu com aquela cláusula de garantias uma contradição enorme e frontal, que será o desespero e tormento dos juízes e tribunais no exercício das competências de controle de constitucionalidade, em razão de eventuais colisões dos dois princípios, ambos de constitucionalidade máxima: o do Estado social e o do Estado de Direito. Qual deles porém prevalecerá? A Constituição não responde. Mas a resposta virá depois por via jurisprudencial com as decisões e arestos da Corte suprema brasileira, devendo os juristas do País ficarem atentos ao desempenho que a esse respeito terá o Supremo Tribunal Federal, convertido pela Constituição em Corte constitucional, com uma extensão e plenitude nunca dantes ocorridas .

Claro está, ao que parece, na contemporaneidade para os nossos juristas o rumo do qual acabou por tomar o STF , no que diz respeito ao questionamento levantado por Bonavides. O Estado de Direito, certamente acaba, aos poucos, por sucumbir em face do Político.

5. A TAXACAO DOS INATIVOS ORIUNDA DA EMENDA 41/2003

A tão malfadada taxação dos inativos teve seu objeto originado do art. 4º da Emenda Constitucional de número 41, o qual versa sobre a contribuição previdenciária dos aposentados e pensionistas. Lê-se abaixo o referido dispositivo:

Art. 4º Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3º, contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos. Parágrafo único. A contribuição previdenciária a que se refere o caput incidirá apenas sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere:

I – cinqüenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

II – sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas da União.

Tratou a referida emenda, especialmente no que diz respeito ao artigo supra, sobre a instituição de um regime diferenciado para aqueles servidores que obtiveram a concessão de suas aposentadorias após o início da vigência desta emenda onde terão, a partir de então, que contribuir sobre todo aquele valor que exceda o teto de R$ 2.400,00 e os que estão desde antes aposentados, que contribuirão no valor de 50% sobre o que superar o valor do teto, se servidor inativo ou pensionista dos Estados, Distrito Federal ou Município e de 60%, caso perceba os proventos da União.

Tal medida legislativa acabou por originar todo esse celeuma jurídico acerca da inobservância do direito adquirido no quando da taxação dos inativos, surpreendendo e indignando os juristas dos mais gabaritados àqueles que estão antenados com os acontecimentos da ordem do dia da sociedade brasileira, acabando, por fim, por fazer arrepiar fortemente aqueles destinatários diretos de tamanho abuso desde então institucionalizado.

O aspecto argumentativo mais relevante em desfavor da aprovação da referida emenda certamente é aquele que discorre acerca da patente agressão ao artigo constitucional de número 60, em seu parágrafo quarto, inciso IV, onde se lê que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”, bem como ao artigo 5º, inciso XXXVI onde “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

Tanto é que se chegou ao fato de se propor uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, tendo como parte autora a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e como parte Ré o Congresso Nacional, argüindo-se a inconstitucionalidade do art. 4º da Emenda Constitucional de nº. 41.

Além dos fundamentos acima mencionados, conforme se depreende do relatório adotado pela Ministra Ellen Gracie, a Requerente abordou a questão da não aplicabilidade dos aspectos da contributividade e/ou da solidariedade, pois o regime previdenciário ao qual estavam submetidos época em se aposentaram ou poderiam se aposentar não possui tais caracteres. Seria a consecução de um ato jurídico perfeito, jamais se podendo permitir a retroação de efeitos posteriores àquele ato perfeitamente constituído, conforme as regras então vigentes.Alegou ainda que a emenda acaba por ofender o princípio da isonomia tributária por impor um tratamento diferenciado entre aqueles que se aposentarem após a entrada em vigor da referida emenda, pois contribuirão apenas sobre o valor que excedesse R$ 2.400,00 e, em contrapartida, os já aposentados que deverão teoricamente contribuir sobre o que superar apenas 60% de tal valor, se servidor inativo da União, e de 50% se servidor aposentado dos Estados, Dist