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A Emenda Constitucional nº 45/2004

1. INTRODUÇÃO

2. O INSTITUTO DA SUMULA VINCULANTE E OS PRINCÍPIOS DO PROCESSO CIVIL NA CF/88

3. A SUMULA VINCULANTE E A INDEPENDÊNCIA DO JUIZ

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. INTRODUÇÃO

A importância da discussão sobre a súmula vinculante atualiza-se frente à promulgação no dia 08 de dezembro de 2004 da Emenda Constitucional nº 45, que acrescentou, dentre outras mudanças, ao Capítulo III (Do Poder Judiciário), Seção II (Do Supremo Tribunal Federal) da Constituição Federal o artigo 103-A. Diz o Art. 103-A:

O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

Trata-se a súmula vinculante de uma entre outras propostas que visam à chamada Reforma do Poder Judiciário, marcado nos últimos anos por uma crise institucional generalizada, especialmente pela ineficiência do sistema, o que não permite a entrega de uma solução jurisdicional célere e justa para a coletividade.

2. O INSTITUTO DA SUMULA VINCULANTE E OS PRINCÍPIOS DO PROCESSO CIVIL NA CF/88

O efeito vinculante das súmulas editadas pelo Supremo Tribunal Federal nos leva a uma reflexão sobre a sua compatibilização com o sistema posto na nossa Constituição Federal. Será possível uma convivência pacífica entre o instituto da súmula vinculante, tal como foi introduzido na CF/88, com os consagrados dispositivos constitucionais relativos ao processo civil, especialmente aqueles insculpidos no artigo 5º?

Sabemos que a Constituição representa um conjunto harmônico e sistêmico de normas e princípios que servem de base para a estruturação das regras que regulam toda a sociedade, além de definir toda a organização político-administrativa do Estado.

Nesse sentido, torna-se interessante analisar o conceito ideal de constituição, consagrado com a vitória do movimento constitucional do século XIX. Como bem leciona Canotilho (1993, apud MORAES, 2001, p. 34):

este conceito ideal identifica-se fundamentalmente com os postulados políticos-liberais, considerando-os como elementos materiais caracterizadores e distintivos os seguintes: (a) a constituição deve consagrar um sistema de garantias da liberdade (esta essencialmente concebida no sentido do reconhecimento de direitos individuais e da participação dos cidadãos nos actos do poder legislativo através do parlamento); (b) a constituição contém o princípio da divisão de poderes, no sentido de garantia orgânica contra os abusos dos poderes estaduais; (c) a constituição deve ser escrita (documento escrito).

Quanto aos princípios, estes são considerados as regras fundamentais e informadoras de todo um sistema de normas, ou seja, funcionam como as diretrizes básicas do ordenamento jurídico nacional. Por isso, o desrespeito a um princípio constitucional é muito grave.

Conforme leciona Reale (1998, p. 307):

A nosso ver, princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, […]. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática. […] Alguns deles se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força de lei, com a estrutura de modelos jurídicos, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe a nossa Constituição sobre os princípios de isonomia (igualdade de todos perante a lei), de irretroatividade da lei para proteção dos direitos adquiridos etc. (grifo do autor).

Nesse sentido, pertinente a lembrança que Mello (apud PINHO, 2002, v. 17, p. 57), faz:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade… representa insurgência contra todo o sistema, subversão de valores fundamentais […].

A nossa vigente Constituição sempre foi lembrada e rotulada, merecidamente, com o título de constituição cidadã. Devemos ter sempre em mente que a conquista dos direitos e garantias constitucionais foi fruto de uma longa e sofrida “guerra”, especialmente as incluídas no título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), com destaque para o tão festejado artigo 5º da nossa Carta Magna. É da leitura e interpretação desse dispositivo que, efetivamente, constatamos a preocupação do constituinte com o pleno exercício da cidadania, uma vez que põe a disposição do cidadão um sistema normativo e, principalmente, principiológico, imprescindíveis às relações sociais que são travadas cotidianamente.

Foram anos de batalhas para vermos os nossos direitos de cidadãos, finalmente, prestigiados e inseridos no rol dos direitos e garantias fundamentais. Foi um verdadeiro avanço para a democracia, após anos e anos de ditadura militar.

Sobre o assunto, comenta o autor Silva (1998, p. 74):

Não se pode jogar no esquecimento o fato de que o alentado rol de prerrogativas de cidadania insculpidas no pré-citado artigo quinto, resultou de anos e anos de desrespeito a uma soma de direitos da pessoa humana, com a abertura democrática que se deu após os assim chamados anos de chumbo, o que autoriza a dizer, e não seria desarrazoado, que o artigo quinto é, de fato e deveras, o mais bem elaborado da constituição vigente. Ali estão as verdadeiras cláusulas pétreas.

É extremamente importante o estabelecimento destes direitos e garantias no rol constitucional, pois tem a finalidade de estabelecer limites ao poder político no sentido de serem reconhecidos e garantidos pelo legislador infraconstitucional.

Assim, os direitos fundamentais cumprem, segundo a lição de Canotilho (1993, p. 541, apud MORAES, 2001, p. 56),

a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).

Mas, infelizmente não foi suficiente essa consagração constitucional de direitos e garantias do cidadão. Promulgada em 1988, esse estatuto jurídico fundamental tem sido alvo, nos últimos anos de verdadeiros atentados.

São diversas as situações em que o desrespeito a essa lei maior é a tônica. Reservamo-nos o direito de não exemplificar todos os desrespeitos, pois se assim o fizéssemos, escreveríamos uma “bíblia” de maus exemplos. E essa não é a nossa proposta. Mas, permitam-nos apenas um exemplo do que acima foi dito, pela forma covarde e absurda com que se deu. No ano de 2004, os Senhores Ministros do STF no julgamento da ADIn nº 3105-8/2003, por maioria de votos, decidiram pela constitucionalidade da cobrança previdenciária dos servidores inativos. A fundamentação dessa decisão residiu, principalmente, na figura da odiosa “governabilidade”, esse monstro criado pelos economistas de plantão. O direito adquirido do aposentado em não contribuir para a Previdência foi relativizado pela ineficiência do Poder Público de gerir, com probidade e controle, a Instituição Previdenciária. Foi uma demonstração inequívoca da influência exercida pelo Poder Público sobre a Suprema Corte.

Apresentada para o povo brasileiro como a fórmula mágica para a morosidade do Poder Judiciário, eis que surge a súmula vinculante, mais um instrumento político e perigoso que, certamente, atenderá aos interesses do Poder Público.

Numa análise do efeito vinculante das súmulas editadas pelo STT, temos que questionar a sua validade e eficácia diante dos outros dispositivos constitucionais, merecendo destaque, nesse particular, os princípios processuais insculpidos no nosso texto constitucional. Não vislumbramos uma convivência pacífica da súmula vinculante com os princípios processuais consagrados constitucionalmente, pois entendemos que estes são agredidos pelo efeito vinculante dessas decisões. Se não, vejamos:

Segundo o art. 5º, n. II, da CF, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. É o princípio da legalidade consagrado constitucionalmente, tendo um alcance sobre todos.

Do enunciado constitucional, verificamos que a obrigatoriedade contida na súmula vinculante no sentido dos juízes de instâncias inferiores seguirem as decisões pacificadas da Excelsa Corte deve ser mitigada. A CF consagra o princípio da legalidade como uma verdadeira garantia de cidadania. Não podemos identificar a súmula vinculante como um comando legal, abstrato, impessoal e cogente, atributos de qualquer lei, pois ao Poder Judiciário não é atribuída competência, via de regra, para legislar. A própria CF, no seu art. 102, caput, define a competência do STF, não lhe sendo outorgado direito para legislar sobre qualquer matéria.

Assim leciona o autor Silva (1998, p. 74) sobre essa questão:

Admitindo-se que instalada venha a ser a súmula de efeito vinculante tal como proposta, como se enfrentará, por exemplo, a prerrogativa de cidadania segundo a qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Admitindo-se que se esteja a exigir obediência à súmula, teria ela se convolado em lei? Neste caso se teria invadido o território do legislador e juiz não é legislador. De se trazer à baila, exatamente, a questão dos prejulgados da Justiça do Trabalho que o próprio Supremo Tribunal admitiu como invasores do território de competência do poder legislativo.

Conforme preceitua o art. 5º, n. XXXV, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O dispositivo constitucional ora transcrito evidencia o princípio do direito de ação que qualquer cidadão tem. Ele atinge, não só os legisladores, mas a todos indistintamente. O ponto central desse princípio reside no fato de que ninguém pode impedir o acesso em juízo de qualquer pretensão do cidadão.

Convém registrar o posicionamento sempre pertinente do autor Nery Júnior (2000, v. 21, p. 98) a respeito da questão:

O direito de ação é um direito público subjetivo exercitável até mesmo contra o Estado, que não pode recusar-se a prestar a tutela jurisdicional. O Estado-juiz não está obrigado, no entanto, a decidir em favor do autor, devendo, isto sim, aplicar o direito ao caso que lhe foi trazido pelo particular. O dever do magistrado fazer atuar a jurisdição é de tal modo rigoroso que sua omissão configura causa de responsabilidade judicial.

Entendemos que a adoção da súmula vinculante representa, pelo menos, um entrave ao exercício pleno desse princípio. O cidadão, diante de determinada situação que lhe retira um direito pela obrigatoriedade de julgamento conforme a súmula, não terá, sequer, a possibilidade de discutir a matéria, pois estaria esta alcançada pelos “tentáculos do polvo”, ou seja, pelo efeito vinculante da decisão.

Mesmo que o direito de ação lhe seja assegurado, a vinculação apresenta-se como um instrumento limitador para a plena discussão da matéria, pois não terá o cidadão a possibilidade do contraditório e da ampla defesa, direitos consagrados no art. 5º, n. LV, que disciplina: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Assim, esse princípio constitucional guarda uma relação de afinidade com o direito de ação e com o princípio da igualdade. Será extremamente complicado para o cidadão exercer o contraditório e a ampla defesa diante de um processo em que o objeto da decisão já tenha sido alvo de sumulação por parte do STF. Ele enfrentará, por certo, uma mitigação desse direito constitucional, pois o juiz seguirá, em tese, a decisão da Suprema Corte.

Sabemos, também, que a “coisa julgada”, consagrada no art. 5º, inciso XXXVI da CF/88 só produz efeitos para as partes envolvidas na relação processual. Como ficará o direito constitucional do cidadão não litigante, que não terá a oportunidade de, sequer, discutir o fato diante da matéria sumulada? Será que aquela decisão não estaria extrapolando os limites da coisa julgada? O nosso país já viveu, infelizmente, episódio histórico de desrespeito aos direitos consagrados constitucionalmente. Nesse sentido, oportuna a lição de Nery Júnior (2000, v. 21, p. 95) sobre a matéria:

Em passado recente tivemos episódio histórico que envergonhou o direito brasileiro, a exemplo do que ocorreu no sistema jurídico dos estados totalitários da primeira metade deste século, que, que proibiam o acesso à justiça por questões raciais. Trata-se da edição do Ato Institucional 5/68, de 13.12.1968, outorgado pelo Presidente da República – que para tanto não tinha legitimidade -, que, em seu art. 11, dizia: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”.

É óbvio que não é nossa intenção fazer comparações entre a situação ora transcrita com o instituto ora analisado. Os momentos em que foram postas tais situações são totalmente distintos. O AI-5 foi um instrumento colocado em prática pelo poder público em plena ditadura militar. Hoje, diferentemente, vivemos uma era de democracia em franco desenvolvimento. Graças a Deus! Mas, é sempre bom ficar atento às tentativas de estabelecimentos de ideologias contrárias ao salutar pluralismo de opiniões e idéias. Uma verdadeira democracia só pode ser concebida com a discussão permanente sobre temas que afligem toda a sociedade, sobretudo os jurídicos. Não devemos aceitar uma só tendência. E é essa força ideológica (política) perpetrada pelo Estado, contida nesse instituto, que invade o campo jurídico de forma inaceitável. É nesse aspecto que reside a nossa preocupação.

3. A SUMULA VINCULANTE E A INDEPENDÊNCIA DO JUIZ

Sabemos das dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário no que tange ao volume significativo de processos que tramitam nos Tribunais Superiores, especialmente no STF, onde boa parte dos recursos que lá chegam tem como parte o Poder Público, especialmente processos nas áreas previdenciária, tributária e administrativa.

Muitos dos que apoiaram a inclusão do instituto no nosso ordenamento jurídico estão entre os membros da magistratura nacional. Sem qualquer análise fática, e levando-se em conta tão somente o objeto da ação, vários processos serão prontamente impulsionados e julgados de acordo com a súmula vinculante. É uma economia processual aparente – não esqueçamos da possibilidade da reclamação diretamente ao STF. O grande problema é compatibilizar tal situação com o princípio da independência do juiz no exercício de suas funções, consagrado no art. 93, IX da CF/88.

O autor Silva (1998, p. 81) nos traz dados de uma pesquisa realizada pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) sobre a questão do efeito vinculante das súmulas: Pesquisa realizada pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, com 3.927 juízes de todo o país, a pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, revela que 65%dos entrevistados consideram que a obrigatoriedade de aplicação das súmulas daria maior velocidade e maior racionalização à Justiça, enquanto 70% entendem que ela afetaria a independência dos juízes. Perguntados se consideram que o juiz deve ser independente no exercício de suas funções, não se limitando a interpretar as decisões dos tribunais superiores, 80%responderam afirmativamente (Caderno do Senado, p.7). O então presidente da AMB, desembargador Paulo Medina, do Tribunal de Justiça do Estado e Minas Gerais, informou em exposição feita no âmbito do Senado Federal que a Associação revira sua posição inicial, passando a defender o efeito vinculante.

Dois aspectos da pesquisa realizada pelo IUPERJ merecem uma análise mais incisiva: o primeiro diz respeito ao posicionamento dos magistrados (80%) que consideram importante a independência no exercício de suas funções, não se limitando a mera aplicação das decisões dos tribunais superiores. E o segundo é o percentual significativo dos juízes que entendem (65%) ser a súmula vinculante um instrumento capaz de acabar com a morosidade do Poder Judiciário. Entendemos que há nesses dois aspectos uma situação um tanto quanto paradoxal, pois os próprios juízes revelam que a aplicação “cega” das decisões sumuladas afetam a sua independência. As informações contidas na pesquisa permitem-nos chegar a uma conclusão preocupante: a adoção da súmula vinculante diminuirá, por certo, o trabalho dos magistrados, notadamente os de primeira instância, uma vez que serão “obrigados” a julgar de acordo com a súmula, mesmo que princípios essenciais ao exercício eficaz da magistratura, como a independência do juiz, venha a ser aniquilado.

Como ficarão os juízes que, partindo da análise do fato que lhe foi posto, proferirem decisões dotadas de uma prestação jurisdicional efetivamente justa, mas que vão de encontro ao comando do efeito vinculante? Adverte Gomes (1997, p. 218) se o juiz poderá ser responsabilizado no caso de recusa à súmula: “[…] estamos nos referindo ao crime de hermenêutica, que é expressão criada por Rui Barbosa?” […] Ainda que admitamos que a adoção deste instituto traga agilidade às decisões judiciais, como compatibilizar tal instituto com a liberdade de julgar dos juízes, consagrada constitucionalmente? Será que a sociedade necessita, tão somente, de uma justiça célere? Temos a certeza que não. Da forma como foi introduzida no nosso ordenamento jurídico, acreditamos que a súmula vinculante afetará frontalmente a liberdade de julgar dos juízes e tribunais, liberdade esta essencial à atividade dos magistrados.

Observem o depoimento do saudoso mestre Evandro Lins e Silva sobre essa questão:

[…] a súmula com efeito vinculante absoluto para os juízes de primeira instância significa a introdução em nosso sistema jurídico de um sucedâneo da lei, que produzirá a superposição ou conflito de atribuições entre os Poderes Legislativo e Judiciário. A segunda garantia constitucional afrontada pela súmulas vinculantes é a liberdade de poder de todos os magistrados de decidir litígios segundo a lei e de acordo com o seu convencimento pessoal. (LINS E SILVA, 1995, apud SILVA, 1998, p. 83).

Sobre a inconstitucionalidade da súmula vinculante, Gomes (1997, p. 202) assim se manifesta:

A inconstitucionalidade da súmula vinculante é evidente. Toda interpretação, dada por um Tribunal a uma lei ordinária, por mais sábia que seja, jamais pode vincular os juízes das instâncias inferiores, que devem julgar com absoluta e total independência. A súmula vinculante viola a independência interna (dentro da e frente à própria instituição a que pertence).

Por fim, convém registrar o que diz a nossa CF, em seu art. 93, IX, sobre o consagrado princípio da independência dos magistrados, conhecido, também, como o princípio da motivação das decisões judiciais:

Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (grifamos).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do modo que foi projetada e introduzida na CF/88, a súmula vinculante afetará diversos princípios processuais insculpidos na nossa Carta Magna, especialmente o da independência do magistrado, pois a ele não será dado o direito de interpretar a lei e julgar, “motivadamente”, de acordo com o seu livre convencimento. Sabemos que toda norma jurídica precisa ser interpretada diariamente de acordo com as transformações que ocorrem numa determinada sociedade. Assim, a releitura de uma dada norma jurídica é fator de socialização. Uma única interpretação como propõe o instituto representa uma imobilização do direito, uma imutabilidade interpretativa da norma, o que afeta diretamente a liberdade que têm os tribunais e juízes de interpretar e julgar.

Vejam o que diz Nery Júnior (2000, v. 21, p. 175) sobre o tema:

A motivação da sentença pode ser analisada por vários aspectos, que vão desde a necessidade de comunicação judicial, exercício de lógica e atividade intelectual do juiz […], até sua submissão, como ato processual, ao estado de direito e ás garantias constitucionais estampadas no art. 5º, CF, trazendo conseqüentemente a exigência da imparcialidade do juiz, a publicidade das decisões judiciais, a legalidade da mesma decisão, […], passando pelo princípio constitucional da independência jurídica do magistrado, que pode decidir de acordo com sua livre convicção, desde que motive as razões de seu convencimento (princípio do livre convencimento motivado).

A lei, por mais clara que seja, necessita ser interpretada sempre. Aliás, quando se diz que uma certa norma jurídica é “clara e óbvia”, já estamos atribuindo um juízo interpretativo a ela. Por certo, a instituição da súmula vinculante consistirá num afronto a este princípio. Aqueles que adotarão cegamente o instituto, certamente, esvaziarão as prateleiras dos fóruns “agilizando” o andamento dos processos. Numa análise prática, verificaremos decisões do tipo: “acolho a pretensão do autor diante do enunciado da súmula tal”, ou então, “julgo improcedente o pedido em razão da súmula dispor no sentido contrário à pretensão”. Mesmo que se diga que o juiz deverá examinar e, ao final, decidir se a nova ação coaduna-se substancialmente com o objeto da súmula, é inegável a falta de estrutura (desde a falta de pessoal até o seu devido preparo) do Poder Judiciário. Estamos na era da informática, e a dita “economia processual” insculpida na súmula vinculante parece casar-se perfeitamente com a perigosa prática do “copiar e colar”, presente no cotidiano dos fóruns. Seria desnecessário exemplificarmos as diversas situações em que a utilização desse instrumento representou um verdadeiro desastre às demandas jurídicas. Entendemos que a celeridade processual desvinculada da segurança jurídica não representa muita coisa para o cidadão.

Por último, acreditamos que o Estado tem que demonstrar vontade política para mudar o quadro catastrófico que se encontra o Poder Judiciário. Mas, não devem ser adotadas medidas paliativas e superficiais que não atacam os seus problemas crônicos. Nesse sentido, filiamo-nos aos que são contrários ao efeito vinculante das decisões prolatadas pelo STF, por entendermos que este instituto não ataca, sequer reflexamente, as verdadeiras causas dos problemas que afligem o Poder Judiciário. Concordamos que é salutar e importante para a sociedade e para o direito a uniformização de uma tendência interpretativa de uma dada norma ou lei. Ela tem que ter um caráter orientador, referencial, desprovido da obrigatoriedade, da vinculação, pois isso é autoritarismo.