1. Intróito. 2. O Esgotamento da Esfera Esportiva como requisito ao ingresso no Judiciário. 3. As punições pelo não cumprimento do requisito. 4. Conclusão
1 – INTRÓITO
Hodiernamente, muito se tem debatido acerca do ajuizamento de ações referentes ao Campeonato Brasileiro de Futebol, na Justiça Comum, e na justiça desportiva, seja em função dos consectários da hecatombe provocada pelo criminoso confesso, Edílson Pereira de Carvalho, seja por questões ínsitas à disciplina desportiva.
Todavia, não obstante haver dispositivo expresso quanto a matéria – na Carta Magna, na Lei especial sobre o desporto, e no Código ao qual se submete o Superior Tribunal de Justiça Desportiva – dúvidas sobre ela ainda pairam, dando azo à modesta elucidação que ora se propõe.
2 – O ESGOTAMENTO DA ESFERA DESPORTIVA COMO REQUISITO AO INGRESSO NO JUDICIÁRIO
A Constituição da República determina, em seu artigo 217, que as questões inerentes à disciplina esportiva, na Justiça Comum, somente serão admitidas após o esgotamento da esfera judicial desportiva, que, à exegese do texto legal, refere-se ao STJD – Superior Tribunal de Justiça Desportiva – do Futebol (a especificação do esporte justifica-se pela existência de diversos, não menos importantes, mas menos conhecidos, tribunais superiores, como o do ciclismo, do judô, e do basquete, entre outros). Trazemos à baila o Texto Constitucional, com destaque aos parágrafos §§1º e 2º, do artigo:
“Capítulo III – Da educação, da Cultura e do Desporto – Seção III Do Desporto.
Art. 217 – É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I. a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;
II. a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para o desporto de alto rendimento;
III. o tratamento diferenciado para o desporto profissional enão-profissional;
IV. a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criaçãonacional.
§ 1°. O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e àscompetições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
§.2°. A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.§ 3°. O Poder Público incentivará o lazer como forma de promoção social.
O jus puniendi é prerrogativa inerente ao Estado, que, através do artigo suso esposado, transfere à justiça desportiva a competência para dirimir as lides concernentes à disciplina, e às competições esportivas.
Da leitura dos dispositivos citados, tem-se que o esgotamento da justiça desportiva – sendo que esta possui prazo de até 60 (sessenta) dias para proferir decisão – é requisito sine qua non para o ingresso legítimo na Justiça Comum, sob pena de, não cumprido, incorrer o demandante na hipótese de extinção do feito sem julgamento do mérito, por carência de ação, com fincas no artigo 267, VI, do Código de Processo Civil.
Por esgotamento da justiça desportiva, hermeneuticamente, deve-se entender não só o decurso do interregno de tempo mencionado, mas também a ausência de outros recursos a serem apreciados pelo colegiado.
Destarte, caso o não cabimento de outros recursos, na seara desportiva, ocorra antes do termo legal estabelecido, viabilizada estará a apreciação da questão pelo Judiciário, eis que cumprido o requisito legal.
Como adendo, urge ressaltar, ainda, que os tribunais da justiça desportiva – Comissões Disciplinares, Tribunais Desportivos estaduais, e STJD – não são órgãos do Poder Judiciário, eis que ausentes do taxativo rol do artigo 92, e seguintes, da Lei Maior.
Outrossim, não há que se falar em tolhimento ao acesso ao Judiciário, mormente ao artigo 5º, XXXV, que dispõe que: “a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça de direito”.
O requisito estabelecido pela Carta Magna justifica-se pela maior celeridade da justiça desportiva em detrimento da Justiça Comum – tendo em vista o interregno de 60 (sessenta) dias outrora mencionado -, além da especificidade da matéria, mais afeita às peculiaridades das competições.
Seria, ad argumentandum, eivada de inconstitucionalidade qualquer disposição que vedasse o acesso ao Judiciário para dirimir conflitos, o que não ocorre na hipótese em testilha, em que apenas exige-se o cumprimento de um requisito, anterior, para o ingresso na Justiça Comum, que admitirá e julgará – a tempo e modo hábeis – a lide proposta.
Ademais, não irá fazer coisa julgada a decisão definitiva emanada da justiça desportiva, posto que a mesma poderá – o que fica ao alvedrio da parte interessada – ser apreciada pelo Judiciário, sem que para tanto esteja o douto magistrado adstrito ao que fora julgado. No mesmo diapasão, a Lei Geral Sobre o Desporto, ou Lei Pelé, no tocante ao tema, estabelece que:
“Art. 52. Os órgãos integrantes da Justiça Desportiva são autônomos e independentes das entidades de administração do desporto de cada sistema, compondo-se do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, funcionando junto às entidades nacionais de administração do desporto; dos Tribunais de Justiça Desportiva, funcionando junto às entidades regionais da administração do desporto, e das Comissões Disciplinares, com competência para processar e julgar as questões previstas nos Códigos de Justiça Desportiva, sempre assegurados a ampla defesa e o contraditório. (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 14.7.2000)§ 1o Sem prejuízo do disposto neste artigo, as decisões finais dos Tribunais de Justiça Desportiva são impugnáveis nos termos gerais do direito, respeitados os pressupostos processuais estabelecidos nos §§ 1º e 2º do art. 217 da Constituição Federal.§ 2o O recurso ao Poder Judiciário não prejudicará os efeitos desportivos validamente produzidos em conseqüência da decisão proferida pelos Tribunais de Justiça Desportiva.”
Com relação ao artigo alhures, mister se faz aduzir que não pode haver recurso da decisão prolatada na justiça desportiva, diretamente, para o Judiciário, o que caracteriza irretorquível supressão de instância, e de competência, não admitida em nosso ordenamento.
No que tange ao parágrafo derradeiro do dispositivo da Lei 9.615/98, inexistirá influência o mero ajuizamento da ação, na Justiça Comum, nos efeitos da decisão proferida na seara desportiva. Essa independência funcional, consoante alguns doutrinadores, é a chamada “coisa julgada desportiva”, que não se confunde com a coisa julgada material, tampouco a formal, o que não impedirá, como ressaltado alhures, a análise do julgado pelo juízo a quo.
3 – AS PUNIÇÕES PELO NÃO CUMPRIMENTO DO REQUISITO
Por se tratar de requisito de admissibilidade, por axiomático, o não cumprimento do mesmo implicará sanção, o que exatamente obtempera o CBJD – Código Brasileiro de Justiça Desportiva, senão vejamos.
“Artigo 231 – Pleitear, antes de esgotadas todas as instâncias da Justiça Desportiva, matéria referente à disciplina e competições perante o Poder Judiciário, ou beneficiar-se de medidas obtidas pelos mesmos meios por terceiros.
Pena: exclusão do campeonato ou torneio que estiver disputando e multa de R$ 50.000,00 a R$ 500.000,00.”
Pela redação do artigo, depreende-se que, tanto a entidade máxima que rege o futebol, a CBF – Confederação Brasileiro de Futebol – , bem como o STJD, têm a prerrogativa de punir a equipe de prática desportiva, caso esta não atenda ao requisito constitucional de esgotamento da esfera desportiva, para – frisa-se – questões ínsitas à disciplina desportiva.
Tal previsão de sanção, proveniente da infração ao caput do artigo, já operou, na prática, em 1999, o que será trazido à guisa de exemplificação. A equipe do Gama-DF obteve liminar na Justiça Comum, que lhe assegurava a permanência na primeira divisão do futebol brasileiro, malgrado ter sido rebaixada pela CBF, no campeonato nacional da primeira divisão. Frisa-se que o clube não esgotou a esfera desportiva para ingressar no Judiciário. Assim, foi o clube punido pela CBF, que o suspendeu de todas as competições nacionais, exatamente por ter tratado de assuntos ínsitos à disciplina desportiva, sem que, para tanto, tenha esgotado a esfera desportiva, como determina a Constituição da República. Após meses de batalha judicial, o caso foi contornado, politicamente, e a sanção foi revogada.
A previsão in fine do artigo – beneficiar-se de medidas obtidas pelos mesmos meios por terceiros – deve ser analisada de forma mitigada. Caso fique caracterizado que o clube utilizou-se de terceiro para lograr êxito em seu favor, a punição deverá ser aplicada, ante a tentativa vil de ludibriar a Justiça. Todavia, mister se faz, conforme dito, uma análise detida do fato, sob pena de ceifar o indivíduo de exercer seu direto de ação, preconizado pela Carta Magna, e, sendo legítimo pra questionar sua eventual lesão/ameaça de direto, não deve lhe ser aplicada a errônea tutela jurisdicional.
4 – CONCLUSÃO
Posto isso, resta cristalina a sinergia do Poder Judiciário face à justiça desportiva, e, ante à expressa disposição do artigo 217, da CR/88, corroborado pela Lei Pelé, que rege o desporto nacional, e pelo CBJD, ao qual se submete o STJD, devem as equipes de prática desportiva ao determinado se submeterem, sob pena de prejuízo irreparável ao futuro da instituição, e, mormente, de seus fiéis torcedores.