Os problemas enfrentados pela gestante de feto anencéfalo devem ser analisados sob a ótica de normas constitucionais, de modo que se entenda a necessidade do reconhecimento da faculdade que esta deve ter quanto à Antecipação Terapêutica do Parto.
Diante da assertiva acerca da inexistência vital em feto anencefálico cabe, neste momento, fazer uma análise a respeito da Antecipação Terapêutica do Parto, enquanto ato que deve, necessariamente, ser conferido à mulher, no sentido de que esta possa exercê-lo facultativamente.
Para se chegar ao entendimento de que há, na Antecipação Terapêutica do Parto, um direito facultativo da mulher, é importante tecer-se algumas considerações sobre as concepções deste termo, além dos problemas psicológicos e sócio-jurídicos causados à gestante desde tomar conhecimento da anomalia até a decisão da antecipação do parto, que, de qualquer forma, atinge a dignidade da pessoa humana da mulher, sua autonomia e liberdade de prover seu próprio corpo.
3.1 Algumas considerações sobre o termo
Tem-se observado, quanto à denominação do ato interruptivo da gestação de feto anencefálico, que o termo mais utilizado é antecipação terapêutica do parto. Nota-se, porém que os mesmos autores que se posicionam em prol da interrupção tratam-na, por vezes, como “aborto por anomalia fetal incompatível com a vida”, como Débora Diniz e Diaulas Costa . Mesmo utilizando-se do termo “aborto”, não é intenção dos referidos autores conferir ao ato um caráter abortivo típico penal, já que, em continuidade à denominação do ato, asseguram haver uma incompatibilidade vital, o que descaracteriza a tipicidade do crime.
Percebe-se que à antecipação gestacional é atribuída a palavra aborto, mas apenas no sentido comum da língua portuguesa de “ação ou efeito de abortar algo” que segue, sendo este “algo” apenas a gestação e não uma vida humana. É o que Débora Diniz levanta ao afirmar que “se o que fundamentaria a proibição do aborto seria o princípio de proteção à vida, este princípio não estaria sendo violado com a autorização do aborto de um feto anencefálico, uma vez que a anencefalia é uma má-formação que impede a sobrevida.”
Pode-se notar que a autora faz referência ao fato de que interromper a gestação do anencéfalo não fere a proibição do aborto, por demonstrar a ausência do aspecto principal deste crime, a proteção à vida fetal, afastando, desta forma, o ilícito penal.
Observa-se, no decorrer do trabalho desta autora, a presença de debates sobre as denominações aplicadas: aborto de feto anencefálico e antecipação terapêutica do parto. Verifica-se que são tratados de forma semelhante, mas acreditando haver realmente uma interferência gestacional, no entanto, não motivadora de qualquer inviabilidade de prolongação vital, visto que este caráter inviável é, comprovadamente, inerente à anomalia congênita. Apesar de utilizar as denominações como semelhantes, Débora Diniz atenta para o fato de uma provável confusão de termos, o que levaria a uma utilização errônea de argumentos morais que são associados ao aborto voluntário para o caso do aborto por anomalia fetal. São situações completamente diferentes que podem vir a ser tratadas como iguais, o que leva ao entendimento de que melhor seria a adoção do termo “Antecipação Terapêutica do Parto” para que findassem as confusões de nomenclatura: “O pressuposto da vida e a atribuição do status de pessoa aos fetos são argumentos que dão sustentação à oposição à prática do aborto, e, mesmo para aqueles que consideram esses valores válidos para todas as pessoas, estas são duas premissas ineficazes para as situações de aborto por anomalia fetal incompatível com a vida. A impossibilidade de recorrer ao debate sobre a moralidade do aborto e de aplicá-lo às situações de aborto por anomalia fetal incompatível com a vida deve-se ao fato de que transpor os argumentos que servem de base para a tese da imoralidade do aborto voluntário para as situações de anomalia fetal grave significa aproximar duas situações muito diferentes. Neste sentido, o mais correto seria denominar as situações de aborto por anomalia fetal incompatível com a vida extra-uterina de antecipação terapêutica do parto.”
Entende a autora ser mais adequado o uso do termo cuja nomenclatura não se aproxima do típico crime penal, já que nem mesmo os argumentos morais ligados ao aborto voluntário podem ser levados em consideração quando estiver em pauta a questão do anencéfalo. Não há o bem relevante vida para justificar qualquer discussão moral e sim uma má-formação irreversível e casual.
Pode-se verificar um risco evidente na atribuição de prática imoral do aborto ao caso da interrupção de gestação de feto anencéfalo, caso não seja traçada uma diferenciação efetiva e concreta entre os atos. No primeiro, típico penal, há ofensa ao bem jurídico vida, existente em feto proveniente de gravidez saudável; no segundo, há antecipação do fim de uma gestação de feto incompatível com a vida, não havendo bem jurídico penal a ser violado, mas uma má-formação casual e irreversível.
Ocupa-se ainda Débora Diniz, no intuito de explicar a casualidade da ocorrência da má-formação, de demonstrar a existência de uma segurança clínica a respeito do diagnóstico da anencefalia, da incompatibilidade vital e necessidade da interrupção, apresentando tamanha convicção a respeito da letalidade desta anomalia que aponta a sua “certeza do diagnóstico da má-formação fetal incompatível com a vida, e diante da inexistência de qualquer terapia capaz de reverter o quadro clínico, a antecipação terapêutica é a alternativa mais digna para aliviar o sofrimento dos futuros pais. O acaso é o único responsável pela má-formação fetal.”
Pode-se perceber o quanto esta autora tem conhecimento da gravidade da anomalia quando apresenta a alternativa que entende ser a mais digna após as tentativas de exaurimento do sofrimento, e após a determinação precisa da má-formação fetal. Verifica-se o cuidado da análise feita a respeito desta situação irreversível, haja vista que a intervenção médica não modifica a realidade do ser malformado. Diante deste caso, não há outra decisão, mesmo com os avanços da ciência, a não ser antecipar a expulsão do feto humanamente não-vivo, ou se vivo, apenas no que tange ao aspecto biológico.
Quanto ao aspecto terapêutico da referida antecipação, este é atribuído com o objetivo de evidenciar uma idéia de apoio à saúde da mulher, o que termina por salvaguardar, também, a integridade emocional dos entes próximos que a acompanham. Ao definir a antecipação do parto Débora Diniz explica o sentido da terapia no ato: “A antecipação terapêutica do parto é um procedimento médico que antecipa o parto, uma vez diagnosticada a inviabilidade fetal. As razões para a antecipação do parto devem ser entendidas em um sentido terapêutico amplo que inclui desde o bem-estar psicológico, a estabilidade afetiva dos futuros pais, a coesão familiar até a integridade física da mulher grávida.”
Nota-se que o término desta gestação antes do tempo comum apenas tem o propósito de resguardar a mulher frente à continuidade dos problemas inerentes à situação vivida: ser gestante de feto anencéfalo, em razão da a inviabilidade fetal, que culmina em fatal morte biológica.
3.2 Problemas enfrentados pela mulher que decide ou pretende antecipar o parto de feto anencéfalo
Para tratar da antecipação terapêutica do parto envolvendo o feto anencefálico, a mulher se depara com inúmeros problemas para exercer a sua faculdade de decisão sobre a antecipação, sendo eles de ordem interna, os psicológicos e externa, os sócio-jurídicos. As de ordem interna envolvem aspectos de natureza subjetiva ou psicológica sendo eles expectativa, ansiedade, tristeza, frustração, angústia, sentimento de culpa e depressão, enquanto que nos aspectos externos relacionados ao sócio-jurídico encontram-se questões relativas à criminalização sofrida pela mulher, a exposição do seu problema no judiciário e o risco de se tornar refém da moralidade de promotores e juízes.
Trazer para a análise as dificuldades que a mulher enfrenta na antecipação terapêutica do parto nos aspectos abordados não é uma tarefa fácil, já que, em alguns momentos, um destes aspectos elencados estão relacionados ou contribuindo um com o outro, como por exemplo, quando os aspectos sócio-jurídicos contribuem para que os psicológicos aflorem. Então, tratar destes aspectos separadamente neste trabalho será apenas para um efeito didático.
3.2.1 Aspectos internos ou psicológicos
Os aspectos de ordem interna sofridos pela gestante de feto anencéfalo são complexos e fundamentados em áreas não tratadas no curso de Direito, motivo pelo qual não será feito aqui um aprofundamento na questão, de modo que serão trazidas algumas considerações importantes da Psicologia.
Cumpre esclarecer que a respeito destes aspectos de ordem psicológica será feita uma análise tomando como referência quatro situações, sendo elas: a expectativa durante o início da gravidez, que envolve a ansiedade e alegria de ser mãe, a tomada de conhecimento a respeito da má-formação, uma das fases mais graves por acarretar em frustração, tristeza, angústia e agravamento da ansiedade, o momento em que a mulher deseja interromper a gestação, quando há presença de sentimento de culpa e o sofrimento vivido por esta quando é obrigada a permanecer com a gestação até a ocorrência da expulsão natural uterina, que acarreta geralmente em depressão puerperal. 3.2.1.1 Expectativa durante o início da gravidez
Maria Tereza Maldonado, discutindo os problemas psicossomáticos que envolvem a gravidez de um filho considerado normal, explica que as expectativas e anseios com relação às características do filho alteram significativamente os padrões do comportamento relacional na família . Nota-se a intenção da autora em demonstrar a ligação subjetiva que é formada entre o homem e a mulher em relação ao novo ser que geraram, com o objetivo de afirmar a existência de expectativas em relação a um contato futuro e efetivo com esta nova criança no sentido de mostrar o desejo do casal de realização da paternidade e maternidade.
Infere-se também que, nesta fase inicial de gestação, é criada na mulher uma expectativa em torno do exercício da maternidade e da chegada de uma criança, subentendendo-se esta como sendo saudável, experimentando, juntamente à sua família, um desejo quanto à chegada de um novo membro que irá compartilhar da união familiar.
Nesta fase de expectações também é verificada, na mulher, uma ansiedade, pelo que se pode entender da explicação de Maria Tereza Pereira Maldonado: “O fato de a gravidez constituir uma situação crítica, implicando naturalmente em maior vulnerabilidade e desorganização de padrões anteriores, em inúmeras modificações fisiológicas e em estados emocionais peculiares, justifica a presença normal de um certo grau de ansiedade.”
Percebe-se deste trecho o caráter especial que tem, para a mulher, a fase em que se encontra gestante, devido ao fato de estar mais sensível, vulnerável e emocionalmente abalada, visto que este dado momento constitui uma situação crítica. Assim, com todas estas alterações emocionais há, inevitavelmente, a presença da ansiedade, que, para a autora, significa “um estado transitório do organismo que varia de intensidade no decorrer do tempo.”
3.2.1.2 Tomada de conhecimento a respeito da má-formação
Raquel Soifer, ao estudar os aspectos psicológicos da mulher grávida de feto portador de má-formação congênita, faz uma abordagem a respeito da situação vivida pela mulher quando toma conhecimento da anomalia, entendendo haver a presença de frustração “de todos os desejos, devaneios e fantasias e, sobretudo, a impossibilidade de aplicar a capacidade maternal, produzem uma dor intolerável.”
Observa-se a associação que a autora faz entre a frustração e a conseqüente tristeza ou, como ela denomina, “dor intolerável”, pois afirma que não mais realizar a maternidade e os desejos associados a esta, causa uma frustração, decorrendo assim, a tristeza.
A tristeza, no caso abordado, é vista como algo que debilita a gestante que almejava e idealizava a realização da maternidade. A frustração por não mais poder experimentar aquilo que gerava expectativa é a principal causa da referida dor na mulher, a tristeza, por saber que aquele filho não se formou de modo salutar em seu útero.
Após a ciência da má-formação fetal a sensibilidade emocional da gestante leva a um sentimento de angústia, que segundo Christophe Dejours é uma “fonte de movimento e ação em busca da paz através de um desvio que passa pela realidade; eventualmente, é também o ponto de partida de um procedimento para pedir ajuda.”
A concepção de angústia apresentada pelo autor, torna-se clara pelo fato de esta ser geralmente vivida pela mulher após a tristeza proveniente da frustração da maternidade. Trata-se de alguém que, ao necessitar de amparo, externa sua agonia pretendendo, consciente e inconscientemente, mobilizar a si mesma e aqueles outros próximos, para escapar da situação em que se encontra.
Para Maria Tereza Pereira Maldonado, a ansiedade, ao tomar conhecimento da anomalia fetal, é mais intensa e capaz de gerar complicações obstétricas, afirmando que “quando a maternidade, por motivos vários, gera um grau de ansiedade mais intenso, há maior probabilidade de se observar complicações obstétricas na gravidez, no parto e no puerpério”.
Devido a evidente gravidade da anencefalia, pode-se enquadrar a situação da gestante do feto anômalo no que a autora cita como motivos geradores de ansiedade mais intensa. Assim, pode-se vislumbrar um efetivo aumento do grau da ansiedade comum a qualquer gravidez e a conseqüente probabilidade de ocorrência de complicações durante a gestação.
Também a respeito da ansiedade, Raquel Soifer explica que nos casos de: “más-formações fetais graves, morte real do feto dentro do útero, etc., são também percebidas pela mãe, que registra a respectiva noção de forma consciente, ou a reprime, ocorrendo neste caso uma subjacente aparição de acessos de ansiedade ou diversos sintomas.”
Constata-se nesta posição a correlação entre a percepção da mãe a respeito da má-formação fetal grave e os acessos de ansiedade, haja vista ser um momento diferenciado a ser vivido pela mulher numa gravidez peculiar, o que evidencia que se trata de uma provável gravidez patológica.
3.2.1.3 A interrupção gestacional
De acordo com Maria Tereza Maldonado, a interrupção gestacional pode vir a mobilizar intensos sentimentos de culpa . Após suportar impactos psicológicos e enfrentar a questão diante da família, é visto este efeito na maioria das mulheres, pois, geralmente, termina por desejar a interrupção gestacional. A mulher, que acompanhava dia a dia a evolução da sua gravidez e idealizava o nascimento de um filho, agora revela uma vontade de “nunca ter engravidado” e deseja interromper a gestação.
A respeito desta culpa sentida pela gestante de feto anencéfalo, cumpre ser feita uma observação pertinente: percebe-se que desejar a realização da antecipação terapêutica do parto, não deixa de ser, também, um difícil momento para a mulher grávida, devido à causa deste transtorno estar atrelada principalmente ao fato de não ser vista a referida interrupção pelo poder público como algo lícito e correto. Este fato será tratado posteriormente quando forem abordados os problemas de ordem externa, no entanto, por haverem estreitas ligações entre as dificuldades enfrentadas pela gestante, não deveria deixar de ser feita esta observação neste momento.
A culpa por desejar uma interrupção a priori ilegal da gestação pode ser verificada num caso atendido pela citada autora, ao contar que “houve uma interrupção voluntária da gestação no segundo trimestre, em função de um diagnóstico de malformação; em decorrência do sentimento de culpa por se ver como assassina do filho, a paciente passou a apresentar vários episódios de dores e de inflamações, sendo submetida a inúmeros exames e tratamentos por diversos especialistas; foco do trabalho terapêutico inicial girou em torno desse sentimento de culpa, da busca da punição e da necessidade de elaborar o luto pelo filho perdido, bem como da ferida narcísica derivada do fato de gerar uma criança malformada. O mês em que o bebê deveria nascer foi especialmente complicado pela ocorrência de enxaquecas e de fortes dores musculares e nevrálgicas.”
De acordo com este caso explicitado percebe-se o modo como a mulher se apresenta debilitada e sentindo-se culpada por gerar e desejar interromper a gestação de um feto anencéfalo. Há um impacto emocional manifesto quando se nota a “necessidade de elaborar o luto pelo filho perdido” criada pela mulher, pois se verifica que, mesmo agindo em prol de sua saúde, esta sente-se na obrigação de também flagelar-se pela ocorrência da má-formação.
No caso da gestante aguardar os nove meses para a expulsão uterina natural do feto malformado, além dos problemas psicológicos tratados, a mulher passa ainda pela depressão pós-parto. É o que a psicóloga Raquel Soifer chama a atenção: “em tais casos, a depressão puerperal apresenta-se muito intensa, embora geralmente, durante os primeiros dias, a família e o ambiente social se mostrem bastante compreensivos e colaboradores.”
Os sintomas da depressão puerperal se agravam, pois, além de suportar toda a gestação de um ser malformado, mesmo tendo o apoio de pessoas próximas a mulher ainda sofre ao vivenciar a situação do nascimento deste que, tão logo, será encaminhado para um cemitério.
Cumpre salientar que a saúde psicológica gravemente debilitada pode acarretar em reflexo negativo na saúde física, comprometendo também esta última. Neste sentido, Maria Tereza Pereira Maldonado aponta haver grande probabilidade de surgimento de reflexos psicossomáticos, ou seja, debilitação orgânica produzida por influências psíquicas, o que demonstra haver um grande risco, para a mulher que já padece psicologicamente, de ter seu corpo físico também afetado.
3.2.2 Aspectos externos ou sócio-jurídicos
A mulher, além de enfrentar os problemas de ordem interna, ainda precisa enfrentar aqueles externos a seu psicológico, sendo eles os referentes ao poder público e o poder judiciário. Há que se notar a ofensa aos direitos da gestante quando esta se vê desamparada pelo estado que não atende ao seu direito à saúde. Isto se torna visível quando o estado não permite a antecipação do parto e criminaliza a mulher grávida que pretende interromper a gestação por meio que não seja solicitando autorização judicial.
Assim, percebe-se o constrangimento pelo qual a grávida de feto anencéfalo é obrigada a passar quando vê a necessidade de pleitear perante o judiciário um direito que, constitucionalmente já lhe é conferido, visto que a Constituição Federal lhe assegura a liberdade e dignidade da pessoa humana. Além da notória violação a preceitos constitucionais há ainda o risco que a mulher corre de tornar-se refém da moralidade daqueles que irão decidir pelo seu direito à Antecipação Terapêutica do Parto.
3.2.2.1 Criminalização sofrida pela mulher
Quanto a posição do Estado para com a gestante de feto anencéfalo cumpre observar a criminalização que esta sofre caso interrompa a gestação sem autorização judicial.
A legislação brasileira é omissa no que tange à gravidez de feto anencéfalo, visto que não realiza qualquer ressalva no sentido de entendê-la como fato gerador de autorização para interrupção gestacional. O poder público não exclui a indigitada gravidez do rol das gestações normais, tipificando o ato interruptivo como prática do crime de aborto, não admitindo a Antecipação Terapêutica do Parto. Desta forma, não posicionando esta gravidez anômala como uma gravidez peculiar, será mantida a prática abortiva criminal mesmo se tratando da antecipação do nascimento de um ser que não possui o bem jurídico vida para ser tutelado.
Assim, é criminalizada uma mulher que comete um ato que não fere qualquer bem jurídico penalmente relevante. Como conseqüência da associação da Antecipação Terapêutica do Parto ao crime de aborto, à gestante de feto anencéfalo é imposta a continuidade gestacional. Com a postura do Estado no sentido de enquadrar a indigitada interrupção no crime de aborto, à mulher não é permitido obstar seu tormento por meio da antecipação do parto, o que significa que, já sofrendo de seu próprio medo, corre o risco de ser tida, ainda, como praticante de ato ilegal.
3.2.2.2 Exposição do seu problema no judiciário
Não encontrando amparo legal para realizar a intervenção que necessita e inconformada com o fato de que suportar a dor desta gestação até o seu fim natural, a mulher, que já sofre, vê-se obrigada a se expor, explicitando o seu problema em processo judicial, para requerer em juízo aquilo que almeja: o fim da gestação.
Ao submeter-se ao judiciário a gestante, já fragilizada por ter sua maternidade frustrada, ainda experimenta a exposição de sua vida particular. Mesmo correndo, este processo, sob segredo de justiça, não deixa de haver uma invasão de pessoas “estranhas” em um assunto que não deveria ultrapassar os limites da intimidade familiar e sigilo médico.
Tal fato só tende a piorar a situação emocional da grávida, que, além de viver o constrangimento de ser obrigada a pleitear na justiça seu direito à Antecipação Terapêutica do Parto, pode não mais precisar de uma sentença em seu favor, pois, devido à lentidão e burocracia da justiça brasileira, o parto normal pode vir antes da consecução do quanto pedido. É o que se depreende do caso vivido por Gabriela Oliveira Cordeiro, que será por hora narrado.
Jovem do Rio de Janeiro, residente de Teresópolis, Gabriela obteve a constatação clínica a respeito da sua gravidez de feto anencéfalo nos primeiros exames pré-natais. Logo no terceiro mês de gestação, por intermédio da Defensoria Pública, Gabriela requereu a antecipação terapêutica do parto.
Dirigindo seu pleito ao juiz de direito da comarca de Teresópolis, Gabriela teve seu pedido indeferido em 06 de novembro de 2003 sob o argumento de que faltava, ao seu caso, previsão legal que autorizasse a antecipação já que não se enquadrava em nenhum dos dois casos de aborto legal. Desta decisão recorreu o Ministério Público do estado do Rio de Janeiro, sendo esta apelação distribuída para Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do referido estado aos quatro meses da gestação de Gabriela, tendo sido concedida a medida liminar pela Desembargadora Giselda Leitão Teixeira em 19 de novembro de 2003.
Mas o alívio de Gabriela em ter conseguido o direito à Antecipação Terapêutica do Parto não duraria muito, pois durante a época em que se preparava para o processo de internação, dois advogados católicos, ao tomarem notícia da decisão concessiva de liminar da desembargadora, interpuseram agravo regimental à Segunda Câmara Criminal. O presidente da referida turma suspendeu a decisão da desembargadora em 21 de novembro de 2003.
Novamente Gabriela sofreu por ver seu pedido cassado, sendo informada da cassação no exato momento em que se dirigia para o hospital. Somente em 25 de novembro foi processado o recurso, sendo ele desprovido, voltando, assim, a viger a decisão autorizativa. Gabriela poderia novamente acreditar que a desejada antecipação gestacional iria ocorrer.
No entanto, concomitante à estes acontecimentos, no mesmo dia em que ocorreu a suspensão da liminar, 21 de novembro, o padre Luis Carlos Lodi da Cruz impetrou habeas corpus junto ao Superior Tribunal de Justiça visando desconstituir a decisão monocrática da desembargadora da Segunda Câmara Criminal que em 4 dias seria confirmada.
Em 25 de novembro, mesmo dia em que a decisão favorável à antecipação voltou a viger, a liminar requerida no habeas corpus foi concedia. Ou seja, na mesma data em que Gabriela teve de volta o direito à antecipação, este foi mais uma vez cassado, aumentando a agonia da qual padecia a gestante. Solicitadas informações ao Tribunal de Justiça, estas foram fornecidas em 18 de dezembro. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça ainda requereu diligências e devido à ocorrência de recesso judiciário, somente em 18 de fevereiro de 2004, quando Gabriela já estava no oitavo mês de gestação, o habeas corpus foi julgado e definitivamente concedido.
Inconformadas com a decisão e solidárias ao sofrimento da jovem Gabriela, em 26 de fevereiro Fabiana Paranhos, ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) e THEMIS (Assessoria Jurídica e Estudo de Gênero) impetraram habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal em favor da gestante pedindo a cassação do Acórdão do Superior Tribunal de Justiça e conseqüente autorização para a antecipação do parto. No dia seguinte o processo foi distribuído para o ministro Joaquim Barbosa que emitiu o despacho solicitando informações ao Superior Tribunal de Justiça tendo sido enviado o voto da relatora apenas em 2 de março de 2004.
O parto já havia ocorrido em 28 de fevereiro de 2004 e a guerra de Gabriela na justiça, além de constrangedora, foi desnecessária. Após o parto natural o anencéfalo, biologicamente vivo, mas juridicamente morto, sofreu parada cardiorrespiratória, não resistindo sequer sete minutos.
Em que pesem as inadequações de determinados recursos e incompetência do Superior Tribunal de Justiça em julgar o agravo regimental, não serão essas questões objeto de análise neste trabalho. Cuida-se, neste momento, da verificação do constrangimento sofrido pela gestante Gabriela, que conviveu durante toda a gravidez com a frustração da maternidade e angústia diante de todo o jogo de decisões que hora lhes concediam o direito de antecipar o parto, hora lhe frustravam com a suspensão das decisões favoráveis.
Quanto a torturante experiência de Gabriela, Débora Diniz, que a conheceu pessoalmente tendo assim contato próximo com o problema, descreve a situação: “a demora da justiça brasileira havia forçado Gabriela à mais torturante das experiências: a de ver seu pedido negado, depois autorizado, depois novamente negado, depois autorizado, depois novamente negado e por fim, a espera de uma decisão da suprema corte.”
Para salientar o constrangimento pelo qual a gestante foi obrigada a suportar, é importante se verificar a consciência dos julgadores quanto a este fato no voto do ministro Joaquim Barbosa quando se referiu a uma das vezes em que Gabriela teve seu direito à antecipação terapêutica do parto atingido: “Não há como negar que ela sofreu constrangimento em virtude do Acórdão hora atacado.”
3.2.2.3 Risco de se tornar refém da moralidade de promotores e juízes
Do caso citado em que foi demonstrada a luta na justiça de uma mulher grávida de anencéfalo há que se observar que, dentre os problemas quanto à demora no judiciário para o alcance de decisão e a exposição do problema de ordem íntima a pessoas estranhas, existe um risco muito grande que a gestante ainda corre: pode vir a tornar-se “refém da moralidade pessoal de alguns promotores e juízes.”
Não obstante estes profissionais devam despir-se de seus conceitos valorativos há aqueles que, sem pudor, persistem na utilização de opiniões de ordem religiosa e moral, valendo-se de distorções axiológicas para julgar ou atuar com fundamentos vazios e impertinentes, prejudicando o interesse da gestante de liberar-se de um tormento cessando a gravidez.
Não são raros os casos em que, diante de processos que envolvam anencefalia, juristas, que não encontram subsídios no direito para negatória do quanto requerido pela autora, recorram aos seus valores morais e religiosos, como se pode observar nas expressões de juízes que Débora Diniz cita em sua obra: “sou um juiz vinculado à tal religião, ou, minhas crenças religiosas não me permitem autorizar um pedido de aborto.”
Ansiosa por uma decisão em seu favor, a grávida é submetida a ser julgada por profissionais que irão por em questão a moralidade pessoal em detrimento de um direito de não persistir com a dor de uma gravidez frustrada. Não faltarão a esta mulher argumentos que comprovem a inviabilidade fetal e o caráter não-vivo do feto enquanto ser humano, no entanto, ainda terá que apostar na sorte de ser julgada por alguém que não confunda valores pessoais com direitos alheios.
3.2.2.4 Violação aos direitos constitucionais da mulher
Depois de verificado todo o itinerário constrangedor da grávida de feto anencéfalo à justiça e o risco à saúde que esta corre, é necessário trazer os aspectos constitucionais envolvidos nestas questões. Tomando-se por base a análise jurídica efetuada por Arx Tourinho em agosto de 2004 sobre a questão dos fetos anencéfalos no Brasil, é possível se verificar os principais dispositivos constitucionais violados e a necessidade de adequação das normas brasileiras à evolução da ciência médica, que é capaz de demonstrar com clareza a inviabilidade fetal do anencéfalo.
O jurista Arx Tourinho, em voto proferido como relator da matéria que posicionava a Ordem dos Advogados da Bahia a respeito da liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental – proposta em junho de 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) e versava sobre a violação do direito à saúde e dos princípios da legalidade, liberdade e autonomia da vontade e dignidade da pessoa humana no caso de haver proibição à Antecipação Terapêutica do Parto – se refere aos direitos e princípios fundamentais a que deve se valer a gestante de feto anencéfalo para exercer seu direito de antecipar o parto. Afirma este jurista que “a gestante, na condição delineada, tem o direito de interromper a gravidez, valendo-se de seu direito à saúde e em atenção aos princípios constitucionais da liberdade e da dignidade da pessoa humana.”
Continua o jurista Arx Tourinho, nos seus argumentos, tratando da existência de violação de três dispositivos constitucionais a partir do momento em que é imposta à mulher gestante de feto anencéfalo a continuidade da gestação, sendo eles os artigos 196 (direito à saúde), 5º, II (princípio da legalidade) e 1º, III (dignidade da pessoa humana) da Constituição Federal. Será feita, neste momento, uma abordagem constitucional restrita ao tema deste trabalho.
À mulher, assim como a todo cidadão brasileiro é assegurado o direito à saúde, de acordo com o artigo 196 da Constituição Federal : “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Diante de diversos riscos sofridos pela mulher numa gestação de feto anencéfalo anteriormente citados neste trabalho, entende-se por adequada uma adoção de postura pelo Estado no sentido de resguardar a saúde da gestante, agindo consoante a legislação constitucional, e oferecendo condições para por fim à gravidez do feto inviável, que tem causado transtornos físicos e psíquicos à mulher.
Além do dever do poder público, cumpre destacar o direito que a própria gestante tem de zelar pelo seu bem estar, ou seja, além do fato de ser dever do estado proporcionar um pleno atendimento à saúde da mulher, é direito desta cuidar para que seu próprio corpo não seja ofendido, conforme defende Arx Tourinho ao afirmar que: “é evidente que a gestante, nessas circunstâncias, tem o direito de velar por sua saúde.”
No que tange à liberdade, é necessária uma conceituação sobre a matéria. Para Francisco Amaral a liberdade está ligada intrinsecamente à autonomia da vontade, como manifestação individual no campo do direito. Pode-se perceber que a liberdade é a possibilidade do ser humano agir livremente, com a sua autonomia da vontade.
O mesmo autor assegura que “liberdade é ausência de impedimentos. É o poder de ação das pessoas sem qualquer interferência do Estado ou de outras pessoas.” É possível observar que no caso da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental é trabalhada a ausência de “impedimentos” à mulher para a prática da Antecipação Terapêutica do Parto, sendo demonstrada a não violação do princípio da legalidade com este ato. O jurista Arx Tourinho tem razão ao tratar da ausência de dispositivo que obrigue a mulher a manter a gestação de feto inviável quando assegura que: “A ordem jurídica brasileira não impõe a qualquer gestante o dever de manter em sue ventre um feto anencefálico, porque esse feto não tem potencialidade de vida, porque, rigorosamente, lhe falta o encéfalo.”
Arx Tourinho segue a posição do advogado Luís Roberto Barroso, autor da petição de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental dirigida ao Supremo Tribunal Federal em junho de 2004, que trata da anencefalia, inviabilidade de feto e Antecipação Terapêutica do Parto – proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), com o apoio técnico e institucional da Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS) – ao tratar da legalidade, liberdade e autonomia da vontade quando aduz que a lei não prevê a proibição para este caso de interrupção gestacional e destaca que: “A liberdade consiste em ninguém ter de submeter-se a qualquer vontade que não a da lei, e, mesmo assim, desde que seja ela formal e materialmente constitucional. (…) De tal formulação se extrai a ilação óbvia de que tudo aquilo que não está proibido por lei é juridicamente permitido.”
Depreende-se da análise dos juristas abordados que o ato interruptivo desejado pela mulher em nada fere a ordem jurídica, pelo contrário, a não observância ao direito da mulher de agir conforme sua vontade numa situação em que o direito não lhe impõe obstáculos é que fere os direitos constitucionais desta própria gestante. Assim, como a lei brasileira não faz qualquer alusão à ilegalidade da Antecipação Terapêutica do Parto e dá à mulher o direito de agir livremente de acordo com sua vontade, nada mais correto que a gestante utilizar-se de seu direito de gerir seu próprio corpo, antecipando o parto do feto anencefálico.
Percebe-se que no momento em que a mulher é cerceada do direito de exercer sua autonomia, também é suprimida de seu direito à liberdade e pleno exercício de sua vontade. Não é difícil se perceber o desrespeito do poder judiciário para com a gestante que, não contrariando a lei – pois no feto anencéfalo não há vida humana a ser atingida -, decide por interromper uma gestação que já está fadada ao insucesso, mas, para isso, necessita de uma autorização judicial.
Observa-se ainda que a dignidade da gestante não é respeitada quando vive um sofrimento físico e psicológico desde o diagnóstico até a expectativa da sentença, sobre uma questão que se considera uma faculdade da mulher. Há uma explícita violação ao princípio fundamental da dignidade humana desta mulher, que é assegurado na Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana.”
Não parece digno, para uma gestante, a permanência de uma gravidez da qual tem consciência de que não terá como fim o nascimento de uma criança, tal qual ela idealizou quando se descobriu grávida. É de se compreender o quanto é indigno para uma mulher a mantença de uma situação torturante onde há um renitente tormento acerca da certeza da inviabilidade fetal.
O advogado Luís Roberto Barroso compara à tortura a situação da gestante de feto anencéfalo que é obrigada a permanecer com o feto, e aduz que: “Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angustia e frustração, importa violação (…) de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes, A convivência diurna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica.”
A obrigação que é imposta à mulher quanto à continuidade da sua gestação já vem precedida da dor da “perda” de um filho – que seguramente não mais existirá em sua vida -, e acarreta em uma tortura cuja origem é mental e social e, como se não bastasse, também imposta pelo Estado, quando este não se mostra solidário na resolução do fato sem que a cidadã socorra à justiça, quando bastaria, para o procedimento interruptivo, um parecer médico.
Deve-se levar em consideração a conclusão do voto proferido por Arx Tourinho no sentido de que a liberdade e o respeito à dignidade da pessoa humana se manifestam pelo direito da gestante de feto anencéfalo interromper a gravidez sempre que assim desejar, “porque o Direito não é, nem pode, ser estático, não é, nem pode, ser contemplativo de uma realidade que passou, ignorando os avanços da ciência.”
Diante da conclusão deste jurista, percebe-se que é urgente o aprimoramento do direito frente a questão do anencéfalo, que envolve a bioética e a ciência médica. Já é evidente, diante dos estudos da medicina já apresentados neste trabalho, a inviabilidade do feto anencéfalo, não sendo mais cabível qualquer restrição jurídica à Antecipação Terapêutica do Parto