I- Introdução. II- Competência. III- Natureza Jurídica. IV- Caráter do Rol das Atividades Sujeitas ao Licenciamento Ambiental. V- Autolicenciamento.
I – INTRODUÇÃO
Há pouco mais de trinta anos, exatamente em 1972, na cidade de Estocolmo/Suécia, realizava-se a primeira grande reunião dos países industrializados do Século XX para discutirem o futuro do planeta. A partir de então, a preocupação com o meio ambiente vem ganhando força entre os ramos do conhecimento humano. Com o Direito não poderia ser diferente. Paralelamente a este panorama, a ciência ambiental tem crescido de forma merecedora de aplausos. Inúmeros trabalhos podem ser hoje encontrados relativos ao meio ambiente. Diante deste quadro, não poderia deixar de arriscar uma contribuição a todos que se interessam por este novíssimo ramo jurídico, que, não obstante ter na doutrina diversas e excelentes obras, ainda mostra-se tímido no que se refere ao Licenciamento Ambiental.
Corolário do Princípio da Prevenção, o Licenciamento Ambiental é sem sombra de dúvidas o mais importante instrumento de controle ambiental existente no país, mais até do que a fiscalização realizada pelos órgãos detentores do poder de polícia. Mister atentarmos que a necessidade de fiscalizar o meio ambiente é inversamente proporcional à eficiência do respectivo processo de licenciamento. Em outras palavras: quanto melhor elaborado for o processo de licenciamento ambiental, menor será a necessidade de fiscalizar o empreendimento.
O processo de licenciamento ambiental divide-se em três fases a saber: a Licença Prévia (LP)1, a Licença de Instalação (LI) e a Licença de Operação (LO), normatizadas nos incisos I, II e III do art. 8º da Resolução 237/97-CONAMA, respectivamente.Cyro Eyer do Valle assim conceitua as três etapas do processo licenciatório:
“1. Consulta Prévia, que deve ser formulada logo que se decide implantar um empreendimento e que resultará, se aceita, em uma Licença Prévia (LP), também chamada de Licença de Localização;
2. Licença de Instalação (LL), que deve ser solicitada assim que estejam definidas as características do empreendimento e antes de se dar início às obras;
3. Licença de Operação (LO) ou de Funcionamento (LF), que deve ser requerida com as obras já prontas e em condições de demonstrar que as instalações, quando em funcionamento, cumprem as condições legais e preenchem os requisitos estabelecidos na Licença de Instalação concedida”2.
Apesar de já presente em algumas legislações instituidoras de políticas estaduais ambientais (São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, por exemplo), a gênesis do licenciamento deu-se na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (nº 6.938/81), que em seu art. 9º, IV, assim dispõe, verbis:
“Art. 9º São instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente:IV – o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.”
E logo após, no artigo10, caput:
“Art 10 – A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento ambiental de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.”
Como podemos notar, trata-se de um instrumento de controle preventivo destinado a evitar ou mitigar possíveis danos ambientais que possam surgir de empreendimentos ou atividades.Apesar de sedimentado pela legislação pátria e devidamente regulamentado pelas Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, o Licenciamento Ambiental ainda desperta uma série de dúvidas, não só entre os juristas, como principalmente entre aqueles que lidam diariamente com a matéria.Entre as mais freqüentes podemos citar: (1) a questão da competência dos municípios para licenciar, (2) a natureza jurídica da licença ambiental, (3) o caráter do rol de atividades e empreendimentos sujeitas ao licenciamento ambiental e (4) o autolicenciamento efetuado pelo Poder Público.
II – COMPETÊNCIA
A primeira questão suscitada acima a ser abordada por agora diz respeito à possibilidade ou não que têm os municípios de executarem o licenciamento ambiental.A doutrina pátria não tem dúvidas quanto à brecha que a CF abriu para que o licenciamento ambiental possa ser realizado pelas três esferas do governo (União, Estados/DF e Municípios), senão vejamos: o art. 23, VI, da Carta Magna estatui que “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (grifei).
Mais claro do que isso não poderia ser. O problema que alguns doutrinadores chamam a atenção é para o fato de que, anteriormente à CF/88, existia a Lei 6.938 que, no seu art. 10, diz que o licenciamento ambiental compete aos órgãos estaduais integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA, e ao IBAMA em caráter supletivo. Sequer citava os municípios.Ora, sabe-se que a Constituição Federal é a supremacia em hierarquia legislativa no país, não podendo Lei Ordinária dispor diferente dela. A CF/88 veio incluir os municípios no âmbito da competência para licenciar.
Regulamentando o assunto, que se encontrava vago, o CONAMA editou a Resolução nº 237/97, que rechaçou quaisquer vestígios de dúvidas persistentes.
Com efeito, no art. 4º encontram-se elencadas as situações em que o órgão federal (IBAMA) é competente para licenciar.No 5º estão as ocasiões que competem aos órgãos ambientais dos Estados e do Distrito Federal.
E no 6º, temos que “Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo Estado por instrumento legal ou convênio”.
Portanto, resta claro que os Municípios têm competência (atribuída pela Carta Magna, ressalte-se) para exercerem o licenciamento ambiental. Entretanto, essa competência restringir-se-á aos empreendimentos e atividades de impacto ambiental local, conforme determinado pelo art. 6º da Resolução 237/97 do CONAMA.
Portanto, desde que o interesse local fique restrito àquele município, seu respectivo órgão ambiental será o competente para exercer o licenciamento. Por outro lado, se os possíveis ou efetivos impactos deste determinado empreendimento ou atividade trouxerem risco a mais de um município, neste caso, o órgão estadual será o competente.
É importante ressaltar também que “não é fator decisivo estar o empreendimento dentro dos limites de determinada cidade, pouco importando, ainda, a titularidade da área onde será realizada a atividade e/ou obra. O raio de influência ambiental é que indicará o interesse gerador da fixação da atribuição, traçando-se uma identificação da competência licenciadora com a competência jurisdicional (art. 2º da Lei Federal nº 7.347/85 – local do dano ambiental)”3.
Outra questão que pode confundir os aplicadores do Direito Ambiental refere-se ao dilema que surge caso dois entes da federação queiram licenciar um mesmo empreendimento ou atividade (suscitando uma espécie de conflito positivo de competência), ou de forma contrária, nenhum dos órgãos aparentemente competentes se habilitam para licenciarem uma determinada obra (conflito negativo de competência). Não é de todo desconhecido que há determinadas obras que, por diversos motivos, são do interesse de vários órgãos federados. E outras que não despertam o interesse de nenhum.
Como a atividade de licenciamento ambiental tem natureza de serviço público posto à disposição dos administrados (sujeita a incidência de tributo na forma de taxa), esta se reveste das mesmas características dos demais.
Por isso, inconcebível que o licenciamento de qualquer obra ou atividade fique ao alvedrio dos órgãos supostamente competentes. Todo serviço público é obrigatório e contínuo; é um direito subjetivo dos administrados.
Objetivando-se impedir que uma mesma obra seja licenciada por mais de um ente da federação, evitando pareceres divergentes e em atenção ao princípio do ne bis in idem, o art. 7º da Resolução 237/97 do CONAMA reza que “os empreendimentos e atividades serão licenciadas em um único nível de competência, estabelecido nos artigos anteriores”.
Com efeito, quando ocorrerem hipóteses de conflito positivo ou negativo de competência, o órgão ambiental responsável pelo licenciamento será determinado pelos critérios dos arts. 4º, 5º e 6º da Resolução 237, podendo, em última conseqüência, recorrer-se ao Poder Judiciário para solucionar o conflito.Abro um parêntesis aqui para lembrar que muitas pessoas fazem confusão entre o alvará que autoriza a realização de determinado empreendimento concedido pelas prefeituras municipais e a licença ambiental propriamente dita, concedida pelos órgãos ambientais competentes. Documento indispensável para que se possa deduzir o pedido de licenciamento perante a Administração Pública, o alvará não substitui a licença ambiental. São documentos totalmente distintos; a emissão daquele é condição sine qua para a concessão da licença. As prefeituras não têm competência para licenciarem, ficando esta atividade ao crivo exclusivo dos órgãos integrantes do SISNAMA, sejam eles municipais, estaduais (DF inclusive) ou federal. O alvará em questão objetiva autorizar que determinada obra ou atividade possa ser construída no local proposto pelo empreendedor, em consonância com a organização territorial urbana do município, respeitando o quanto disposto no art. 30, VIII, da CF: “Compete aos municípios promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. Ressalte-se que a autorização do local da obra ou atividade concedida pela prefeitura não vincula a decisão do órgão ambiental competente. Este, mediante processo de Licença Prévia, poderá determinar que o empreendimento seja manejado de lugar, caso ofereça riscos de natureza ambiental à circunvizinhança.
Daí a importância essencial da Licença Prévia. É nela que serão detectados os possíveis riscos que um empreendimento possa trazer para o meio ambiente local. Nem sempre o risco ambiental conhecido é proporcional ao porte do empreendimento. Pode ocorrer hipótese em que uma obra de micro-porte, que pretenda ser localizada numa área já criticamente afetada, possa ultrapassar os limites suportáveis pelo ecossistema local. Por exemplo: um posto de gasolina é um tipo de empreendimento de micro-porte, sem aparentes riscos para o meio ambiente; entretanto, caso o empreendedor pretenda construí-lo no epicentro de um cinturão industrial já gravemente comprometido, passa a se tornar um empreendimento de médios ou grandes riscos ao meio que o circunda.
III – NATUREZA JURÍDICA
Outra dúvida existente na doutrina é quanto à natureza jurídica da licença ambiental. Para os clássicos (que pensam que o Direito Ambiental ainda é um sub-ramo do Direito Administrativo), trata-se de autorização e não de licença. Neste sentido Vladimir Passos de Freitas:
“O termo licença, certamente, não é o mais apropriado, pois pressupõe ato administrativo definitivo e, pelo menos para a Licença Prévia e para a de Instalação, o ato é precário. Mais adequado seria usarmos a denominação autorização, esta sim, de caráter discricionário e precário”4.
Felizmente a Doutrina evoluiu, posicionando-se majoritariamente de forma contrária. Trata-se de ato vinculado, ou seja, a lei não deixa opções para a Administração Pública. Diante de determinada situação só há um caminho a ser seguido pelo Poder Público, não podendo agir de outra forma. Assim, “diante de um poder vinculado, o particular tem um direito subjetivo de exigir da autoridade a edição de determinado ato, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial”5.
Por tratar-se mesmo de licença, desde que atendidos os requisitos previstos em lei, tem o administrado o direito de obtê-la, não podendo a autoridade administrativa recusar a sua concessão.A dúvida dos doutrinadores clássicos reside no fato de que a Administração Pública dispõe de certa discricionariedade para a concessão da Licença Prévia e mesmo da de Instalação, não tendo, assim, o interessado, direito subjetivo algum.Neste ponto, ninguém melhor do que Edis Milaré para esclarecer a questão:
“Na realidade, não há atos inteiramente vinculados ou inteiramente discricionários, mas uma situação de preponderância, de maior ou menor liberdade deliberativa do seu agente”6.E continua:
“No caso do licenciamento ambiental, sem negar à Administração a faculdade de juízos de valor sobre a compatibilidade do empreendimento ou atividade a planos e programas do governo, sobre suas vantagens e desvantagens para o meio considerado, (…) o matiz que sobressai (…) é o da subordinação da manifestação administrativa ao requerimento do interessado, uma vez atendidos, é claro, os pressupostos legais relacionados à defesa do meio ambiente e ao cumprimento da função social da propriedade”7.
Assim será se pensarmos na licença ambiental como uma espécie peculiar, do qual o gênero é a licença tradicional do Direito Administrativo. Temos que vislumbrar que o Direito Ambiental evoluiu, tornando-se um ramo autônomo, com normas e princípios próprios. Conseqüentemente, com institutos característicos, como o é a licença ambiental.
Outros autores ainda insistem dizer tratar-se de autorização e não de licença, pois esta goza de estabilidade, enquanto que aquela é precária, podendo ser suspensa ou cancelada discricionariamente pelo órgão que a concedeu, por motivos de conveniência e oportunidade.
Ora, sabe-se que a licença ambiental tem um prazo de validade (mínimo de quatro e máximo de dez anos), findo o qual, terá que ser renovada, caso assim deseje o interessado. Porém, essa validade não pode ser confundida com estabilidade. A licença ambiental goza do caráter de estabilidade, juris tantum, não podendo ser suspensa nem cancelada por motivos de conveniência ou oportunidade. Isso só poderá ocorrer (suspensão ou cancelamento) nas hipóteses elencadas pelo art. 19 da Resolução 237/97 do CONAMA, situação em que “O órgão ambiental competente, mediante decisão motivada, poderá modificar os condicionantes e as medidas de controle e adequação, suspender ou cancelar uma licença expedida, quando ocorrer (I) violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais, (II) omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença, ou (III) superveniência de graves riscos ambientais e de saúde”.
Portanto, não há falar em discricionariedade muito menos em arbitrariedade do órgão ambiental que, arrimado no art. 19 da Resolução 237, suspenda ou cancele uma licença ambiental previamente concedida.
Não se trata aí de direito adquirido pelo administrado, pois a vontade do particular deve curvar-se perante o interesse público.Vale lembrar que outras licenças também possuem prazo de validade, como é o caso da licença para dirigir veículos automotores, cuja renovação depende de aprovação em exame médico.
Portanto, não é porque os órgãos ambientais licenciadores possuem uma certa dose de discricionariedade na concessão da licença ambiental (Licença Prévia e Licença de Instalação), nem mesmo pelo prazo de validade que possui, que se possa denominá-la de autorização. Esta é o instrumento preventivo utilizado pelo Poder Público para toda atividade que faça “uso privativo de bem público, ou o desempenho de atividade material, ou a prática de ato que, sem esse consentimento, seria legalmente proibido”8.Como exemplos, a autorização para transportes de cargas perigosas, a autorização para uso de moto-serras, entre outros.
IV – CARÁTER DO ROL DAS ATIVIDADES SUJEITAS AO LICENCIAMENTO AMBIENTAL
Os aplicadores do Direito Ambiental (principalmente nos órgãos públicos) fazem uma certa confusão acerca do caráter do rol de empreendimentos e atividades sujeitas ao licenciamento ambiental. Teria tal lista caráter exemplificativo (numerus apertus), ou seria ela taxativa (numerus clausus)?Antes de responder, não podemos olvidar que cada ente da federação tem competência normativa (estabelecida pela CF/88, no art. 23, VI) para definir quês atividades ou empreendimentos são passíveis de enfrentar o processo de licenciamento ambiental. Portanto, no âmbito federal, a Resolução 237/97 do CONAMA, no Anexo 1, lista uma série de atividades ou empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental. Na Bahia, esta lista pode ser encontrada no Anexo 1 do Decreto Estadual nº 7.967/2001 que regulamentou a Lei Estadual nº 7.799/2001.
Voltando à pergunta acima, qual o caráter do rol destas atividades? Trata-se de um rol exemplificativo, ou seja, a lista de atividades ou empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental não se resume aos anexos acima, seja da Resolução do CONAMA, seja do Decreto Estadual; pode ser ampliada a critério do órgão ambiental responsável. Mesmo que não esteja presente na lista, determinada obra pode ser compelida pela Administração Pública a passar pelo crivo do processo licenciatório. É o que se extrai da inteligência do §2º do Art. 2º da Resolução 237/97 do CONAMA, transcrita a seguir:
“Art. 2º – (…)§2º Caberá ao órgão ambiental competente definir os critérios de exigibilidade, o detalhamento e a complementação do Anexo 1, levando em consideração as especificidades, os riscos ambientais, o porte e outras características do empreendimento ou atividade”.Portanto, cada ente federativo tem competência própria para listar quais atividades ou empreendimentos estarão sujeitos ao licenciamento ambiental, respeitando, logicamente, os princípios gerais do Direito Ambiental, tais como o da Prevenção, o do Desenvolvimento Sustentável, o da Função Socioambiental da Propriedade, entre outros.
Neste particular andou bem o legislador constitucional, pois seria impossível e desnecessário que um órgão apenas previsse todas as atividades ou empreendimentos passíveis de apresentarem riscos ambientais. Somos uma nação de dimensões continentais, com os mais diferentes tipos de ecossistemas. Cada região do país possui características peculiares, sendo mais racional que cada ente federativo possa determinar quais obras apresentam ou não riscos ao meio ambiente local.
Lembremos também que, nosso país segue o sistema Federativo (República Federativa do Brasil), no qual os entes que compõem a Federação (União, DF, Estados e Municípios) dispõem de certa dose de autonomia. Segundo José Afonso da Silva, “a autonomia federativa assenta-se em dois elementos básicos: (a) na existência de órgãos governamentais próprios, isto é, que não dependam dos órgãos federais quanto à forma de seleção e investidura; (b) na posse de competências exclusivas, um mínimo, ao menos, que não seja ridiculamente reduzido. Esses pressupostos de autonomia federativa estão configurados na Constituição (arts. 17 a 42)”9.
Há, portanto que se indagar: sendo a licença ambiental ato administrativo vinculado, não seria uma afronta ao Princípio da Legalidade exigir-se processo licenciatório de uma obra ausente da lista das atividades ou empreendimentos sujeitas ao licenciamento ambiental?
A resposta é negativa. Como é possível então?
Trata-se de uma certa dose de discricionariedade presente no processo de licenciamento ambiental. Como já dissemos anteriormente, não existem atos puramente discricionários nem atos “cem por cento” vinculados, mas sim uma situação preponderante, de maior liberdade deliberativa do seu agente.Também temos que lembrar que no Direito Ambiental o termo “direito adquirido” não goza da mesma estabilidade da que usufrui no Direito Civil, por exemplo. Por ser um ramo jurídico difuso (de todos e de ninguém simultaneamente), o direito subjetivo ambiental relativiza-se de acordo com o interesse da coletividade. Ao administrado não é dada a faculdade de poluir. Portanto, pode o órgão ambiental competente exigir o processo licenciatório de qualquer obra, mesmo que não esteja presente no rol de atividades ou empreendimentos passíveis de licenciamento ambiental. Ressalte-se que neste caso não se trata de conveniência ou oportunidade da Administração Pública, mas de certa dose deliberativa justificável pelo interesse coletivo de um meio ambiente equilibrado e saudável.
Destarte, outra dúvida surge: pensemos na hipótese do IBAMA não realizar o processo licenciatório de uma obra não exigível na lista do CONAMA, mas que se mostrasse indubitavelmente necessário seu licenciamento; poderia essa omissão ser considerada crime ambiental, tipificado no art. 68 da Lei Federal nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais)?
Inicialmente, vejamos o conteúdo do retrocitado artigo:
“Art. 68 – Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental:Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de 3 (três meses a 1 (um) ano, sem prejuízo de multa”.
Segundo Paulo José da Costa Júnior, o sujeito ativo deste crime pode ser “qualquer pessoa, física ou jurídica, que tenha o dever legal ou contratual de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental”10, incluindo-se aí funcionários de órgãos públicos, tais como IBAMA, Polícias Ambientais, etc.
Como se trata de tipo penal aberto, alguns atos podem ser enquadrados como de relevante interesse ambiental, outros não. Imaginemos então que na hipótese sugerida acima, o interesse ambiental seja gritante, para que não pairem dúvidas acerca da obrigação existente.
Poderia então a conduta omissiva do funcionário responsável enquadrar-se no tipo penal acima?
Num exame perfunctório, diríamos que sim, que houve omissão do funcionário, uma vez que o mesmo sabia que aquela determinada obra era passível de licenciamento.
Entretanto, se nos atermos a uma análise mais rigorosa e detalhada, como exige o Direito Penal, a resposta negativa impõe-se necessária.
O Direito Criminal rege-se pelo Princípio da Reserva Legal, (art. 5º, XXXIX, da CF/88), que diz: nullum crimen, nulla poena sine lege, ou seja, não há crime sem lei anterior que o defina; não há pena sem prévia cominação legal. Portanto, já que aquela determinada obra não era exigível pela lista do CONAMA de atividades ou empreendimentos sujeitas ao licenciamento ambiental, não haveria crime, por impossibilidade de tipificação.Apesar de tratar-se de uma norma aberta, cuja complementação pode ser definida por atos normativos diversos (Decretos, Resoluções, Portarias, etc.), ainda assim, há que se considerar a anterioridade da lei penal (art. 1º do Código Penal). Com efeito, se no momento do fato supostamente criminoso a obra em questão não se encontrava no corpo da lista de atividades ou empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental, por força do caráter taxativo da lei penal, não há possibilidade de imputar-se crime ao funcionário omisso.
Não podemos esquecer-nos de que há três esferas diferentes envolvidas aqui. O funcionário poderá responder administrativamente pela omissão e até civilmente, se daquele ato faltoso foram gerados danos, uma vez que quando se fala em meio ambiente, a responsabilidade cível é objetiva. Mas na esfera penal, não há que se falar em culpa do agente, sendo o fato atípico.
Mutatis mutandi, havendo má-fé do agente, aí sim ele poderá responder, não só na esfera administrativa e cível, como também na criminal.
V – AUTOLICENCIAMENTO
O último problema aqui enfrentado (há outros, porém não serão analisados agora) refere-se ao autolicenciamento.
Como se pode deduzir da própria denominação, ocorre quando o órgão licenciador confunde-se na pessoa do empreendedor. Aqui, Administração e Administrado figuram no mesmo pólo da relação.Para Hamilton Alonso Jr., apesar de a lei não vedar “que a pessoa jurídica de direito público licencie sua própria atividade (…), ao licenciar a si própria a Administração atenta contra os princípios da impessoalidade e moralidade previstos na Lei Maior (art. 37 da CF), contaminando o processo de licenciamento em face do contraste gritante do senso comum e do interesse coletivo com a conduta administrativa perpetrada, pois, em sã consciência, ninguém pode admitir a dúplice função administrativa”11.
Evidente que, mesmo se tratando de um ato de natureza vinculada, não podemos ser ingênuos a ponto de rechaçarmos qualquer vestígio de discricionariedade presente no autolicenciamento. Sempre que postulante e julgador confundem-se na mesma autoridade, haverá, mesmo que de forma não-intencional, rastros de imparcialidade. Por mais ético e legalista que seja o órgão é inevitável, neste caso, que o interesse de ver a obra pronta o mais rápido possível venha a atrapalhar a visão de julgador.
Neste particular, o Princípio da Publicidade dos Atos Públicos (caput do art. 37 da CF/88) apresenta-se como a pedra-de-toque fundamental para que se possa crescer em importância e eficácia a fiscalização e a participação popular, dispondo os demais setores públicos (Ministério Público, Polícia Judiciária, etc.) e toda a coletividade (caput do art. 225 da CF/88) da força do Poder Judiciário para a correção de qualquer ilegalidade cometida.Quanto mais transparente é o órgão público, melhor é a sua relação com a sociedade.
Diante desta situação, não podemos apenas mostrar os problemas existentes; temos que agir de forma benéfica, com críticas construtivas a fim de encontrarmos soluções.
Minhas sugestões são as seguintes: a) para o autolicenciamento municipal, efetiva participação com poder inclusive de veto do órgão ambiental estadual; b) para o autolicenciamento estadual e do DF, efetiva participação com poder inclusive de veto do órgão ambiental federal; c) para o autolicenciamento federal, a criação de um conselho regional (um para cada região do país, Norte, Nordeste, Centro-Oeste, etc.) formado por representantes das Secretarias de Meio Ambiente de cada Estado (um representante por Estado, obviamente), que atuariam efetivamente no processo, inclusive tendo poder de veto; d) que os órgãos almejem certificados de qualidade no serviço prestado (ISO 9001, por exemplo), e de qualidade ambiental (ISO 14001, entre outras); e) auditorias interna (feita pelo próprio órgão licenciador) e externa (feita pelo órgão certificador); e f) a figura do ombudsman, espécie de ouvidor chanceler da Justiça com trânsito livre pelos três Poderes do Estado, encarregado de velar pela legalidade.
• Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05.10.1988.
• Da Costa Jr., Paulo José e Edis Milaré. Direito Penal Ambiental: Comentários à Lei 9.605/98. Campinas: Millennium, 2002.
• Da Silva, José Afonso. José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11a. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996.
• Decreto Estadual nº 7.967, de 05.06.2001, que regulamentou a Lei Estadual Baiana nº 7.799, de 07.02.2001.
• Decreto Lei nº 2.848, de 07.12.1940, que instituiu o Código Penal.
• De Freitas, Vladimir Passos. Direito Administrativo e Meio Ambiente. 3a. Ed., 4a. tir. Curitiba: Juruá, 2003.
• Di Pietro, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo. 15a. Ed. São Paulo: Atlas, 2003.
• Do Valle, Cyro Eyer. Qualidade Ambiental: ISO 14000. 5a. Ed. São Paulo: Editora senac São Paulo, 2004.
• Fink, Daniel Roberto, Hamilton Alonso Jr. e Marcelo Dawalibi. Aspectos Jurídicos do Licenciamento Ambiental. 3a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
• Lei Estadual nº 7.799, de 07.02.2001, que instituiu a Política de Administração dos Recursos Ambientais do Estado da Bahia.
• Lei Federal nº 6.938, de 31.08.1981, que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente.
• Lei Federal nº 9.605, de 12.02.1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências.
• Milaré, Edis. Direito do Ambiente. 2a. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
• Resolução CONAMA nº 237, de 19.12.1997, dispõe sobre os procedimentos e critérios para licenciamento ambiental, e dá outras providências.