A doutrina clássica separava o direito em duas grandes classes: direitos absolutos e direitos relativos. Para os direitos absolutos e unilaterais era possível se falar em violação ao direito enquanto ilícito civil, mas em relação aos direitos relativos (como negócios jurídicos, poder familiar, gestão de negócios, etc.) não se reconhecia a ilicitude civil, quando se tratava de violação de direitos. Porém, atualmente não se fala nesse não reconhecimento, já que a contrariedade ao direito – sendo direito relativo ou absoluto – implica em ilicitude civil.
Assim, o que importa esclarecer é que é possível que ilícitos civis decorram de relações jurídicas relativas, e nem todos os ilícitos relativos provêm de infrações contratuais, como por exemplo, as relações que envolvem poder familiar (o antigo pátrio poder), relações de tutela, de gestão de negócios, entre outros.
Em suma, existem ilícitos civis relativos, que violam a relação jurídica relativa, (sendo o ilícito relativo negocial, que são os ilícitos que surgem da violações de negócios jurídicos, e o ilícito relativo extranegocial, que são os ilícitos que surgem da violação de relações jurídicas não negociais, como o poder familiar) e ilícitos absolutos, que violam a relação jurídica absoluta, tais como as relações de propriedade e personalidade.
Desta forma, pode-se concluir que o poder familiar, exercido de maneira contrária ao direito, é um ilícito extrapatrimonial, ou seja, trata-se de um ilícito civil, também conhecido como abuso de direito.
O Código Civil de 1916 não previa o abuso de direito, mas dizia, no seu art.160, que não constituía atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido, e, portanto, os atos contrários a estes preceitos eram considerados abusivos, de maneira que os doutrinadores sempre defenderam que o abuso de direito sempre esteve no ordenamento de 1916, através de uma interpretação a contrário sensu.
Mesmo com esta interpretação lógico-formal, o legislador de 2002 escolheu por mencionar expressamente o abuso de direito no artigo 187, condenando os exercícios abusivos de qualquer direito subjetivo, transpondo em palavras o que os doutrinadores já teorizavam.
Explica Carlos Alberto Gonçalves acerca do abuso de direito:
O instituto do abuso do direito tem aplicação em quase todos os campos do direito, como instrumento destinado a reprimir o exercício anti-social dos direitos subjetivos. As sanções estabelecidas em lei são as mais diversas, podendo implicar imposição de restrições ao exercício de atividade e até sua cessação, de declaração de ineficácia de negócio jurídico, demolição de obra construída, obrigação de ressarcimento dos danos, suspensão ou perda do pátrio poder.
A nova concepção de abuso de direito pode ser exemplificada pela teoria de que trata Felipe Braga Peixoto Netto . Ele denomina ilícito funcional o ilícito que surge do exercício do direito. Há contrariedade ao direito quando este é exercido de maneira desconforme do padrão normal para sua realização, ou seja, cada direito conferido a alguém há um padrão estipulado para o seu exercício. Se houver desvio neste padrão, há contrariedade ao direito.
Desta maneira explica Felipe Braga Peixoto Netto :
Sempre que os limites socialmente aceitos forem ultrapassados, dando lugar a situações geradoras de perplexidade, espanto ou revolta, decorrentes do exercício de direitos, a resposta do ordenamento só pode ser uma: repulsa ao agir abusado, desarrazoado.
Não há diferença entre ilícito funcional e abuso de direito nas suas essências, mas existem razões que tornam a terminologia “ilícitos funcionais” mais convenientes, como a nitidez da contrariedade do direito pelo uso arbitrário de um direito legítimo, já que o ilícito nasce da disfunção dos direitos.
Esta linha de raciocínio foi concretizada através da evolução do pensamento teórico: no direito atual contemporâneo, o direito individual cumpre uma função social, e esta função deve ser observada. O caráter extremamente individualista do direito deu lugar ao caráter social deste. Hoje, não basta ter direitos, tem-se que exercitá-los dentro dos limites socialmente toleráveis.
Neste sentido se direcionou o novo Código Civil , no seu art.186: “Também comete o ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
A doutrina tradicional não admitia o abuso de direito como ato ilícito , já que não era uma agressão direta ao direito, mas no direito civil atual, se houver uma distorção funcional, há ilícito civil, ou abuso de direito. O ilícito decorre do agir indevido.
Desta forma, conclui-se que o ilícito funcional é um ilícito civil. Se o poder familiar decorre do direito funcional – direito de exercer tal poder – e, se do mau exercício deste direito decorre uma conduta imoral, perversa ou exarcebada (tais como o castigo imoderado, o abandono, os maus tratos ), tal conduta é um ilícito funcional, ou um abuso de poder, que é um ilícito civil.
Observa-se, então, que o abuso do poder familiar (que é o exercício arbitrário deste poder) é um ilícito civil, e como tal deve ser tratado, sem prejuízo da tradicional construção de imputabilidade de natureza penal para os conhecidos tipos de abandono e maus tratos. Com efeito, essas são as condutas visíveis, assim como são, quando denunciados, o estupro e o atentado ao pudor, a lesão grave ou leve.
Entretanto, a coação moral irresistível, a ameaça e os danos psico-sociais decorrentes do desequilíbrio emocional causados pelos ilícitos penais e civis, que não são visíveis, porém, são tão ou mais graves que eles, estão a merecer do Estado prevenção e reprimenda compatíveis com o mal causado, e, infelizmente, é no seio da família que os ilícitos civis resultantes do abuso do poder familiar se concretizam, mas não se evidenciam pela própria natureza das relações e da dependência econômica e afetiva do lesado em relação ao agressor.