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O artigo trata da necessidade de proteção às minorias como forma de garantir a democracia e o Estado de Direito.

O fanatismo religioso e o ódio são um fogo que devora o mundo, cuja violência ninguém pode abafar. Baháulláh, (1817-1892)

O presente artigo foi escrito com a finalidade de alertar a comunidade acadêmica e a sociedade sobre a necessidade de reestruturar e fomentar o fortalecimento das liberdades concedidas pela Constituição de 1988. No dia 7 de Janeiro, comemora-se o dia da Liberdade de Culto, mas será que há realmente motivos de celebração?

O Papa João Paulo II, no dia mundial da paz em 1999, deixou como mensagem aos chefes de Estado uma definição de liberdade religiosa, vejamos:A liberdade religiosa constitui o coração dos direitos humanos. Essa é de tal maneira inviolável que exige que se reconheça às pessoas a liberdade de mudar de religião se assim sua consciência demandar. Cada qual, de fato, é obrigado a seguir sua consciência em todas as circunstâncias e não pode ser constrangido a agir em contraste com ela. Devido a esse direito inalienável, ninguém pode ser obrigado a aceitar pela força uma determinada religião, quaisquer que sejam as circunstâncias ou as motivações.

A mensagem papal demonstra com propriedade o quão é importante, na sua dimensão de valor humanístico, o direito à liberdade religiosa. O direito de manifestar as próprias crenças individual ou coletivamente, de maneira pública ou privada está inserido no art. 18 na Declaração Universal dos Direitos Humanos, e mais do que isto, é um princípio base da paz mundial, in verbis o art. 18 do diploma legal citado:

Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência, religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou particular.

De todas as religiões, as oriundas da África são as que sofrem maior preconceito. Isto talvez se dê pelo ranço da escravatura proveniente da colonização européia cristã. Os negros trazidos da África para a escravidão no Brasil trouxeram uma cultura enraizada em crenças e rituais religiosos próprios e, mesmo forçados a se converter ao cristianismo, mantiveram seus deuses apenas aceitando as imagens cristãs, mas recusando seu significado.

A religião é uma forma de conservar a identidade, principalmente num contexto de opressão como fora a época escravagista brasileira. Esta conservação de identidade ao imiscuir-se com as religiões européias sofreu uma transformação parcial, incorporando alguns elementos de outras religiões, o que deu origem às religiões afro-brasileiras, como a Umbanda e o Candomblé. Dessa forma, estas fazem parte da cultura brasileira, assim como inúmeras outras religiões das mais variadas origens, pois em essência somos um povo profundamente miscigenado e eclético.

O Brasil é um país laico, ou seja, o Estado não interfere na escolha do particular acerca da religião, não podendo criar nenhum tipo de favorecimento ou de discriminação com relação a nenhuma escolha no âmbito de manifestação de religião ou ausência de religião. O Art. 5º, VI da Constituição de 1988 é cristalino:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(…)VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (grifo nosso)

No âmbito jurídico, parece-nos a definição de SILVA sobre liberdade de crença a melhor porque estende o dispositivo constitucional de forma a abarcar também os ateus e os agnósticos, além de definir o papel do Estado diante deste direito fundamental, conservando a sua aplicabilidade máxima, segue-a:

Na liberdade de crença entra a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir à religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 248.)

Os juristas constitucionalistas modernos a exemplo de MORAES não se afasta da definição de SILVA, trazemos à colação o conceito dele porque exprime uma matiz sociológica que confere à liberdade de crença uma dimensão mais ampla e abarcada pelo que acreditamos ser a construção da liberdade religiosa:

A conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira consagração de maturidade de um povo, pois como salientado por Themístocles Cavalcanti, é ela verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação. A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto. O constrangimento à pessoa humana, de forma a constrangê-lo a renunciar sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosóficas e a própria diversidade espiritual. (MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Ed. Atlas, p. 125).

O art. 19 da nossa Carta Magna veda ao Estado subvencionar, embaraçar o funcionamento e manter quaisquer relações de dependência ou aliança com cultos religiosos ou igrejas, ressalvando apenas a colaboração de interesse público. Esta colaboração de interesse público seria de natureza assistencial. Então, podemos afirmar que o relacionamento do Estado com a religião escolhido pelo constituinte originário foi a forma laica. Desse artigo constitucional extrai-se que não pode haver favorecimento para divulgação de ideais ou idéias religiosos, não ficando obviamente vedado o direito ao proselitismo ou direito à pregação.

A liberdade religiosa, de crença ou de culto não é um valor absoluto, nem tampouco um direito absoluto. Há limitações sobre este direito/valor social. O Estado e a sociedade têm o dever de procurar uma convivência harmoniosa entre as religiões, de modo que não haja tratamento desigual entre as formas de religião e nem o fomento de discriminação e/ou preconceito de uma religião pela outra.

A lei 7.716 de 1989 trata do preconceito de cor e de raça, mas em seu art. 20 torna punível a conduta de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião”. Se isto não bastasse, restaria, na esfera penal, o tipo descrito no art. 208 do Código Penal Brasileiro, que trata do escarnecimento de qualquer pessoa por motivo de crença ou função religiosa, e ainda o tratamento vilipendioso de ato ou objeto de culto religioso (hipótese que fora abordada na ocasião da destruição da imagem de uma Santa católica por um pastor evangélico). Tudo isto, culmina para a completa compreensão de que o Estado deve localizar-se na função de protetor das religiões e mediar os conflitos existentes entre elas.

A mídia tem sido amplamente utilizada pelas religiões com o intuito de arrebanhar mais fiéis e de levar a espiritualidade a pessoas que não possam ir às igrejas, sinagogas, templos e etc. Entretanto, o espetáculo de religiosidade e de amor ao próximo vem se transformando num circo de horrores, onde os ataques às outras religiões são marca comum. O que obviamente extrapola o direito de manifestação religiosa. Em nome da liberdade expressão as garantias constitucionais estão sendo distorcidas.

Se formos levar em consideração a hermenêutica de Robert Alexy, Canotilho e outros expoentes em hermenêutica constitucional veremos que até os direitos fundamentais devem sofrer “restrições” quando ultrapassem e colidam, ainda que aparentemente, com outros direitos fundamentais, seguindo a linha dos autores abordados soerguem-se os dois requisitos: máxima necessidade e proporcionalidade.

A máxima necessidade é a real essencialidade de realizar atitudes gravosas para alcançar a finalidade buscada e a proporcionalidade reside na mensuração, sopesamento, ponderação entre o dano causado e o benefício visado. Se o Estado tem o dever de tratar igualmente as religiões, quando há desequilíbrio surge o dever de restabelecer a igualdade, tratando desigualmente os desiguais de forma a equilibrá-los novamente. As religiões afro-brasileiras têm sido alvo de ataques que não deram causa, nem tampouco se pode atribuir a elas qualquer atitude agressiva a outras religiões, de forma que a agressão sofrida é injusta.

Os ataques às religiões afro-brasileiras deve ser cessado e há meios legais para tanto, bastando o Poder Público utilizar-se do Decreto Presidencial 52.795/63 que regula os Serviços de Radiofusão aplicando as sanções previstas no art. 133. Ou então, e melhor ainda, utilizar-se do que preceitua a Carta Magna nos arts. 220, §3º, inciso I e 223, § 4º, que possibilitam até a perda da concessão outorgada, em caso de reincidência na violação.

O decreto supracitado ainda prevê expressamente a responsabilidade da emissora pela programação exibida, ainda que a cessão seja parcial, de acordo com o arts. 124, § 1º; 67; 75 e 77 do Decreto Presidencial 52.795/63 e art. 10 do Dec. Lei 236/67. Ensejando o dever de indenizar pelos danos sofridos e ainda deferir o direito de resposta proporcional ao agravo sofrido.

As religiões afro-brasileiras, em verdade, constituem minoria em quantidade de fiéis e justamente por isso toda a sociedade deve lutar para que seja respeitado o direito desta minoria, caso contrário poderá se estabelecer uma ditadura da maioria. O desrespeito ocorre principalmente em programas de radio e televisão, onde ocorrem “exorcismos” em praticantes de umbanda, candomblé, sempre fazendo referências sobre os praticantes de tais religiões como “demônio”, “capeta”, “maus espíritos” e etc. Ademais, as minorias têm o seu valor histórico/cultural, e seu desaparecimento acarretará um imenso prejuízo para a nação.

A transformação das religiões afro-brasileiras em “religião do diabo”, “seita diabólica”, “gente do mal”, “lugar de encostos”, é favorecer um preconceito sobre os que as praticam e até mesmo torná-los alvo de discriminação e segregação social, além de constituir ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Permitir que isto continue significaria abrir as portas para os ataques mútuos, o que poderia culminar em uma guerra religiosa, ou então favorecer o engrandecimento de uma religião em detrimento das outras, criando a ditadura da mesma. Não podemos deixar que um “apartheit” religioso se instaure no Brasil. SILVA aponta bem o perigo da ditadura da maioria quando aborda o princípio da dignidade da pessoa humana:

Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não qualquer idéia apriorística de homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade da pessoa humana à defesa de direitos pessoais tradicionais. (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 105.) (grifo nosso) O Brasil possui um Plano Nacional de Direitos Humanos no qual se compromete como meta a combater a intolerância religiosa, favorecendo o respeito às religiões minoritárias e cultos afro-brasileiros. Os direitos humanos são o mínimo existencial, no qual se fundam todas as convenções e tratados internacionais, por serem valores amplamente aceitos no mundo. Porque então esta perseguição e “caça às bruxas” empreendida contra as religiões afro-brasileiras, buscando a qualquer custo demonizá-las, criando uma estigma de preconceito e procurando marcar com a letra escarlate seus praticantes? As cruzadas em busca de dominação religião já deveriam ter acabado e o ser humano já deveria ter aprendido que no mundo há lugar para todos e para todas as crenças.

O Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública em São Paulo face às emissoras religiosas que estão promovendo a demonização das religiões afro-brasileiras exigindo que cessem as agressões, representando os interesses difusos das entidades de classe afro-descendentes. Iniciativa louvável, principalmente diante do crescimento do poderio das emissoras que transmitem os programas que afrontam aos direitos de dignidade dos praticantes das religiões afro-brasileiras, a seguir um trecho da petição inicial apresentada pelo parquet federal:Ao veicular em sua programação atos atentatórios à cidadania, à dignidade da pessoa humana, bem como à liberdade de crença religiosa, e, sob a égide da consagrada “liberdade de expressão” distorcem as garantis constitucionais, causando um dano coletivo. (cedido pela Assessoria de Imprensa do Ministério Público Federal via e-mail).

Diante da globalização esperava-se que o fanatismo religioso desaparecesse. Entretanto, parece que se acirrou todas as disputas religiosas. A globalização facilita o diálogo, mas não é capaz de substituí-lo. O fundamentalismo tem conseguido impedir a união dos povos e parece que neste século será um entrave mais difícil de ser superado que os entraves econômicos, a paz só irá ser alcançada quando houver dentro de cada um a consciência de responsabilidade individual perante a sociedade em que está inserido.