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A limitação ou não dos poderes instrutórios do juiz pelas regras de divisão do ônus da prova

1 – INTRODUÇÃO2 – ÔNUS DA PROVA 3 – OS PODERES DO JUIZ DENTRO DA PERSPECTIVA DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO4 – REGRAS DE DIVISÃO DO ÔNUS DA PROVA E PODER INSTRUTÓRIO DO JUIZ

1 – INTRODUÇÃO

O presente artigo visa contribuir para a discussão relativa à limitação ou não dos poderes instrutórios do juiz pelas regras de divisão do ônus da prova. Vale dizer: de acordo com o atual estágio de evolução do direito processual civil o juiz deve ficar limitado à atividade probatória das partes ou pode, independentemente de tais regras, promover de ofício a produção probatória?

Para atingir tal intento, cumpre analisar a teoria do ônus da prova no direito processual civil, bem como fixar a atuação do juiz dentro da perspectiva instrumentalista do processo, o que se procede nos segundo e terceiro itens deste trabalho. A partir de tais elementos, fixa-se, no quarto item, a solução para o cerne do questionamento, através do embate entre os institutos do ônus da prova e dos poderes do juiz, balizado o debate pela perspectiva instrumentalista do direito processual.

2 – ÔNUS DA PROVA

As regras de divisão do ônus da prova são formalizadas em decorrência da impossibilidade de o julgador deixar de decidir, ou seja, tendo em vista a vedação do non liquet. Assim, tais regras são criadas para possibilitar a resolução das controvérsias nos casos em que não resulte provada a existência dos fatos principais. Ônus deriva do latim onus, significando carga, peso. De fundamental relevância, porém, a distinção entre ônus e dever em sentido amplo. Quando se diz que a parte tem um ônus, trata-se de uma faculdade não sujeita à coerção, mas que gera efeitos em seu prejuízo, no caso de inércia. Já o dever geralmente é ligado ao direito material e requer algum adimplemento, podendo a omissão caracterizar ilícito ou resultar em coerção. Assim, por exemplo, há o ônus de provar, mas, por outro lado, o dever de se proceder com lealdade e boa-fé.

De acordo com o artigo 333 do Código de Processo Civil, ao autor incumbe a prova do fato constitutivo do seu direito e ao réu a prova dos fatos extintivos, modificativos ou impeditivos do direito do autor. O parágrafo único do mesmo artigo autoriza a inversão do ônus da prova por convenção das partes, desde que não se trate de direito indisponível e que não torne excessivamente difícil o exercício do direito.

De salientar, entretanto, que as regras de distribuição do ônus da prova não são inflexíveis, entendendo a doutrina mais moderna que a interpretação de tais normas deve estar atenta às vicissitudes do direito material.

3 – OS PODERES DO JUIZ DENTRO DA PERSPECTIVA DA INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

De acordo com a doutrina contemporânea, o processo é um instrumento público de solução de conflitos. A partir de tal conceituação, a figura do juiz surge como “um agente estatal no desempenho de uma função pública, cujos objetivos são bem mais amplos do que a mera satisfação das partes envolvidas no litígio” (PUOLI, 2001, p. 21).

Nem sempre, contudo, a atividade do juiz foi assim entendida. Na época em que prevalecia a concepção privatística do processo, a função do juiz limitava-se a “regular o desenrolar do conflito, até o momento em que o processo tivesse condições de ser decidido” (PUOLI, 2001, p. 21). Justamente nesse período foram desenvolvidos e erigidos a lugar privilegiado, dentro da doutrina processual civil, os princípios dispositivo, da inércia e da imparcialidade do juiz, que tinham todos a função de servir como limites à atuação do magistrado.

Em oposição à figura do juiz do Estado liberal, assiste-se, com o surgimento da democracia social, à intensificação da participação do juiz, a quem cabe zelar por um processo justo, capaz de permitir, nas palavras de Marinoni e Arenhart:

i) a justa aplicação das normas de direito material, ii) a adequada verificação dos fatos e a participação das partes em um contraditório real e iii) a efetividade da tutela dos direitos, pois a neutralidade é mito, e a inércia do juiz, ou o abandono do processo à sorte que as partes lhe derem, não é compatível com os valores do Estado atual (MARINONI; ARENHART, 2000, p. 192).

Nesse sentido, atualmente, os princípios dispositivo, da imparcialidade e da inércia devem ser analisados a partir da visão publicística do processo . Ou seja, o juiz deve ser inerte e imparcial, mas não pode ser indiferente ao resultado da demanda. Isso porque o processo tem outras finalidades públicas além do atendimento do interesse das partes. Na realidade, “os objetivos de fazer atuar o Direito estatal e pacificar com justiça são mais importantes do que o mero interesse individual dos partícipes em terem a solução da causa levada para conhecimento da jurisdição” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2000, p. 40).

Dentro desse contexto, o direito brasileiro assiste a um progressivo aumento dos poderes outorgados ao juiz, para bem desempenhar suas atividades, sendo tal incremento consagrado pela legislação, doutrina e jurisprudência. Como exemplo, podem ser citados a valorização dos princípios constitucionais do processo, a crescente utilização, pela legislação material, em especial o novo Código Civil, de conceitos juridicamente indeterminados e as recentes alterações promovidas no Código de Processo Civil, em especial as relativas às condutas das partes, levadas a efeito pela Lei 10.358/01.

Além da ampliação dos poderes do juiz de forma geral, assiste-se ao reforço dos poderes especificamente instrutórios, ou seja, aqueles concedidos ao juiz na instrução da demanda para o alcance da mais ampla produção probatória possível. Isso porque, na realidade, um processo “verdadeiramente democrático, fundado na isonomia substancial, exige uma postura ativa do magistrado” (MARINONI; ARENHART, 2000, p. 192). É que não se pode permitir que os fatos relevantes para a solução da demanda deixem de ser verificados em razão da menor sorte econômica ou astúcia de uma das partes. Ao extremo, pode-se chegar até mesmo à conclusão de que “parcial é o juiz que, sabendo que uma prova é fundamental para a elucidação da matéria fática, queda-se inerte” (MARINONI; ARENHART, 2000, p. 193).

4 – REGRAS DE DIVISÃO DO ÔNUS DA PROVA E PODER INSTRUTÓRIO DO JUIZ

Os poderes instrutórios do juiz, de acordo com a doutrina clássica do direito processual civil , eram vinculados à natureza da relação material discutida no processo. Assim, tratando-se de direito disponível, a produção de provas deveria ficar exclusivamente a cargo das partes. Em caso de direitos indisponíveis ou de ordem pública, os poderes do juiz seriam ampliados.

De igual forma, tradicionalmente entendia-se que as regras de divisão do ônus da prova implicavam o limite estabelecido pelo legislador para a atuação do juiz . Ou seja, o magistrado somente estaria autorizado a promover a produção de novas provas quando, após sua regular apresentação pelas partes, estivesse ainda impossibilitado de proferir sua decisão.

Tal limitação da atividade do julgador pelas regras de divisão do ônus da prova, contudo, não é mais consentânea com o atual estágio de evolução do Direito Processual Civil. Conforme visto no item anterior, assiste-se, hoje, ao incremento dos poderes instrutórios do juiz com o propósito de assegurar efetividade à tutela jurisdicional. Dessa forma, entende-se, a partir da perspectiva instrumentalista do processo, que as regras de divisão do ônus da prova não limitam a atividade instrutória do juiz, a quem cabe velar para que o processo alcance a pacificação com justiça no caso concreto.

O poder instrutório do juiz, contudo, permanece balizado pelas garantias constitucionais do contraditório – art. 5º, inciso LV, CF e da obrigatoriedade de motivação – art. 93, inciso IX, CF. Assim, conquanto ampla, a iniciativa oficial da prova deve sempre observar o contraditório e estar devidamente fundamentada.

Assim, em apertada síntese conclusiva, pode-se fixar que no atual estágio de evolução da doutrina do direito processual civil, as regras de divisão do ônus da prova não devem constituir limite ao poder instrutório do juiz. Sua atividade deve, dessa forma, ser a mais ampla possível no âmbito da instrução processual, mas sempre balizada pela observância do contraditório e pela obrigatoriedade de motivação.