No último dia 17 de novembro, depois de uma longa tramitação de quase 13 anos, o Senado Federal aprovou parte da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 29 de 2000, a da Reforma do Judiciário. Entre as mudanças aprovadas pela Reforma, que deverá ser promulgada no próximo dia 8 de dezembro, Dia Nacional da Justiça, há muitos pontos considerados polêmicos, como a súmula vinculante em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e a instituição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que vai receber denúncias e reclamações contra juízes e servidores do Judiciário. Foram enviadas, para mais discussão na Câmara dos Deputados, entre outros, a súmula impeditiva de recursos e a criação dos juizados de instrução criminal. A primeira seria um dispositivo para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST) para impedir apelações em causas nas quais o juiz decidir de maneira idêntica à súmula. Já os juizados de instrução permitem a um mesmo juiz as tarefas de investigar e julgar. Uma lei deve determinar quais crimes poderiam ser julgados nesses juizados.
O presidente do STJ, ministro Edson Vidigal, afirma que a reforma se tornou uma exigência da sociedade, não só por imperativos legais e processuais, mas também de ordem administrativa. “A morosidade não pode ser simplesmente condenada, pois ela, no Brasil e em todo o mundo, é que torna o Poder Judiciário seguro, portanto ela deve ser enfrentada por etapas e com cuidado”, opinou o ministro. Entretanto a reforma ainda parece tímida para o ministro e “seria um ato de má-fé afirmar que essa reforma resolveria todos os problemas de lentidão da Justiça”. Essa opinião é compartilhada pelo juiz federal e professor de Direito Administrativo da UnB Flávio Dino de Castro, que, apesar de considerar a reforma boa, não crê que ela seja suficiente. “Ela lança as bases para uma justiça mais moderna e eficiente, até porque reconfigura o sistema judiciário do STF”, explica o juiz.
Já o relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, senador José Jorge (PFL – PE), acredita que, do ponto de vista constitucional, a Reforma foi muito abrangente e atendeu todos os pontos em que havia consenso. “Agora vem todo um trabalho de melhoria e simplificação no processos civil e penal”, pontua o relator. O presidente da CCJ, senador Edison Lobão (PFL – MA), diz que, assim que forem promulgadas as reformas, serão iniciadas as discussões das leis infraconstitucionais necessárias para a Reforma.
A súmula vinculante foi um dos pontos mais polêmicos. Ela vincula as decisões dos tribunais às decisões sumuladas pelo STF, nos casos de “ações repetitivas”, que têm características iguais, em especial causas relacionadas ao direito de consumidores, servidores públicos e previdência pública. Não será mais necessário que cada pessoa passe por toda a tramitação do processo para fazer valer seus direitos. Mas, para alguns juristas, a súmula vai engessar a interpretação das leis e vai contra o princípio do livre convencimento dos juízes.
“Não é bem assim”, afirma o professor Flávio Dino. A primeira razão seria que o juiz pode interpretar a súmula, para verificar se ela se aplica ao caso que julga. “Além disso a lei previu um mecanismo de revisão da súmula, que poderá ser pedida pelas mesmas pessoas e entidades que podem pedir ação direta de inconstitucionalidade (Adin), listadas no artigo 103 da Constituição Federal”, salientou. Ele também lembrou que o artigo 557 do Código de Processo Civil, a ADIN e a ação declaratória de constitucionalidade (Adecon) já têm um efeito de vinculação.
O ministro Edson Vidigal acredita que os processos no STF podem cair pela metade. Atualmente o Supremo recebe mais de 120 mil processos por ano. Em cinco anos, esse número pode cair para dez a vinte mil. “A súmula será como uma vacina mortal, que mata ali o processo”, compara o ministro Vidigal. O senador Edison Lobão vê a súmula como “a espinha dorsal do Reforma”. Para criar uma súmula, o tribunal deve ter tido decisões reiteradas sobre uma matéria e aprovar a nova súmula por um mínimo de dois terços de seus ministros.
Um ponto que o ministro Vidigal vê como positivo é a criação do CNJ, que, entre outras funções, desenvolveria políticas conjuntas para áreas administrativas, de comunicação e orçamentária. “Isso é necessário para que haja maneiras de economizar dinheiro público e buscar ações mais uniformes do ponto de vista dos tribunais”, declarou o presidente do STJ. “Temos que acabar com o mito de que o CNJ vai ser apenas nova corregedoria ou um ‘Big Brother’ forense. Suas funções de coordenação são ainda mais importantes que as de controle e punição”, afirma Flávio Dino. O juiz também afirma que o CNJ não é um controle totalmente externo do Judiciário. “Para começar, a maioria dos seus membros, nove dos quinze conselheiros, são juízes. Além disso, o órgão está vinculado ao próprio Poder Judiciário. Na verdade, ele está mais para um controle híbrido”, opinou.
O senador José Jorge vê o Conselho como um importante instrumento para se avaliarem os tribunais. “Na questão orçamentária, por exemplo, hoje cada tribunal faz seu próprio tribunal, sem um padrão. Agora o CNJ vai acompanhar a todos”, destaca. Quanto à questão de ser ou não um controle externo, o senador ponderou que “isso é mais um apelido que a mídia deu para essa questão”. Já o senador Lobão disse que há muitos outros mecanismos de controle judicial. “Cada tribunal tem seu corregedor e também há outros como o Ministério Público (MP), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a imprensa”, completou. Algumas medidas foram tomadas para aumentar a transparência do Judiciário, como a chamada “quarentena”. Após a aposentadoria, o juiz não poderá advogar no tribunal do qual se aposentou por um período de três anos. Com isso, um juiz que tivesse sido muito influente não teria acesso tão fácil aos seus colegas. Outra medida, que ainda será discutida na Câmara, é a proibição da nomeação de parentes.
Uma inovação introduzida pela PEC 29/2000 foi a criação da Escola da Magistratura, que ficará sob a responsabilidade do STJ. “Esse órgão é importante para melhorar a qualidade dos magistrados e convencionar certas posturas”, ressaltou o ministro Vidigal. O senador José Jorge afirmou que hoje os juízes e membros do Ministério Público estão entre os servidores públicos mais bem remunerados e geralmente quem passa nos concursos são mais jovens, que se formaram recentemente. “As atividades de um juiz são muito difíceis. O poder público deve criar mecanismos para aumentar a qualidade dos magistrados e garantir que eles tenham alta produtividade”, expôs o senador. Nesse sentido, outra regulamentação criada foi a exigência de no mínimo três anos de prática para ingressar na carreira de magistrado.
Nem todos estão muito otimistas com as reformas, como o ministro do STJ Peçanha Martins. “Como está, a Reforma não resolve nada. Precisamos promover uma mudança radical no processo judicial para garantir a todos os brasileiros o ideal da igualdade perante a lei”, opinou. O ministro espera que o Judiciário seja dotado de um processo mais funcional, que não favoreça uma minoria. O ministro Pádua Ribeiro também acredita que a Reforma ainda não atende todos os objetivos. “Creio que ela tem um caráter centralizador, mas há aspectos positivos, como a criação do CNJ e o aspecto do controle que ele tem, pois hoje há um excesso de autonomia nos tribunais”, ponderou. O ministro Pádua Ribeiro também salientou que as novas tecnologias, como a internet, tornaram o mundo mais rápido e que o Brasil precisa ter um Judiciário ágil para acompanhar os novos tempos.
HISTÓRIA DA REFORMA
1992: A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 96 é apresentada pelo deputado petista de São Paulo Hélio Bicudo para modificar o sistema jurídico.
1993-94: O relator da PEC 96/92, Nelson Jobim (PMDB-RS), atual presidente do STF, propõe a súmula vinculante e um maior controle do Judiciário.
1995: A Câmara dos Deputados cria uma comissão especial para analisar o projeto. Jairo Carneiro (PFL – BA) é escolhido como relator. Ele sugere a criação do CNJ e o fim dos órgãos normativos da Justiça de Trabalho e juízes classistas.
1998: A Comissão Especial encerra seus trabalhos sem chegar a um consenso sobre a reforma.
1999: A Comissão é reativada, tendo o deputado Jairo Carneiro como presidente e Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) como relator. Em junho desse ano, o deputado Aloysio Nunes apresentou seu relatório, mas este foi recusado pela OAB, oposição e magistrados, que consideraram centralizadora a proposta. Em agosto, Aloysio Nunes é substituído no cargo pela deputada Zulaiê Cobra (PSDB – SP). Em setembro a deputada apresenta seu relatório, que também é rejeitado. Em outubro, uma terceira versão do relatório é apresentado e aprovado.
2000: Em janeiro, o relatório de Zulaiê Cobra é apresentado no plenário da Câmara, emendado e aprovado em primeiro turno. Em junho é aprovado em segundo turno na Câmara e é encaminhado ao Senado, tendo sido renumerada como PEC 29/2000. Em abril, o senador Bernardo Cabral (PFL – AM) se torna relator da matéria e encaminha seu relatório para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
2002: O novo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, pede o adiamento da análise da PEC para o seu governo.
2003: O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, chega a sugerir que o projeto da reforma retornasse para a estaca zero, mas posteriormente o Governo desiste da idéia e a PEC retorna para a CCJ. Em julho, o senador José Jorge (PFL – PE) é nomeado relator.
2004: A CCJ aprova a PEC 29/2000 em maio e encaminha para a votação no plenário Senado. Em novembro o Senado aprova em segundo turno e agora a PEC aguarda promulgação.
OUTRAS MUDANÇAS NO JUDICIÁRIO:
· Repercussão geral: Os ministros do STF podem votar, por uma maioria de dois terços, que recursos serão julgados, tendo como critério a relevância da matéria para o país e sociedade. É um sistema semelhante ao usado nos Estados Unidos.
· Conselho Nacional do Ministério Público: tem estrutura e funções semelhante ao CNJ e terá 14 membros.
· Defensorias públicas – Vai representar cidadãos que não podem se defender por falta de recursos. Agora terão independência financeira e administrativa. Considerada importante para aumentar o acesso ao Judiciário.
· Federalização de crimes contra direitos humanos: em casos em que as investigações não avancem em crimes como os de tortura e homicídio por grupos de extermínio, o procurador-geral da República poderá pedir ao STJ que a matéria seja julgada na Justiça Federal.
· Justiça itinerante: tribunais estaduais e federais poderão levar atendimento judiciário ao cidadão com dificuldades de acessar a Justiça, em especial em favelas e pequenas cidades.