No ordenamento constitucional há normas que, sem embargo de uma densidade jurídica mínima, são inexecutáveis, antes da sobrevinda de uma legislação complementar, que lhes especifique os elementos faltantes à sua incidência. Deste modo, numa acepção muito ampla, toda norma infraconstitucional é complementar à Lei Maior.23 Assim, leis complementares da Constituição são todas as leis que a completam, tornando plenamente aplicáveis os seus dispositivos ou desenvolvendo os princípios neles contidos.24 A Emenda parlamentarista nº 4 de 02 de setembro de 1962 foi o primeiro documento jurídico constitucional que empregou a palavra complementar referindo-se à uma atuação normativa específica, determinada em razão do quorum mínimo para sua aprovação. Esta era a redação do seu art. 22: “Poder-se-á complementar a organização do sistema parlamentar do governo ora instituído, mediante leis votadas, nas duas Casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta dos seus membros.” No entanto, a expressão lei complementar apareceu pela primeira vez no art. 6º, §8º da Emenda Constitucional nº 17/65, que assim dispunha: “Os projetos de lei complementares da Constituição e os de Código ou reforma do Código receberão emendas perante Comissões, e sua tramitação obedecerá aos prazos que forem estabelecidos nos Regimentos Internos ou em resoluções especiais.” Atento à redação das EC nº 17/65 e EC nº 18/65 – esta apenas referindo-se às leis complementares como um dos meios possíveis para regular o Sistema Tributário Nacional -, adverte Celso Ribeiro Bastos que, “apesar de se fazer menção à lei complementar (…), não se verifica nenhuma exigência das nossas Constituições no que diz respeito à necessidade de quorum especial ou qualificado para aprovação de tais leis.”25 Eram chamadas de leis complementares aquelas que tangiam instituições e regulavam os pontos sensíveis do ordenamento jurídico.26 Vê-se que, embora conceituadas como lei complementares, não se tratavam da espécie normativa que hoje conhecemos. Até então, somente a EC nº 04/62 tinha feito expressa referência a um quorum qualificado para a edição desta espécie normativa, bem como a reservar-lhe matéria específica. Devemos esclarecer, ainda, que no trato das leis complementares, a doutrina costuma reporta-se às leis orgânicas francesas,27 que teriam o condão de complementar as disposições constitucionais, sem cair no terreno comum das leis ordinárias, e que teriam sido agasalhadas, por exemplo, pelo art. 39, nº1 da Constituição de 1934, in verbis: “Compete privativamente ao Poder Legislativo, com a sanção do Presidente da República: decretar leis orgânicas para a completa execução da Constituição.” Estas leis teriam, assim, um caráter de paraconstitucionalidade, pois seu objeto seria matéria atinente ao direito constitucional. Entretanto, esta espécie normativa não era dotada de qualquer peculiaridade formal, contentando-se com uma singela nomenclatura diferenciada, o que impede uma distinção significativa e digna de nota. Além disso, a lei orgânica não vinculava diretamente a validade de outras espécies normativas editadas pelo próprio Parlamento, o que descaracteriza sua superioridade hierárquica. Assim, somente com o advento da Constituição de 1967 é que a lei complementar chega a sua concepção atual, como espécie normativa autônoma. Desde então, à lei complementar é reservada matéria própria e exigido, para sua aprovação, maior consenso político. Finalmente, coube à Constituição de 1988 o mister de ampliar o campo de atuação da lei complementar e de difundir suas características meramente formais, descaracterizando seu aspecto etimológico28 e ontológico29. 23 In, Celso Ribeiro Bastos, Lei Complementar – Teoria e Comentários, Freitas Bastos, p. 15. 24 In, José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, Malheiros, 3ª ed., p. 228. 25 Sobre o histórico da lei complementar em estudo aprofundado, bem como maiores detalhes, remetemos o leitor à preciosa monografia de Celso Ribeiro Bastos. Lei Complementar – Teoria e Comentários, p. 36. 26 In, Sacha Calmon Navarro Coêlho, Curso de Direito Tributário Brasileiro, Forense, 2ªed., p. 96. 27 Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 241. 28 Em dura crítica a Hugo de Brito Machado, que prega a superioridade hierárquica de qualquer lei complementar às leis ordinárias, José Afonso da Silva, embora admita a superioridade hierárquica de algumas leis complementares, ensina que ao admiti- la indiscriminadamente ingressaríamos “num mero nominalismo inconseqüente, porque bastaria pôr o nome num ato legislativo de lei complementar para que tivesse essa natureza, sem nenhuma correspondência às exigências constitucionais.” In, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 250. 29 “O fenômeno lei complementar, entendido este como espécie de norma definida a partir do quorum necessário para sua alteração, é algo contingente e que não pode ser plenamente compreendido senão à luz do sistema jurídico que o instaurou.” In, Celso Ribeiro Bastos, Lei Complementar – Teoria e Comentários, p. 41.
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