“O lapso temporal que se interpõe entre a publicação e o termo inicial da vigência é a conhecida vacatio legis, tempo em que a regra é válida como entidade jurídica do sistema, mas não adquiriu a força que lhe é própria para alterar, diretamente, a conduta dos seres humanos, no contesto social.”
A Lei 10.406 de 10/01/02 (NCC/02) entrou em vigor no dia 11/01/03, regulando os negócios e demais atos jurídicos ocorridos após 10/01/03.
A questão da aplicação do NCC/02 nos negócios e demais atos jurídicos iniciados antes de sua vigência tem gerado grande discussão na doutrina.
“Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”
O artigo 2.035 e p.ú. do NCC/02 determina que os negócios e demais atos jurídicos constituídos anteriormente à vigência do NCC/02 são regidos pelo Código Civil de 1916 quanto à sua validade e pelo NCC/02 quanto aos efeitos produzidos após a vigência deste. Este artigo do NCC/02 é bem claro no sentido da aplicabilidade imediata deste nos negócios e demais atos jurídicos não encerrados (que geram efeitos), com força de preceitos de ordem pública, que se aplicam erga omnes e não podem ser afastados nem pela vontade das partes.
O limite à aplicação temporal do NCC/02 é o artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, in verbis:
“Art. 6º da LICC. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. §1º. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.”
Todavia, são atos jurídicos perfeitos somente os negócios e demais atos jurídicos praticados, consumados, concluídos e encerrados na vigência da lei anterior, ou seja, que não mais geram efeitos.
As disposições finais e transitórias do NCC/02 são taxativas, sobre a aplicação deste sobre as associações, sociedades (empresas) e fundações constituídas na forma das leis anteriores (art. 2.032), que tem um ano para se adaptarem (art. 2.031) às novas regras. Este se aplica também sobre as sucessões não abertas (art. 2.041). Somente sobre o regime de bens nos casamento, o legislador, no art. 2.039, optou pela não aplicação aos casamentos celebrados antes da vigência deste.
Os lobistas dos “Dinossauros” (Grandes e Poderosos: Donos de Shopping Centers, Bancos, Cartões de Crédito, Construtoras e Administradores de Condomínios) tem defendido que o NCC/02 não se aplica nas (suas) relações contratadas ou iniciadas antes da vigência deste, fundamentando esta posição no art. 6º, § 1º, da LICC , que protege o ato jurídico perfeito. Todavia, conforme já esclarecido, isto não procede, pois este é o ato praticado e concluído na vigência da lei anterior, que não mais gera efeitos. Estes tem medo e não querem a aplicação do princípio protetivo da função social da propriedade e dos contratos, que será abordado neste artigo.
Os condomínios alegam que sua convenção é ato jurídico perfeito, para se escusar de respeitar e aplicar o art. 1.336, §1 do NCC/02, que reduz a multa de atraso para 2%. Se fosse assim, as associações, sociedades (empresas) e fundações também não teriam que se adequar aos novos tempos (preceitos do NCC/02). Todavia, este entendimento está equivocado (não tem base legal) e será repelido pelo Judiciário. A multa de 2% pelo atraso estimula o pagamento com atraso, agravando os problemas de fluxo de caixa e inadimplência, mas é o que determina o NCC/02, sendo um Direito incontestável do Condômino.
Do NCC/02 e o CDC (Consumidor)
Também gerou polêmica na doutrina a questão da relação entre o NCC/02 e o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Onde alguns até apontaram a inexistente derrogação do CDC. O NCC/02 é norma geral que se aplica em todas as relações civis. Já o CDC é lei específica que continua em seu pleno vigor e aplicabilidade, quanto às relações de consumo, regulamentando o Art. 5º, XXXII da CF. Numa relação de Consumo se aplicará o NCC/02, como norma geral, e também o CDC, como norma específica, quando mais benéfica. O art. 7º do CDC reconhece “outros direitos”, desta forma, a função social dos contratos também deve ser aplicada nas relações de consumo, além do Princípio do Dirigismo Contratual.DOS CONTRATOS e sua FUNÇÃO SOCIAL
Transcreverei quatro trechos de brilhantes artigos sobre o tema para introdurir e corroborar as conclusões que apresentarei posteriormente: “A função social dos contratos (art. 421 do NCC/02) é cláusula geral, que é o texto de lei que atribui ao juiz um campo mais amplo para a integração da norma jurídica. Tais textos apresentam conceitos vagos ou indeterminados, que devem ser complementados pelo prudente arbítrio do juiz, pois exigem uma avaliação de seu significado. Exemplos: boa-fé, justa causa, abuso de direito.”
“O art. 421. determina que a “liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. O Código apenas está a refletir a tendência do Direito atual onde a liberdade egoísta e o individualismo voluntarista estão praticamente condenados diante do interesse social. Hoje não podemos mais entender a teoria da autonomia da vontade de uma maneira ampla e irrestrita. Os princípios da liberdade de contratar e do pacta sunt servanda têm que ser avaliados e compreendidos diante de um contexto muito maior, que é o da função econômico-social que deve ter todo negócio jurídico. Por isso, diante do conflito entre ser obedecida a vontade individual dos contratantes e ser atendido o interesse social sempre há de ficar-se com este último. Desta forma, vemos dentro de todo direito privado moderno cada vez mais o aparecimento de leis que tentam coibir os abusos que os interesses particulares, inspirados pela ganância, cometem dentro das negociações. Podemos lembrar as várias leis do inquilinato, o direito consumerista, as leis que reprimem o abuso do poder econômico e assim por diante.”
“Orlando Gomes, havia dito que “orienta-se modernamente o Direito das Obrigações no sentido de realizar melhor equilíbrio social, imbuídos seus preceitos não somente da preocupação moral de impedir a exploração do fraco pelo forte, senão também, de sobrepor o interesse coletivo, em que se inclui a harmonia social. … a liberdade de contratar ainda é aquela mesma liberdade facultada a todas as pessoas de realizarem suas avenças, sem qualquer consideração sobre eventual restrição de conteúdo do contrato em foco, limitação essa que seja decorrente de uma determinada norma de ordem pública. Em outras palavras, a liberdade de contratar revela, exclusivamente, a liberdade que cada um tem de realizar contratos, ou de não os realizar, de acordo com a sua exclusiva vontade e necessidade. Por isso, é naturalmente limitada, uma tal liberdade.”
“O contrato não se limita a revestir passivamente a operação econômica de um véu legal de per si não significativo, mas deve orientar as operações econômicas de forma a atender aos princípios básicos de nossa sociedade: a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; a equidade; a solidariedade e a produção de riquezas (Art. 1º e 3º, da CF). Toda a vez que a operação economicamente revestida pelo contrato violar um desses objetivos, tem-se que ela não cumpriu sua função social” .
A Função Social da propriedade e dos contratos (art. 421) é um principio de proteção positivado, direito de terceira geração, ou seja, voltado à proteção do ser humano, resultado do direito evolutivo, decorrente dos princípios da igualdade jurídica e efetividade, frutos do estado democrático de direito, que já era contido no art. 5º da LICC. “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” A Função Social é um instrumento jurídico que dá ao Juiz maior poder para relativisar o arcaico pacta sunt servanda e nivelar as relações jurídicas desiguais, diante do caso concreto, aplicando e expandindo os preceitos protetivos já consolidados na legislação consumerista para as relações jurídicas civis em geral, não mais permitindo abusos, distorções, vantagens exageradas e arbitrariedades negociais. Ou seja, o sistema permitirá ao Juiz analisar a vontade real das partes, adequando, equilibrando e revisando os contratos celebrados e obrigações e deveres entre as partes, consideradas nas suas características pessoais e sociais. O Legislador optou em proteger os mais fracos (hipossuficiente técnico ou econômico) em qualquer relação civil, reequilibrando as desigualdades e atingindo à sua função social.
Um contrato firmado antes de 11/01/03 (antes da vigência do NCC/02), é regido pelo Código de 1916 quanto à sua validade e pelo NCC/02 quanto aos efeitos produzidos após sua vigência. Um contrato de trato continuado que ainda produz efeitos poderá ser alvo de Ação Revisional para discussão de cláusulas leoninas, abusivas e injustas sob a ótica do NCC/02, ou seja, utilizando a protetiva função social dos contratos.
“no Estado social … A vulnerabilidade jurídica vai além da debilidade econômica da parte contratante, pois interessa o poder negocial dominante, ou seja, aquela que se presume impor sua vontade e seu interesse à outra. A presunção é definida em lei, como se dá com o consumidor, no CDC, e com o aderente, no NCC. A presunção é absoluta e não pode ser contrariada pela consideração do caso concreto. O consumidor e o aderente, ricos ou pobres, são juridicamente vulneráveis, pois submetidos ao poder negocial da outra parte.”
Ds. Magistrados, tenham coragem, sabedoria e ousadia, ao aplicar as disposições do NCC/02 nas relações e contratos vigentes, ou seja, os que produziram efeitos após 11/01/03, revendo judicialmente desequilíbrios contratuais e negociais, atingindo a tão desejada JUSTIÇA !
São Paulo, 22/04/2003.
Paulo de Barros Carvalho – Curso de Direito Tributário O Condomínio edilício no novo Código Civil. Carlos Alberto Dabus Maluf. Fl. 65 In Revista do Advogado nº 68. Neste sentido ver http://www.sindico.com.br/informese/view.asp?id=893
Neste sentido ver o artigo Princípios Sociais dos Contratos no CDC e no Novo Código Civil de Paulo Luiz Netto Lobo (www.jus.com.br) Maximilianus – Resumo DC
O estado de perigo como defeito do negócio jurídico. Teresa Ancona Lopez. Fl. 56 In Revista do Advogado nº 68.
Contrato: estrutura milenar de fundação do direito privado. Giselda Maria Fernandes Novaes Hinronaka. Fl. 85 In Revista do Advogado nº 68.
Teoria Geral dos Contratos no Novo Código Civil, Luiz Guilherme Loureiro. São Paulo, Método, 2002. Fl. 52. Ver nota 4 – Princípios Sociais dos Contratos no CDC e no Novo Código Civil