O Ministério Público é legítimo para propor ação representando proprietários de imóveis contra cláusulas abusivas contratadas, em seus nomes, pela construtora junto a instituição que tenha financiado a construção do imóvel. Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça confirmou as decisões que liberaram os apartamentos de quatro prédios construídos pela Encol S/A, no Setor Sudoeste, em Brasília, de hipotecas contratadas junto ao Banco do Estado de Minas Gerais – Bemge. A dívida deixada pela empresa falida junto ao Bemge impedia o registro oficial dos imóveis.
O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios entrou com uma ação civil pública contra a Encol S/A e o Bemge. No processo, encaminhado pela Quinta Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos do Consumidor, o MP destacou algumas irregularidades encontradas nos contratos firmados com o banco para financiar as obras dos edifícios Porto Novo, Porto Alegre, Porto Castelo e Porto Nobre, em Brasília. Com base nas falhas do acordo, o MP requereu a anulação da cláusula do contrato entre os compradores e a Encol que autorizaria a construtora, ao buscar financiamentos para as obras, a oferecer as unidades como garantia. O MP também requereu a anulação da cláusula, desta vez no contrato entre a Encol e o Bemge que hipotecava os apartamentos dos quatro prédios.
De acordo com o MP, o Bemge teria concedido os empréstimos para as construções com recursos do Sistema Financeiro de Habitação – SFH recebendo da Encol, como garantia, as unidades dos quatro prédios. Dessa forma, segundo o MP, “os consumidores promitentes compradores das unidades situadas nos empreendimentos não podem livremente dispor de seus imóveis, pois pesa sobre as mesmas o ônus hipotecário como garantia à instituição financeira”. E os valores devidos ao Bemge não seriam nada baixos. O saldo devedor já ultrapassaria, em 1997, mais de R$ 2 milhões por prédio, e as garantias hipotecárias, por obra, mais de R$ 3 milhões.
O Bemge, em sua defesa, afirmou que não providencia as baixas das hipotecas porque a dívida não foi quitada pela Encol. Mas o MP, em sua ação, alegou que os contratos poderiam ser anulados. Segundo o representante dos compradores, o contrato seria irregular, uma verdadeira fraude contra os adquirentes. “As operações realizadas, mascaradas de empréstimo destinado à construção, serviram à Encol para que utilizasse recursos do SFH, destinados à construção de imóveis, como capital de giro”, enfatizou o MP destacando a estranha rapidez com que as obras foram executadas. “Esta a única conclusão que se pode tirar da ‘meteórica’ construção de oito pavimentos de cada um dos edifícios”. Da análise dos contratos, o MP concluiu que, um dos prédios, o Porto Novo, teria sido construído em apenas 30 dias.
A primeira instância acolheu o pedido do MP. A sentença declarou nulas as cláusulas apontadas pelo MP e determinou a averbação definitiva do cancelamento das hipotecas. A Encol e o Bemge apelaram, mas o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios confirmou a sentença. Com isso, o Bemge recorreu ao STJ. De acordo com o recurso, o MP não seria legítimo para entrar com uma ação civil pública defendendo direitos de particulares sem interesse social, apenas individual. O recorrente também afirmou que o Código de Defesa do Consumidor não incidiria sobre os contratos em questão, pois a venda dos imóveis não caracterizaria uma relação de consumo. Além disso, as cláusulas estariam fundadas no princípio da boa-fé e as hipotecas favoráveis ao Bemge deveriam prevalecer em relação aos direitos dos compradores perante à Encol.
A ministra Nancy Andrighi rejeitou o recurso mantendo as decisões que anularam as cláusulas abusivas e cancelaram as hipotecas dos quatro prédios. “A dimensão do dano causado aos consumidores pela extensão dos negócios entabulados pela construtora falida, sob o enfoque comunitário, são de extremada importância pois a iniquidade de uma cláusula que permite à incorporadora oferecer o imóvel alienado em hipoteca por dívida sua mesmo após a sua conclusão ou a integralização do preço combinado é hipótese que causa dano não só ao patrimônio da empresa como também ao patrimônio de inúmeros brasileiros”. Com essa afirmação, a relatora concluiu pela legitimidade do MP destacando que “a relevância do bem jurídico justifica a atuação do Ministério Público”.
Com relação à incidência do CDC, Nancy Andrighi também manteve o entendimento do TJDFT. “Não resta dúvida de que há relações de consumo existente entre a empresa incorporadora e os promitentes compradores da unidade imobiliária”. No caso, segundo a ministra, a Encol “enquadra-se no conceito de fornecedora de produto (imóvel) e prestadora de serviço (construção de imóvel nos moldes da incorporação imobiliária) e os recorridos (compradores) como consumidores finais”.
A respeito da afirmação dos recorrentes de que as cláusulas seriam de boa-fé, a relatora lembrou que essa discussão exigiria a interpretação de cláusula e reexame de provas, ambos proibidos em recurso especial pelas súmulas 5 e 7, respectivamente. Nancy Andrighi também destacou as conclusões do TJDFT de que o Bemge sabia que os documentos já estavam registrados e os imóveis já haviam sido alienados. E, por tal razão, o banco estava ciente de que a Encol não poderia mais dar em hipoteca as unidades imobiliárias. Mas, segundo a ministra, verificar o efetivo conhecimento do banco também depende de reexame de provas, vedado em recurso especial.