O Supremo Tribunal Federal (STF) acolheu o recurso de familiares de um pescador que pretendem que a República Federal da Alemanha os indenize pela sua morte, em 1943, quando um barco pesqueiro foi afundado por um submarino alemão na costa brasileira. Por maioria, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 954858, com repercussão geral (Tema 944), o Plenário fixou a tese de que Estados estrangeiros que pratiquem atos em violação aos direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição no Brasil e podem responder judicialmente por eles.
Guerra
O ataque ao barco pesqueiro Changri-lá matou dez pescadores em julho de 1943, durante a II Guerra Mundial, em mar territorial brasileiro, nas proximidades de Cabo Frio (RJ). Em 2001, o Tribunal Marítimo reconheceu, oficialmente, que a causa do naufrágio fora o torpedeamento da embarcação pelo submarino U-199 alemão, levando os netos e as viúvas dos netos de um dos pescadores a ajuizar, em 2006, a ação de ressarcimento de danos materiais e morais.
Na primeira instância, a ação de reparação foi extinta sem resolução de mérito, pois o juízo da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro declinou de sua competência. A família recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas o recurso não foi admitido com base na jurisprudência daquela Corte, que impede a responsabilização de Estado estrangeiro por ato de guerra.
Direito ao acesso à Justiça
No recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, a família do pescador sustentou que deve ser considerada a submissão expressa da Alemanha, por tratados internacionais, à jurisdição do local onde foram praticados os crimes de guerra e contra a humanidade durante o regime nazista. Argumentaram, ainda, que não há ato legítimo de império (decorrente do exercício do direito da soberania estatal) na prática de crime de guerra e contra a humanidade já julgados e condenados por Tribunal Internacional nem imunidade de jurisdição para atos atentatórios aos direitos humanos.
Prevalência dos direitos humanos
O julgamento foi iniciado em março deste ano e suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.
Em seu voto, o relator, ministro Edson Fachin, destacou a prevalência dos direitos humanos como princípio que rege o Estado brasileiro nas suas relações internacionais (artigo 4º, inciso II, da Constituição Federal). Segundo ele, a partir da Constituição de 1988, os atos de gestão praticados por Estado estrangeiro passaram a ser passíveis de questionamento na Justiça brasileira. Contudo, não havia a mesma previsão para os chamados atos soberanos de império, como no caso do ataque alemão ao pesqueiro no litoral brasileiro.
O ministro citou vários países onde a imunidade de jurisdição vem sendo relativizada ou afastada para casos de atos de império ou de crimes contra a humanidade. Lembrou, também, que o Brasil ainda não se vinculou à Convenção das Nações Unidas sobre a Imunidade de Jurisdição dos Estados ou a tratado congênere e que prevalece, aqui, o chamado Direito costumeiro, que também deve estar em conformidade com a Constituição Federal.
“Um crime é um crime”
Na avaliação do ministro, em decorrência da situação, as famílias das vítimas, além de privadas de seus entes queridos e da subsistência que eles proviam, foram privadas da resposta, do direito à verdade e do acesso à Justiça, o que considera mais uma violação de direitos humanos. “Um crime é um crime”, afirmou. “A imunidade, assim, deve ceder diante de um ato atentatório aos direitos humanos”.
Acompanharam o entendimento do ministro Edson Fachin, no sentido de que a imunidade de jurisdição não é absoluta e que pode ser afastada em caso de crimes contra os direitos humanos, as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia e os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso.
Imunidade absoluta
Para a corrente que divergiu do relator, aberta pelo ministro Gilmar Mendes, é absoluta a imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro por atos de império, inclusive os praticados em contexto de guerra. Segundo o ministro, deve ser mantida a jurisprudência do STF nesse sentido, que reflete, também, a interpretação majoritária da comunidade internacional, “sob pena de criarmos um incidente diplomático internacional”. Seguiram a divergência os ministros Marco Aurélio (aposentado), Alexandre de Moraes, Nunes Marques e Luiz Fux.
Tese
A tese de repercussão geral fixada foi a seguinte: “Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição.”