A Ordem dos Advogados do Brasil, seção de São Paulo, emitiu nota pública a respeito do trabalho infantil
Nota pública – Trabalho infantil
As Comissões Secionais da OAB vêm, em conjunto e publicamente, manifestar-se sobre declarações da Presidência da República sobre trabalho infantil, divulgadas em 04 de julho de 2019.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad, 2014), naquele ano eram 2,7 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando em todo o território nacional[1]. Vale destacar que dois fatores agravam a vulnerabilidade infantil quando a questão é o trabalho: de um lado, o fator etário, que faz com que essa exploração se concentre na faixa de 10 a 15 anos e, de outro, a raça, que coloca crianças negras e pardas como principais vítimas de trabalho infantil no Brasil (Unicef, 2015).
Importante considerar que o artigo 227 da Constituição Federal inaugura a doutrina da proteção integral da infância e adolescência e estabelece que os direitos de crianças e adolescentes devem ser promovidos e protegidos em primeiro lugar, de forma absolutamente prioritária, pelo Estado, pela família e pela sociedade. A partir dessa norma constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece crianças e adolescentes como pessoas em especial condição de desenvolvimento e como sujeitos de direito, dignas de receber proteção integral e de ter garantido seu melhor interesse, e por isso estabelece que seus direitos devem ser priorizados em políticas, orçamento e serviços públicos. Ainda, assegura a integridade biopsíquica e veda qualquer tipo de violência ou exploração de crianças e adolescentes, inclusive o trabalho infantil.
No Brasil é proibido qualquer trabalho aos menores 16 anos, exceto na condição de aprendiz, que pode ser exercida a partir dos 14 anos, sendo também vedado o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de 18 anos, conforme previsão do artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal. Ainda, os artigos 60 a 69 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), em complemento ao texto constitucional, regulam a profissionalização e proteção no trabalho.
Inaceitável, portanto, que declarações da presidência da República contrarie normativas nacionais e internacionais, conforme estabelecido pela Organização Internacional do Trabalho nas Convenções 06 (trabalho noturno de crianças e adolescentes), 138 (idade mínima de admissão ao trabalho) e 182 (piores forma de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação).
A rotina de esforço excessivo e responsabilidades múltiplas interfere gravemente na saúde, na educação e no lazer de meninas e meninos, prejudicando seu desenvolvimento a ponto de repercutir por toda sua vida. Justamente por isso não podemos alimentar tal prática em nosso cotidiano. Mais do que isso, é preciso exigir do poder público a criação e o fortalecimento de políticas públicas de combate, fiscalização e prevenção ao trabalho infantil.
Para além da declaração citada, medidas governamentais recentes, como a redução e contingenciamento de recursos na área e a desarticulação da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), tendem a enfraquecer a proteção à infância e à adolescência, ao precarizar as políticas de enfrentamento e prevenção ao trabalho infantil.
Nesse contexto de potenciais retrocessos, é fundamental somar esforços para proteger crianças e adolescentes do trabalho precoce. Assim, importante reconhecer a responsabilidade de todas e todos, especialmente de operadores do Direito, na fiscalização. Perante uma situação de trabalho infantil, é preciso denunciar para o Disque Direitos Humanos (100), ou ainda comunicar o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Conselho Tutelar da região.
Ademais, é de suma importância o comprometimento do poder público em continuar investindo na erradicação do trabalho infantil — e não tomando medidas que tendem a contribuir para sua propagação, tampouco emitindo declarações que, equivocadamente, naturalizam tal violação de direitos. Tal postura se choca com a norma constitucional da absoluta prioridade de crianças e adolescentes. Além de evitar retrocessos na erradicação do trabalho infantil, é preciso avançar nesse tema. Somente com comprometimento de todas e todos e, especialmente, do poder público, é que isso será possível e o país honrará seus compromissos e normas e, mais do que isso, a infância e adolescência brasileiras.
São Paulo, 05 de julho de 2019
Comissão Especial de Direitos Infantojuvenis da OAB SP
Comissão do Direito de Trabalho da OAB SP
Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB Pará
Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB Rio de Janeiro
Comissão da Infância e Juventude da OAB Mato Grosso
[1] Já em 2017, dados da Pnad com base em uma nova metodologia, bastante questionada por excluir crianças e adolescentes em situação de trabalho doméstico apontavam que o número teria caído para 1,8 milhões. A nova metodologia exclui da contagem as pessoas que trabalham para “construção e produção para consumo próprio” configurando assim, segundo a Procuradora do Trabalho Elisiane Santos, “um visível mascaramento da realidade social trágica de milhões de crianças e adolescentes que pode trazer efeitos perversos nas estratégias de enfrentamento do problema”, pois excluem das estatísticas 716 mil crianças e adolescentes até 13 anos de idade que trabalham, por exemplo, na agricultura familiar e no trabalho doméstico – ambas categorias incluída na classificação “próprio consumo”.