O juiz Alcir Kenupp Cunha, da Vara do Trabalho de Gurupi (TO), condenou a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) ao pagamento de mais de R$ 20 milhões em indenizações por discriminar e demitir empregada com deficiência visual aprovada em concurso público de 2011, sob a alegação de que ela não teria condições de exercer as atribuições do cargo de agente de correios/atendente comercial. Na sentença, o magistrado determinou o pagamento de R$ 188.550,00 a título de danos morais para a autora da ação; R$ 10 milhões de dano social em favor do Fundo de Amparo ao Trabalhador; e mais R$ 10 milhões por dano moral coletivo destinado à entidade filantrópica Associação dos Portadores de Deficiência do Estado do Tocantins (APODECETINS).
A decisão foi dada com base numa extensa transcrição de documentos, depoimentos de testemunhas, laudos técnicos, legislação, normas internas da ECT e manifestações de órgãos públicos. De acordo com os autos, a autora da reclamação trabalhista, que é deficiente visual, concorreu à vaga destinada a pessoas com deficiência e foi aprovada em todas as fases do concurso público, inclusive, foi considerada apta a ocupar o cargo – após exames e perícia médica para avaliar a qualificação e compatibilidade entre as atribuições da vaga e a deficiência da funcionária concursada. Depois da contratação, ela participou de treinamento na cidade de Palmas (TO), junto com outros aprovados não deficientes.
Durante a fase de treinamento, a funcionária com deficiência disse que não foram oferecidas condições de acessibilidade compatíveis com sua condição, porque os computadores não eram adaptados e não recebeu apostila em Braile. Segundo informações do processo, a empregada foi lotada na cidade de Marianópolis – distante 288 quilômetros de sua residência – e obrigada a tomar posse, sob pena de perder a vaga, mesmo depois de solicitar remanejamento devido sua condição física que a impedia de morar sozinha em outra localidade. Sem alternativa, a trabalhadora tomou posse e se instalou na localidade, levando uma pessoa da família para auxiliá-la. Ao começar a trabalhar na agência dos Correios, percebeu que não tinham sido realizadas adaptações necessárias e compatíveis com sua deficiência.
No dia 30 de dezembro de 2011, a funcionária recebeu a informação de que, após avaliação de uma equipe multiprofissional, a ECT havia decidido demiti-la por não conseguir desempenhar suas atividades com êxito. Em sua defesa, a empresa alegou que essa equipe multiprofissional era altamente especializada e preparada para atender às necessidades da empregada com deficiência visual, a qual nada requereu sobre impugnação à composição da equipe ou sobre a necessidade da presença de outros profissionais. Como argumento, a ECT disse ainda que todas as atividades desempenhadas pelos Correios necessitam de leitura de objetos e que não houve ato ilegal ou discriminatório.
Desrespeito – Para o juiz do trabalho Alcir Kenupp Cunha, a ECT jamais quis contratar a autora da ação ou qualquer outra pessoa com deficiência. “A previsão constante do edital do concurso da reclamada é mero atendimento de exigência constitucional e legal, que é desrespeitada logo após as fases iniciais do certame, para o fim de, por meio de arremedo de ‘acompanhamento’ e ‘avaliações’, eliminar nas etapas seguintes as pessoas com deficiência que ‘ousaram’ ser aprovadas no concurso”, afirmou o magistrado na sentença. Segundo ele, a Empresa de Correios, por meio de norma interna, chegou a institucionalizar a discriminação. “As pessoas com deficiência são tratadas primeiramente como doentes, pois são denominadas ‘portadoras de deficiência’. E, pior, são tratadas pela sigla ‘PD’, tratamento completamente voltado à exclusão”, avaliou.Além disso, o magistrado considerou que não houve cumprimento das normas do edital do concurso, o qual dispõe sobre a avaliação e acompanhamento do trabalho da pessoa com deficiência, desde o início do processo de formação e durante o período de experiência, por equipe multidisciplinar composta por especialistas e funcionários que exerçam o mesmo cargo. “O que ocorreu foi um procedimento sumário de ‘avaliação’ da autora em ambiente de trabalho não adaptado a sua deficiência, que durou apenas uma hora”, constatou o juiz do trabalho. Na opinião dele, a “avaliação” foi feita exigindo-se que a funcionária tivesse condições de realizar as atividades da mesma forma que uma pessoa sem deficiência.“Note-se que o laudo pericial concluiu que os ambientes de trabalho não atendem às normas de acessibilidade para pessoas com deficiência, mas também, que não atendem às normas de proteção prevista para qualquer trabalhador, deficiente ou não”, observou o juiz Alcir Kenupp Cunha. Segundo ele, ficou evidente nos autos que a ECT não tomou qualquer providência para adaptar o local de trabalho com as condições necessárias para que a empregada pudesse trabalhar. “Em suma: a reclamada agiu de forma discriminatória, envidando todos os esforços para impedir que a autora fosse efetivada no cargo para o qual foi aprovada no concurso”, concluiu o magistrado.
Na decisão, o juiz determinou a nulidade da dispensa da empregada e o pagamento de todos os salários e demais direitos devidos no período de afastamento dela. “Independentemente do trânsito em julgado, a reclamada deverá providenciar a regularização das condições ambientais de acessibilidade, conforto térmico, mobiliário, equipamentos, software etc. no prazo improrrogável de 30 dias após a intimação da decisão”, decidiu. Caso a ECT não cumpra a obrigação nesse prazo, será aplicada multa de R$ 500 mil e, a partir do vencimento, multa diária de R$ 10 mil.
Dano moral – Para aplicação da indenização por dano moral, o juiz da Vara de Gurupi levou em conta as ações e as omissões da ECT que implicaram em afronta à dignidade da autora, além do comportamento discriminatório, e o fato de se tratar de uma empresa pública com 350 anos de existência, com plena consciência da necessidade de atendimento das necessidades de pessoas com deficiência. “As ações e omissões da reclamada violaram a dignidade humana da autora. Há provas consistentes e explícitas do tratamento degradante dado à autora no local de trabalho, além do menosprezo da reclamada à observância das normas básicas de higiene e segurança do trabalho, além da inobservância das normas específicas de acessibilidade para pessoas com deficiência. Claro o dano moral”, conclui.Coletivo – O Ministério Público do Trabalho requereu a condenação da ECT por dano moral coletivo tendo em vista o interesse da sociedade e da ordem jurídica trabalhista. “Os fatos apurados na presente ação demonstraram que há um comportamento institucional da reclamada que tem por finalidade impedir o exercício do direito fundamental ao trabalho para pessoas com deficiência. Tal atitude se caracteriza como agressão aos direitos trabalhistas, não só da reclamante, mas de toda a sociedade”, ressaltou o juiz do trabalho Alcir Kenupp Cunha. A prática discriminatória, na opinião dele, deve ser reprimida, em especial quando institucionalizada, exigindo necessária reação do Judiciário trabalhista para corrigi-la.