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Busato: Globalização e corrupção vitimam mais do que a guerra

O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, responsabilizou no dia 16 último a globalização econômica e a corrupção por serem as “moléstias” mais danosas aos direitos humanos, tendo produzido mais vítimas do que a soma de todas as guerras em andamento. “Aumentam os bolsões de miséria no planeta, reduzem horizontes de prosperidade e sobrevivência a centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo os jovens”. A afirmação foi feita por Busato na sessão de abertura da III Conferência Internacional de Direitos Humanos, evento promovido pela OAB de hoje até a próxima sexta-feira (18) em Teresina (PI).

Para Busato, a alternativa para ter menos violações aos direitos humanos passa, obrigatoriamente, pela rediscussão desse modelo econômico-financeiro internacional, que é a globalização. Esse sistema, em sua avaliação, dissocia o progresso econômico de equilíbrio social e reduz a capacidade dos Estados de atenderem às demandas sociais. “O resultado é a deterioração das estruturas estatais, o descrédito das instituições públicas, o desencanto e a perplexidade das sociedades”.

Quanto à corrupção, o presidente da OAB lembrou que o país assiste há mais de um ano às denúncias de “rapina” ao patrimônio público e que o Congresso Nacional vem investigando vários de seus membros, envolvidos em denúncias de atos ilegais. “Desnecessário dizer o quanto isso é trágico, o quanto é danoso aos direitos humanos. Isso é violação de direitos humanos num grau absurdo”.

Na abertura da III Conferência Internacional, Busato destacou, ainda, o papel da OAB. Afirmou que a defesa dos direitos humanos tem sido, ao longo das sete décadas e meia da história da entidade, objeto de inúmeras campanhas e tema “recorrente” e “obsessivo” nas iniciativas da OAB. “Quando nos empenhamos em defender ética na política ou ética na advocacia, para citar apenas duas de nossas campanhas em curso, estamos defendendo direitos humanos, em seu sentido mais abrangente”.

Como saída para minimizar os ataques a esses direitos considerados essenciais, Busato defende o fim da exclusão social, o que implica na tomada de medidas visando à oferta de educação e emprego e à Justiça. “Não há direitos humanos onde não há Justiça, onde o Judiciário funciona mal e não chega a todos”, afirmou o presidente nacional da OAB. “Justiça – e aqui digo o óbvio – é direito humano elementar, básico, sem o qual as conquistas da civilização perdem sentido e conteúdo”.

Até a sexta-feira, painelistas e conferencistas nacionais e estrangeiros discutirão com estudantes e advogados assuntos diversos ligados ao tema “Um Mundo Livre: Desenvolvimento e Vida com Dignidade” – como recursos hídricos, questões raciais e de minorias, desemprego e energia. A conferência será coordenada pela Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) da OAB, presidida pelo conselheiro federal da OAB pela Paraíba, Edísio Souto, em parceria com a Seccional da entidade no Piauí, presidida por Álvaro Mota.

A seguir, a íntegra do discurso do presidente nacional da OAB, Roberto Busato, na abertura da III Conferência Internacional de Direitos Humanos:

“Senhoras e senhores

O tema dos direitos humanos está mundialmente centrado num paradoxo: quanto mais se amplia a consciência internacional em torno dele, mais se produzem modalidades e estratagemas para melhor transgredi-lo.

Além das formas mais primárias de transgressão pela violência física e/ou moral, a indivíduos ou coletividades inteiras, como é o caso presente das populações do Iraque, Afeganistão e Líbano, há a transgressão econômica.

A guerra, não há dúvida, é a mais boçal e primária forma de profanação dos direitos humanos, mas não necessariamente – e por incrível que possa parecer – a de efeitos mais avassaladores. É inclusive mais conseqüência que causa.

A voracidade econômica produz mais vítimas que as guerras – e está na origem de suas motivações.

O processo de globalização econômica em curso, aumentando os bolsões de miséria no planeta, reduzindo horizontes de prosperidade e sobrevivência a centenas de milhões de pessoas em todo o mundo (sobretudo os jovens), tem produzido mais vítimas do que a soma de todas as guerras em andamento.

Não há nisso exagero. Basta conferir o aumento crescente e expressivo dos índices de desemprego nos países não apenas do Terceiro Mundo, mas na própria Europa Ocidental.

O paradoxo que mencionei está em que, ao mesmo tempo em que se sofistica a jurisprudência em torno dos direitos humanos, permitindo que já haja sobre eles jurisdição internacional, continuam os países centrais a praticar políticas econômicas que geram mais danos que a ação dos ditadores dos mais atrasados países periféricos.

Reporto-me aqui a uma avaliação extraída de um artigo do professor e economista brasileiro Gilberto Dupas, publicada pelo jornal Estado de S.Paulo.

Diz ele (abre aspas):“O modelo global de produção continuará provocando exclusão social. As grandes corporações mundiais, fugaz esperança do início dos anos 80, têm mantido clara posição a respeito: seu papel é o de melhorar a competitividade para crescer, remunerar seus acionistas e, em decorrência, manter os empregos possíveis. E usar, quando for o caso, baixos salários dentro da lógica de suas cadeias produtivas.

Como conseqüência, os governos acabam inevitavelmente pressionados a garantir certa proteção social às crescentes populações carentes, em contradição com seus recursos fragilizados pela meta imperiosa de equilíbrio orçamentário.” (fecha aspas)

Em resumo, aumentam as demandas sociais e reduz-se a capacidade dos Estados nacionais de atendê-las.

Aumentam os lucros das corporações e definham os orçamentos dos países, cujos mercados se tornam cativos da ganância daqueles conglomerados econômicos.

Dissocia-se progresso econômico de equilíbrio social. Concentra-se a riqueza na mesma proporção em que é aumentada. Dilui-se a identidade das nações na medida em que cresce o poder das corporações.

O resultado é a deterioração das estruturas estatais, o descrédito das instituições públicas, o desencanto e a perplexidade das sociedades.

Esse o quadro brasileiro; esse o quadro das nações periféricas, que abrigam dois terços da população mundial.

Penso que a discussão sobre direitos humanos, hoje, deve ter como eixo a rediscussão desse modelo econômico-financeiro internacional.

Fora disso, estaremos tratando do varejo, das conseqüências. Basta ver a conjuntura brasileira, em que a exclusão social, decorrente de um modelo econômico concentracionista e excludente – subproduto do modelo imposto pela globalização -, gerou bolsões de miséria, nos quais o crime organizado recruta farta mão-de-obra.

Como conseqüência, nossas metrópoles tornaram-se violentas e perigosas, fonte sistemática de violação de direitos humanos.

Assistimos presentemente a novos ataques em série de uma facção criminosa – o PCC – a alvos civis e policiais da cidade de São Paulo, causando pânico e dezenas e dezenas de mortes.

Sabemos que direitos humanos são violados diariamente nas delegacias de todo o país; que o sistema penitenciário brasileiro, além de não cumprir o papel que lhe cabe de ressocializar infratores, tornou-se fator realimentador da violência.

Sabemos também que menores carentes submetem-se a maus tratos por autoridades do Estado, que execuções sumárias se multiplicam nas periferias das grandes cidades, que milhares e milhares de pessoas morrem de fome e desnutrição.

Podemos e precisamos denunciar essas anomalias e punir os infratores. Mas isso, como temos visto, não porá fim a esse quadro de violência e transgressão de direitos.

Temos que ir às raízes do problema. Somente pelo fim da exclusão social, que implica educação para todos, acesso a emprego e bens de consumo, é que poderemos reduzir e, progressivamente, eliminar esses problemas.

São eles frutos da pobreza e da ignorância. Nesses termos, só terão fim com a eliminação desses fatores. E a globalização econômica, nos moldes em que se processa um movimento unilateral que transforma países periféricos em mercados cativos dos países centrais tem acentuado os abismos sócio-econômicos entre as nações.

O recente fracasso da Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio, evidencia que os países ricos ainda não se sensibilizaram com o quadro de desigualdades sociais que o modelo econômico em curso vem agravando.

Insistem em manter subsídios estratosféricos a seus produtores rurais, reduzindo a participação dos países periféricos no comércio mundial, enquanto simultaneamente nos pressionam para agirmos de maneira oposta, submetendo-nos aos ditames do livre comércio.

Ou o livre comércio é uma via de mão dupla, ou nem é livre, nem é comércio. É dominação econômica, cujos efeitos constituem clara – e grave – violação de direitos humanos.

Na periferia desse sistema e nós, brasileiros, estamos nessa periferia, as conseqüências são inapeláveis. Reduz-se o emprego, aumenta a exclusão social – e, com ela, a violência, a fome, a miséria.

Como discutir direitos humanos sem mexer nesse modelo? Que adianta estabelecer jurisdição internacional sobre ditadores e delinqüentes de direitos humanos e, simultaneamente, estimular o culto a um modelo econômico que condena à miséria mais da metade da humanidade?

É claro que a possibilidade jurídica de se levar alguém como, por exemplo, Pinochet a responder por seus crimes em um tribunal internacional é uma conquista humanitária importante.

Mas se dilui diante da consolidação de um modelo econômico que produz vítimas numa escala bem mais abrangente e progressiva.

O Brasil vive intensamente esse processo. Não se preparou para a globalização. Escancarou seu mercado, submetendo-o a economias mais organizadas sem estabelecer qualquer salvaguarda.

O resultado é o seu enfraquecimento, a incapacidade de atender às demandas básicas de sua população, o aumento do desemprego, a queda de qualidade nos serviços públicos.

A tudo isso, acresce outra grave moléstia – esta de nossa inteira responsabilidade -, que constitui um das mais danosas modalidades de violação aos direitos humanos: a corrupção.

O país assiste, há mais de um ano, ao desfilar incessante e estonteante de denúncias de rapina ao patrimônio do Estado, envolvendo agentes públicos e empresários, numa sórdida parceria, que semeia descrença e ceticismo com relação às instituições democráticas e republicanas.

Desnecessário dizer o quanto isso é trágico, o quanto é danoso aos direitos humanos.

Isso é violação de direitos humanos, num grau absurdo. Muitos imaginam que só caibam nessa rubrica os maus tratos físicos. Engano. Essa é apenas a forma mais primitiva e evidente de violação de direito humano.

Há outras, mais perversas e sofisticadas, de efeitos mais duradouros e abrangentes. E a própria corrupção assume formas mais cruéis e requintadas.

Além do modelo econômico-financeiro internacional globalizante, a que já me referi, há as guerras cujo potencial expansivo e cuja motivação sórdida – o mesmo interesse econômico – preocupam.

Assistimos presentemente ao embate entre Israel e Líbano. Em meio ao fogo cerrado e cruzado dos mísseis e fuzis do Hezbollah e do exército israelense, há milhares e milhares de cidadãos indefesos e inocentes – mulheres, crianças e idosos -, de ambos os países.

O que vemos diariamente na mídia – seres humanos mutilados, residências destruídas, milhares de pessoas sem lar e sem destino – mostra que, em matéria de direitos humanos, ainda não saímos das cavernas.

Estamos na Pré-História.

Ainda nem havíamos assimilado (se é que é possível fazê-lo) as truculências impostas às populações do Afeganistão e do Iraque, e novas vítimas inocentes surgem agora diante de nossos olhos, impotentes e perplexos.

Tudo isso se soma ao estreitamento do horizonte econômico para a maioria das nações, o que, historicamente, é, como já disse, fator de estímulo e multiplicação das guerras.

Em tal conjuntura, é forçoso admitir que as forças obscurantistas avançam e ameaçam conquistas que a humanidade levou décadas e décadas para obter.

Insisto em que a questão econômica, pela natureza e abrangência de seus efeitos, está na base de todos os desarranjos presentes, inclusive as guerras.

A defesa dos direitos humanos tem sido, ao longo das sete décadas e meia de história da Ordem dos Advogados do Brasil, objeto de numerosas campanhas públicas.

Não há exagero em dizer que é tema recorrente, obsessivo, que permeia praticamente todas as nossas iniciativas em defesa da Constituição, da ordem jurídica e do Estado democrático de Direito, com os quais estamos estatutariamente comprometidos.

Quando nos empenhamos em defender ética na política ou ética na advocacia, para citar apenas duas de nossas campanhas em curso, estamos defendendo direitos humanos, em seu sentido mais abrangente.

A falta de ética em política – e isso a sociedade brasileira está presentemente tendo a oportunidade de sentir na carne e na alma – tem, como já o disse, efeitos sociais desastrosos.

Lesa a cidadania, fere o decoro, aumenta a exclusão social, gera atraso e desordem, corrói o conceito e a credibilidade das instituições do Estado – e, inevitavelmente, ameaça a ordem pública e a estabilidade democrática.

Daí a prioridade que estamos dando à reforma política, para a qual acabamos de aprovar a instalação de um Fórum no âmbito do Conselho Federal da OAB: o Fórum da Cidadania pela Reforma Política.

No campo da advocacia, falta de ética agrava a crise de justiça, que, por sua vez, constitui uma das grandes mazelas contemporâneas em matéria de direitos humanos.

A luta contra o crime organizado – na administração pública, nas ruas e nas penitenciárias – expôs, aqui no Brasil, a figura sinistra e paradoxal do advogado criminoso.

Mas eu afirmo: não há advogado criminoso. Há, isto sim, criminoso travestido de advogado, que precisa ser banido de nossa profissão, tal como o bandido que se traveste de médico, jornalista, político ou seja lá qual seja o ofício que venha a exercer.

Criminoso é criminoso, não importa o diploma acadêmico que ostente. Quanto mais culto e preparado, mais hedionda será sua falta, pois o conhecimento aprofunda o compromisso com a ética e o bem comum.

A OAB tem sido, ao longo de sua história, implacável com as faltas éticas que chegam a suas instâncias de julgamento. E sempre associou a luta em prol da ética na advocacia – e na Justiça como um todo – à defesa dos direitos humanos.

Não há direitos humanos onde não há Justiça, onde o Judiciário funciona mal e não chega a todos. Justiça – e aqui digo o óbvio – é direito humano elementar, básico, sem o qual as conquistas da civilização perdem sentido e conteúdo.

O enunciado é óbvio, mas está longe de ser realidade palpável entre nós, o que faz com que tenhamos que repeti-lo à exaustão.

A Justiça brasileira, sabemos todos, está longe de atender às demandas de nossa sociedade. Não cumpre sequer o fundamento básico da universalidade, isto é, de ser acessível a todos, independentemente de condição sócio-econômica e localização geográfica.

A reforma judiciária que tivemos aqui no Brasil, há dois anos, registrou alguns avanços – e destacamos sobretudo a criação do Conselho Nacional de Justiça, que estabeleceu o primado do controle social no Judiciário, cujo principal fruto, até aqui, é o combate ao nepotismo, em todas as suas modalidades e subterfúgios.

Mas é preciso avançar mais – e isso requer mobilização constante. E fóruns como este, que colocam os direitos humanos em evidência, são de inestimável valia.

Não sentimos ainda na classe dirigente brasileira sensibilidade para toda essa gama de desafios, alguns sequer tangenciados na agenda política dos partidos, dos candidatos e dos governantes.

Isso aumenta a responsabilidade da sociedade civil brasileira, que, mais que nunca, precisa estar unida e vigilante.

Esse tem sido o eixo de nossa ação, na OAB. E esse tem sido o papel que organizações similares à nossa em diversos países têm exercido.

A defesa dos direitos humanos é luta permanente, sem quartel. Obtém avanços, conscientiza multidões, sensibiliza governantes, mas, mesmo assim, está sujeita a retrocessos.

A luta pelos direitos humanos é a luta da civilização contra a barbárie. Por mais que a humanidade avance e se sofistique, a barbárie está sempre por perto, a espreitar.

São os mistérios da iniqüidade, de que falava Santo Agostinho, o que obriga as pessoas de bem – de todas as raças, credos e nacionalidades – a se unir em torno de um mesmo e definitivo objetivo: a construção da paz e da fraternidade universal.

Muito obrigado – e que Deus nos ilumine.”