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Celso de Mello: Direito à vida e à saúde

EMENTA: PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO. PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES. DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, “CAPUT”, E 196). PRECEDENTES (STF). RECONHECIDO E PROVIDO.

DECISÃO: O presente recurso extraordinário busca reformar decisão proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, consubstanciada em Acórdão assim ementado (fls. 94):

“CONSTITUCIONAL. DIREITO À VIDA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. FALTA DE PROVA IDÔNEA QUANTO AO RISCO DE VIDA. IMPOSSIBILIDADE.1. É desnecessário, para acudir à via jurisdicional, esgotar ou pleitear na instância administrativa. O fornecimento gratuito de medicamentos, pelo Estado, exige que o remédio seja excepcional e indispensável à vida do paciente.2. APELAÇÃO DESPROVIDA. SENTENÇA REFORMADA.” (grifei)

Entendo assistir plena razão aos recorrentes, que são irmãos, pois o desacolhimento de sua pretensão recursal poderá gerar resultado inaceitável sob a perspectiva constitucional do direito à vida e à saúde. É que – considerada a irreversibilidade, no momento presente, dos efeitos danosos provocados pelas patologias que afetam os recorrentes (que são portadores de esquizofrenia paranóide e de doença maníaco-depressiva crônica) – a ausência de capacidade financeira que os aflige impede-lhes, injustamente, o acesso ao tratamento inadiável e ao fornecimento dos medicamentos a que têm direito e que se revelam essenciais à preservação da integridade do seu estado de higidez mental e de sua própria vida, porque os seus antecedentes pessoais registram episódios de tentativa de suicídio.

Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de nossa organização federativa.

A impostergabilidade da efetivação desse dever constitucional autoriza o acolhimento do pleito recursal ora deduzido na presente causa.

Tal como pude enfatizar em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput” e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo – uma vez configurado esse dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.

Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar.

O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à Constituição de 1988”, vol. VIII/4332-4334, item n. 181, 1993, Forense Universitária) – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

Nesse contexto, incide, sobre o Poder Público, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas – preventivas e de recuperação -, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu art. 196, a Constituição da República.

O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas – impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.

Vê-se, desse modo, que, mais do que a simples positivação dos direitos sociais – que traduz estágio necessário ao processo de sua afirmação constitucional e que atua como pressuposto indispensável à sua eficácia jurídica (JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Poder Constituinte e Poder Popular”, p. 199, itens ns. 20/21, 2000, Malheiros) -, recai, sobre o Estado, inafastável vínculo institucional consistente em conferir real efetividade a tais prerrogativas básicas, em ordem a permitir, às pessoas, nos casos de injustificável inadimplemento da obrigação estatal, que tenham elas acesso a um sistema organizado de garantias instrumentalmente vinculadas à realização, por parte das entidades governamentais, da tarefa que lhes impôs a própria Constituição.

Não basta, portanto, que o Estado meramente proclame o reconhecimento formal de um direito. Torna-se essencial que, para além da simples declaração constitucional desse direito, seja ele integralmente respeitado e plenamente garantido, especialmente naqueles casos em que o direito – como o direito à saúde – se qualifica como prerrogativa jurídica de que decorre o poder do cidadão de exigir, do Estado, a implementação de prestações positivas impostas pelo próprio ordenamento constitucional.

Cumpre assinalar, finalmente, que a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte qualificasse, como prestações de relevância pública, as ações e serviços de saúde (CF, art. 197), em ordem a legitimar a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário naquelas hipóteses em que os órgãos estatais, anomalamente, deixassem de respeitar o mandamento constitucional, frustrando-lhe, arbitrariamente, a eficácia jurídico-social, seja por intolerável omissão, seja por qualquer outra inaceitável modalidade de comportamento governamental desviante.

Todas essas razões levam-me a acolher a pretensão recursal deduzida nos presentes autos, ainda mais se se considerar que o Acórdão ora recorrido diverge, frontalmente, da orientação jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou no exame da matéria em causa (RTJ 171/326-327, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – AI 462.563/RS, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 486.816-AgR/RJ, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – AI 532.687/MG, Rel. Min. EROS GRAU – AI 537.237/PE, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RE 195.192/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – RE 198.263/RS, Rel. Min. SYDNEY SANCHES – RE 237.367/RS, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – RE 242.859/RS, Rel. Min. ILMAR GALVÃO – RE 246.242/RS, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – RE 279.519/RS, Rel. Min. NELSON JOBIM – RE 297.276/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – RE 342.413/PR, Rel. Min. ELLEN GRACIE – RE 353.336/RS, Rel. Min. CARLOS BRITTO – AI 570.455/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

“PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) – PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.- O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.- O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE.- O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES.- O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.”(RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Sendo assim, pelas razões expostas, e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República (fls. 131/132), conheço e dou provimento ao presente recurso extraordinário (CPC, art. 557, § 1º – A), em ordem a julgar procedente a ação ordinária ajuizada pela parte ora recorrente, restabelecendo, desse modo, por inteiro, a r. sentença proferida pelo magistrado estadual de primeira instância (fls. 64/69).

Publique-se.

Brasília, 1º de fevereiro de 2006.

Ministro CELSO DE MELLORelator

* decisão pendente de publicação

Homoafetividade – União entre pessoas do mesmo sexo – Qualificação como entidade familiar

ADI 3300 MC/DF*