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O abril vermelho do MST

Artigo do presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Roberto Busato, publicado na edição de hoje (04) da Folha de S.Paulo.

“A ameaça de um “abril vermelho”, marcado por invasões de terras, produtivas ou não, feita pelo líder do movimento dos sem-terra João Pedro Stedile, constitui um equívoco político e estratégico que, acima de tudo, enfraquece a causa que pretende patrocinar.

Nenhum gesto reacionário seria tão eficaz quanto uma declaração desse teor, que assusta a sociedade, estimula os radicais do outro lado (os que não querem a reforma agrária) e ameaça a paz social. A Ordem dos Advogados do Brasil, sem se envolver em sectarismos ideológicos, tem sido historicamente solidária aos movimentos sociais.Sua bandeira é a da justiça e da cidadania, sempre em busca de ampliação de direitos e inclusão social.

A causa da reforma agrária tem, portanto, nosso apoio e já tivemos a oportunidade, no governo passado, de mediar, em momento de maior tensão política, negociação entre Estado e MST. Como operadores do direito, no entanto, partimos de uma convicção de teor dogmático: fora da lei não há salvação -é o caos e a violência, que em momento nenhum da história, aqui ou em qualquer parte, levaram a uma solução positiva.

Consideramos legítima a pressão política dos movimentos sociais sobre o Estado e até certo ponto compreensíveis alguns excessos verbais, no calor da polêmica. Mas mesmo esses excessos têm limite, e a incitação à violência o extrapola. Ignorar isso é repetir velhos erros do passado, que infelicitaram o país e o levaram a retrocessos lamentáveis. Há 40 anos, radicalismos do tipo perpetrado por João Pedro Stedile levaram o país a um golpe militar e a duas décadas de obscurantismo político. Já se passaram duas décadas do início da redemocratização e ainda estamos recolhendo os cacos daquele período.

O MST é uma entidade que expressa o anseio legítimo de milhões de trabalhadores rurais brasileiros por uma causa urgente, sempre depreciada pela elite governante. A reforma agrária já constava das prioridades do projeto de país intentado pelo patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, há 182 anos. Ele propunha o fim da escravidão conjugado à reforma agrária, mas sua proposta foi vencida pelos interesses reacionários, dos grandes proprietários rurais, que mantiveram a escravidão por mais 66 anos e o modelo fundiário especulativo e concentracionista até os dias de hoje.

Ainda carregamos as cicatrizes políticas e sociais daquela trágica opção da elite governante brasileira. E o MST é um dos retratos mais nítidos dessa tragédia social. É inconcebível que, num país com as dimensões territoriais do Brasil, com imensas extensões inabitadas, haja luta por terras. Mas há. E a reforma agrária requer mais que a vontade política de distribuí-las. Há ritos legais a serem observados e há necessidade de recursos para assentar as famílias. Não basta dar terras.

É preciso proporcionar condições para que se tornem produtivas e rentáveis. E isso não tem o automatismo que alguns sugerem. Mas também não pode se perpetuar nos meandros burocráticos. As lideranças do MST conhecem bem esse processo. Têm o mérito de ter incluído a reforma agrária na agenda política do governo passado, levando o atual a mantê-la. Conseguiram a simpatia e o apoio da sociedade brasileira e não podem comprometê-los agora com gestos despropositados, que derivem para a ilegalidade. Se o fizerem, comprometem o patrimônio político que construíram.

Nosso apelo é para que não se desviem da lei. E nossa advertência à elite governante brasileira é a de que não é mais possível conter os anseios por mudanças na economia. Sem conteúdo social, a democracia é apenas abstração jurídica, e não o regime da maioria. Não enquanto ela, a maioria, continuar ao relento, à mercê de lideranças radicais, dispostas a destampar, num gesto súbito, a panela de pressão. Que o episódio sirva de reflexão a ambos os lados”.