Apenas em caso de dúvida consistente o juiz pode aplicar o princípio do “na dúvida, em favor da sociedade” (in dubio pro societate). Não existindo elemento mínimo a indicar a prática de dolo (intenção) eventual no homicídio causado por acidente de trânsito, impõe-se a desclassificação da conduta apontada na denúncia para a modalidade de crime culposo. A decisão é da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“A inexistência de qualquer elemento que aponte, de forma razoável, para a possibilidade de ter o acusado concordado com a morte das vítimas afasta de forma perene a hipótese de dolo eventual. Inaplicável, pois, o aforismo ‘in dubio pro societate’, que só poderia ser utilizado para remeter o julgamento do feito ao Tribunal do Júri no caso de dúvida consistente sobre a existência de crime doloso ou culposo”, declarou o ministro Paulo Medina.
Em seu voto, seguido à unanimidade pela Turma, o relator esclareceu ainda que “para se emitir juízo de pronúncia, o Magistrado não pode ter dúvidas a respeito da existência do dolo, posto que deve, ao fundamentá-la, ser econômico com suas palavras para não influir na convicção dos jurados. A dúvida deve ser sempre dirimida em favor do réu, e não como está na decisão atacada, em que se invocou o brocardo ‘in dubio pro societate’ para pronunciar o recorrente, tendo em vista a impossibilidade de se estabelecer o elemento subjetivo do tipo”.
DenúnciaA denúncia apontava que G.G., embriagado e sob efeito de medicamentos, chocou-se em “velocidade absurda e inimaginável para o local – mínima superior a 130,87 km/h” com o veículo da vítima. O acidente ocorreu às 4h28 da madrugada em frente a uma choperia em Florianópolis (SC), e resultou na morte dos dois ocupantes do veículo da vítima.
O juiz decidiu por não pronunciar o réu, ou seja, não sujeitá-lo ao julgamento pelo Tribunal do Júri, o que ocorreria se não fosse o caso de crime culposo. Para o magistrado de primeiro grau, o caso incorria em culpa consciente, e não dolo eventual. Em recurso do Ministério Público, o Tribunal de Justiça catarinense reformou a decisão, pronunciando o réu por homicídio com dolo eventual. A dúvida residual quanto à ocorrência do crime, afirmou o tribunal local, deveria ser resolvida pelo júri popular.
Para a defesa, a legislação federal teria sido violada pelo TJ-SC, que, apesar da declarada “séria dúvida a respeito da caracterização do dolo eventual ou da culpa consciente, mesmo se estando diante de fatos certos que induzem a ocorrência dessa última hipótese, partindo-se do pior cenário traçado”, impôs a pronúncia do acusado perante o Tribunal do Júri. Daí o recurso ao STJ.
ReexameO ministro Paulo Medina, de início, considerou possível a análise pretendida pela defesa. Isso porque, diferentemente do reexame de provas, vedado no recurso especial, no caso seria avaliada tão somente a interpretação do tribunal local sobre os conceitos de dolo eventual e culpa consciente diante do conjunto probatório, definido no âmbito da decisão recorrida e irrescindível.
“Diante da possibilidade de revalorar os fatos apreciados pela Corte Especial, necessário concluir se os elementos constantes nos autos permitem a configuração de dúvida sobre a existência de dolo eventual, e a conseqüente pronúncia do réu em atenção ao brocardo ‘in dúbio pro societate’”, afirmou o relator.
Nesse sentido o Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu que “na situação enfocada, despontam elementos nebulosos acerca do estreito liame entre a culpa consciente e o dolo eventual, de que o réu tenha se predisposto a aceitar o resultado do seu comportamento, não obstante exista uma versão de que o veículo da vítima tenha invadido a mão de direção onde o réu trafegava, em velocidade que afirma não ter sido excessiva. […] É, sem dúvida, tormentosa a distinção entre culpa consciente e dolo eventual. Na prática, muito fina a linha limítrofe entre ambos, porém os efeitos penais resultantes do reconhecimento de um ou outro, pelo elemento subjetivo, implica distância considerável, não só pela gravosidade (sic) da sanção, mas, também, pela maior formalidade da sistemática processual, garantido o julgamento pelo júri […] se doloso.”
E completa o referido tribunal: “Sendo assim, conclui-se que a decisão desclassificatória era inviável, nesta fase, pois o acervo probatório não permite afirmar, com absoluta certeza, qual teria sido o elemento subjetivo que determinou a conduta do réu no evento denunciado, isto é, se agiu assumindo o resultado de sua conduta (dolo eventual), ou se postou-se com mera culpa, devendo a matéria, por conseguinte, ser decidida pelo Conselho de Sentença.”
Dolo e culpaO relator, para dirimir a questão, apresentou doutrina de Nélson Hungria que especifica a conduta de dolo eventual: “Assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente a ocorrer”.
A diferença entre este e a culpa consciente, esclareceu o ministro Paulo Medina, seria que, na segunda, o resultado morte, embora previsível, não é indiferente ou tolerado pelo agente, que não o aceita, acredita ser capaz de evitá-lo e espera que não aconteça.
No caso específico, o ministro anota que ficou comprovado apenas o excesso de velocidade, não havendo provas conclusivas da embriaguez, da influência do medicamento Aropax, restando também dúvidas em relação à decisão e intenção conscientes do réu diante da conseqüência de seu ato.
“A existência de dolo eventual não se limita à previsão do resultado”, esclareceu o relator. “Deve ser somada ao elemento intelectual (conhecimento da possibilidade do resultado lesivo) o componente volitivo (aceitar a ocorrência do resultado). Assim, não basta que o agente tenha consciência de que sua conduta poderá gerar um dano, deverá ele, na posse desse conhecimento, permanecer no intento de agir, desconsiderando as implicações. Na culpa consciente, de forma diversa, o agente pode até prever o resultado, mas não o aceita. Acredita, sinceramente, que o evento lesivo não ocorrerá”, completou.
O relator considerou inadmissível concluir que o acusado, no caso em análise, ao tomar a direção de seu carro, estaria de acordo com o resultado “morte de duas pessoas”. O ministro também combateu a aplicação indiscriminada da fórmula “velocidade excessiva + embriaguez = dolo eventual”. “Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importem em causar a morte ou mesmo lesões em outras pessoas”, declarou.